Asas Quebradas escrita por CameronDittmann


Capítulo 3
Asas Queimadas


Notas iniciais do capítulo

Anteriormente, em Asas Quebradas...

"Ainda me lembro da sensação que tive quando vi o rosto dele pela primeira vez. (...) Foi como olhar para o Sol.

'Definitivamente, Matthew Reed não era o estereótipo do cara que sonha em ser policial.'

Será que agora eu escuto coisas?

...havia o relato de um novo desaparecimento, agora de uma estudante chamada Lauren Stewart, e o paradeiro da garota ainda ia ser investigado.

Estou certa de que se eu pensar um pouco, quem sabe as antigas ideias não voltam e eu não consigo retomar a história de onde parei?"



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/717751/chapter/3

Um novo sinal anuncia que nossas horas de folga chegaram ao fim. Mais uma aula de matemática estava prestes a começar. Entretanto, matemática é a última coisa que eu quero pensar nesse momento. Meus pensamentos parecem ferver com novas ideias para a minha história em quadrinhos. Penso em mil e uma formas de justificar a obsessão do serial killer por pássaros, algumas que até mesmo soam muito forçadas. Posso não ser especialista ao que diz respeito a construção de enredos, mas sei que algo que faz a diferença nas boas histórias é a verossimilhança. Situações e sentimentos próximos da realidade fazem com que seja mais fácil se identificar com os personagens e com o mundo em que eles vivem. Justamente por isso, sei que não há nada melhor do que fazer pesquisas para despertar a inspiração. Junto meu material e vou para um dos poucos lugares vagos no fundo da sala.

— Evan, me empresta seu celular? — Pergunto enquanto me instalo na nova carteira.

— Ih, você aqui atrás, e me pedindo o celular? Resolveu ser parte da turma do fundão que não presta atenção na aula, é? — Ele tem toda a razão em estranhar minha mudança de lugar. Normalmente eu odeio sentar do meio da sala para trás.

— É, e é muito bom ser da turma do fundão. Com certeza não estou a fim de mais matemática hoje. Vai, passa o celular, ele ainda tem internet, né?

— Tem né... Só não acaba com meu plano de dados. — Meu amigo me passa o celular meio a contragosto.

A professora chega, a aula começa. A aula é a continuação da anterior, que tinha introduzido a gente ao conceito de binômios de newton. Introdução a um conteúdo novo é sempre a parte do capítulo que tem exercícios fáceis, então como eu prestei atenção na primeira aula, sinto que posso me distrair tranquilamente nessa de agora. Abro meu livro e finjo que estou resolvendo cálculos enquanto mexo no celular disfarçadamente embaixo da mesa. A professora não parece notar minha mudança de lugar mesmo estando acostumada com meus cumprimentos a cada nova aula, ou então se notou não deu importância. Os alunos da primeira fileira realmente costumam mudar de lugar durante o dia por causa do vento forte que entra pela primeira janela da sala, que tem um vidro faltando. Realmente, dez minutos com a corrente de ar levantando folhas e jogando materiais no chão ainda é tolerável, mas cinquenta minutos dessa forma podem enervar qualquer um.

— O que você está vendo aí? — Evan não controla a curiosidade.

— Um blog sobre crimes. — Respondo sem tirar os olhos da tela do telefone — Resolvi voltar a escrever ‘Asas Quebradas’, preciso me inspirar.

— Não acredito que você está fazendo isso agora se vamos almoçar daqui a pouco e vai estar passando o noticiário, cheio de tragédias pra servir de inspiração. Vai acabar com os meus dados, devolve meu celular, vai. — Evan tenta pegar o telefone e eu tiro o aparelho do seu alcance. — Devolve logo que a gente vai acabar chamando a atenção da professora.

Realmente, ela já está olhando na nossa direção. Mas eu acabei de descobrir um artigo que parece compensar toda e qualquer bronca que ela possa dar. É bem recente, um dos últimos artigos de um blog que une um trabalho jornalístico fantástico e até mesmo pesquisas históricas para relatar qualquer tipo de crime notório que tenha acontecido no mundo. Pela manchete, parece ser exatamente sobre o que minha história trata. O desaparecimento de quatro estudantes em uma cidade pequena.  

Clico no link para abrir a notícia, e para fingir que estou fazendo os deveres e dar uma boa impressão para a professora, levanto a mão e pergunto algo básico sobre a formação do triângulo de Pascal, primeiro tópico que vejo escrito na página do livro. Enquanto a professora responde minha dúvida em voz alta e escreve exemplos no quadro, Evan fala alguma coisa comigo, mas não consigo ouvi-lo direito.  Assim que a professora para de falar, dou um sorriso e movimento a cabeça fingindo não ter mais dúvidas e estar agradecida pelo esclarecimento. A internet do celular de Evan está realmente lenta, e tento conter a ansiedade pela notícia lendo uma parte do conteúdo do livro, um pequeno texto com curiosidades sobre as contribuições de Blaise Pascal para a matemática e a filosofia. Algo que nunca cairia em nenhuma prova e provavelmente nunca seria falado em uma conversa descontraída. A não ser, claro, que fosse uma conversa com Matthew. Sorrio ao imaginar uma pessoa qualquer impressionada com os retalhos de conhecimento sendo soltos em uma conversa comum, que normalmente envolve assuntos fúteis e despreocupados. Penso que quando estiver repensando a história, preciso incluir essa cena em algum trecho que peça algum alívio cômico.

Me distraio e vejo que a professora estava distraída falando com algum aluno da frente da sala. Volto minha atenção para o celular só para ver que a notícia já estava completamente carregada. Passo os olhos pelo primeiro parágrafo e suspiro, não escondendo a leve frustração. Infelizmente, a notícia não é como eu esperava. Segundo a matéria, eram quatro garotas de um bairro pobre que se conheciam e combinaram de fugir de suas casas porque foram seduzidas por um maluco que queria criar algum tipo de sociedade alternativa. Depois de alguns anos parece que a tal comunidade não deu certo e todo mundo acabou morrendo. Só assim que a polícia descobriu o paradeiro delas, já que o caso do desaparecimento nunca havia tido uma solução. Esse não era o tipo de fato que daria um caso interessante para mim, pelo menos no momento. O cenário da minha história é completamente diferente. Meu serial killer visava jovens de cabelos longos, atacava em um bairro de classe média-alta e não tinha pretensões de criar nenhuma comunidade.

Saio da internet e devolvo o celular para o meu amigo sem falar nada, por um lado querendo preservar os créditos dele e por outro bastante desanimada por não ter encontrado nada que pudesse me inspirar. Observo a professora corrigir alguns exercícios no quadro e me desanimo um pouco mais quando vejo que terei que fazê-los em casa. Na verdade, passado aquele hype inicial de ter encontrado aqueles papeis que estavam guardados a tanto tempo, ainda não estou completamente certa de que quero voltar à vida de rabiscar páginas de quadrinhos que provavelmente não vão ser mais do que um puro hobby para a minha vida toda. Vai ser sempre como está sendo agora, uma alegria inicial e depois um forte sentimento de perda de tempo. Por mais que ignorar alguns exercícios não vá abaixar minhas notas a ponto de prejudicar meu currículo escolar perante uma faculdade, ainda assim é uma forma de ser irresponsável. E dessa vez eu não tenho nem o benefício de ter sido avisada em cima da hora, como foi com a poesia. Sei que essa leve irresponsabilidade não é um motivo para ficar chorando pelos cantos, mas tudo parece ficar pior quando esse desânimo bate. Ou melhor, o desânimo não bate, ele espanca, chega na voadora sem dó nem piedade.

Fixo meu olhar para Evan, esperando que ele esteja em um momento de tédio e tristeza assim como eu, mas percebo que ele está ocupado tentando fazer com que Rob consiga fazer corretamente um dos exercícios do livro. Não vou atrapalhar nenhum dos dois tentando puxar conversa. Pego o lápis e tento rabiscar alguma coisa na borda branca da página do livro. Consigo fazer um rosto com cabelos compridos e cacheados como os de Dahlia Brandt. O desenho não sai feio, mas tenho dificuldade em fazer o rosto, então deixo sem face. Há anos sem treinar, não me surpreende que eu tenha perdido um pouco o jeito. Me pergunto em pensamento se ainda sou capaz de desenhar Matthew, e parece uma boa ideia fazê-lo ao lado da imagem de Pascal, como se estivesse dando um “oi” para o matemático. Começo a rabiscar e, após algumas tentativas e muitos rascunhos apagados, concluo que não consigo deixar o rosto parecido com o que eu desenhava originalmente. Suspiro e o desânimo bate novamente, dessa vez com socos ingleses e tacos de baseball. Não vale a pena voltar a desenhar mesmo. Sempre gostei de desenhar, mas enfiar a cara em livros técnicos de desenho para aprender proporções básicas do corpo e rosto é como a maior das torturas. Largo a lapiseira sobre o livro e dou uma olhada geral nos meus colegas de classe. A maioria deles conversa, talvez estejam apenas fingindo fazer os deveres. Outros estão realmente imersos nas tarefas e no meio da sala um casal de namorados se beija sem pudor algum, parando a agarração de tempos em tempos para cochichar sobre algo que com certeza não é matemática.

Me deixo escorregar na cadeira, acabando por ficar sentada completamente torta. Minha coluna dói em protesto. Me sinto triste, um tanto frustrada comigo mesma por gostar de fazer algo que nunca me dará futuro, e por não conseguir mais fazer o que gosto. Olho para Evan e vejo que ele ainda está ocupado, agora com os próprios deveres. Não vou ser inconveniente e incomodá-lo, mas o que eu mais quero no momento é conversar com alguém. Falar sobre qualquer coisa que me venha à mente: livros, matérias, ou até mesmo fatos aleatórios e curiosidades inúteis como as que li no livro mais cedo. Ter uma conversa de certa forma inteligente e meio dispersa. Penso que maravilha seria se eu estivesse dentro dos meus quadrinhos e fosse a outra pessoa na cena que imaginei mais cedo. Fecho meus olhos e juro que posso até mesmo ouvir a voz dele ao longe.

Toda a atmosfera do ambiente também já não é mais a mesma. A sala de aula deu lugar à cafeteria onde havia comprado meu café mais cedo, e o lugar parecia borbulhar com todos os seus sons e aromas característicos. Sentado à mesa, em frente a mim, ele falava sobre tudo um pouco, daquela maneira tão característica de quem precisa libertar as ideias e as informações que não cabem mais apenas em sua mente, com a fala levemente atropelada em um monólogo entusiasmado. E em meio a isso tudo, eu sou apenas uma interlocutora fascinada que mal consegue absorver o que ele diz e corresponde apenas com meu olhar atento e um sorriso no rosto. Não consigo não admirá-lo por um momento. Os cabelos cor de avelã levemente revoltos, os olhos castanhos emoldurados por longos cílios, as maçãs do rosto bem desenhadas. Aproveito o momento em que ele para de falar para pedir mais um café para a garçonete e enfim tomo coragem para puxar um assunto qualquer. Começo a falar sobre livros e assim ficamos conversando por horas. Falamos sobre livros de todos os tipos, desde os clássicos da literatura até os últimos lançamentos que havíamos lido, e uma hora nos desviamos do assunto para começar a citar sobre as contribuições de Pascal para a filosofia que não haviam sido citadas no meu livro didático. A garçonete me traz um café e enquanto adoço o conteúdo do copo, posso ouvi-lo falar sobre como a cafeína afeta a produção de certos neurotransmissores. Sim, essa parte do café é algo tão “Matthew” que desvio minha atenção do líquido fumegante e não resisto a olhar diretamente em seus olhos. Tão bonitos, tão vivos, tão... Reais. Sinto meu coração acelerar.  

— Matthew. — suspiro. Ao perceber meu feito, abro os olhos repentinamente. Pisco algumas vezes, me vendo sentada em uma posição desconfortável e em meio àquela sala de aula barulhenta novamente. Percebo que aquilo foi um sonho, devo ter cochilado.

Estico o corpo para olhar para a parte da frente da sala. A professora não está mais lá e por um momento fico confusa se a aula acabou ou se ela só precisou sair por algum motivo. A carteira de Evan está vazia e Rob conversa animadamente com um de seus amigos que senta perto da janela. Me levanto e sinto todas as minhas vértebras doerem quando me espreguiço. Nesse momento, lembro de todas as recomendações sobre postura correta que ignorei ― coluna ereta, pés no chão, joelhos a noventa graus ― e penso em segui-las à risca da próxima vez que eu me sentar em uma cadeira novamente. Notando a professora ainda ausente, não vejo nada de mal em sair para circular um pouco com a justificativa de ir ao banheiro.

No corredor, vejo Evan conversando com Bea sobre alguma coisa que diz respeito à política atual. Acho melhor não interromper e sigo andando até que viro à direita para entrar no banheiro feminino. Paro em frente à pia e olho atentamente ao meu reflexo no espelho. Pela primeira vez, um certo pensamento me assombra: ainda sou exatamente a mesma pessoa de quatro anos atrás. Não que eu ainda tivesse esperanças de que entre os quatorze e os dezoito alguma mudança drástica fosse acontecer e me tornar uma deusa da beleza, mas apenas constato que não mudei exatamente nada e me assusto levemente com isso. Talvez eu só tenha ganho um pouco de peso, mas ainda conservo os mesmos cabelos pretos bem curtinhos e nunca pensei em trocar meus óculos por lentes de contato. Suspiro mais uma vez e desvio a atenção do meu reflexo, acalmando meus pensamentos e analisando que esse leve drama sobre a minha aparência não faz sentido nenhum. Ainda assim, olho novamente para os olhos da minha imagem refletida e sinto uma leve tristeza por não ter nenhuma característica digna de um olhar a mais. Julgando pela aparência, um cara como Matthew jamais me notaria.

“Matthew? Você realmente está triste por causa de um cara que nem sequer existe?”

Tenho um sobressalto com esse pensamento repentino e reconheço o tom amargurado da minha própria consciência. Reconheço que ela está certa e me sinto a maior das idiotas por pensar de uma forma tão ilusória sobre um personagem fictício, pior, um personagem que eu mesma havia criado. Minha tristeza se transforma em um leve aborrecimento e saio do banheiro a passos firmes. Agora tenho raiva de mim mesma por ter me deixado levar por meus quadrinhos antigos. Noto que Bea e Evan não estão mais conversando no corredor. Tenho raiva de mim mesma por não conseguir mais desenhar. A porta da sala está aberta. Tenho raiva do vento que entra pelo vidro faltante e me atinge em cheio no peito. A professora continua ausente, a sala bagunçada e o casalzinho ainda se agarrando. Tenho raiva deles também.

Me sento na cadeira e, ainda remoendo minha repentina raiva do mundo, vejo Evan entrar na sala com um pacote de biscoitos pela metade. A mistura de pensamentos me faz lembrar que ele tem uma namorada de quem eu também já tive raiva, mas por medo de perdê-lo. Ele conheceu Melanie um ano depois de se tornar meu melhor amigo, e assim que ela se mudou para uma cidade vizinha, começaram a namorar. Hoje eu percebo que a raiva era pura imaturidade minha e fico feliz em saber que ela o faz feliz, apesar de não conhecê-la pessoalmente. E aposto que mesmo que, se eles estudassem nessa mesma sala de aula, não fariam igual esses dois que estão sentados mais à frente, cujo corpo parece o de um ser só. “A professora de biologia bem que poderia usá-los como exemplo de simbiose.” penso e esboço um sorriso antes de ser surpreendida por um pacote de biscoitos se chocando contra meu peito.

― Rindo de quê, moça? ― Evan senta na cadeira à minha frente.

― Jenny e Phillip. ― respondo, abrindo a embalagem metalizada ― Eles são tipo aquele protozoário e o cupim, incapazes de viver separados.

― E quem vive no intestino de quem? ― Ouço meu amigo dar uma risada contida.

― Parabéns, você conseguiu deixar o relacionamento deles ainda mais nojento ― respondo em meio a uma gargalhada ― como se não bastasse ter que assistir essa beijação dentro de sala.

― Mas beijar não é nojen...

― Mas morar nas tripas de alguém é. ― interrompo Evan e percebo a professora voltando para a sala e fechando a porta.

― Olha, do jeito que o aluguel anda caro hoje em dia...

― Vira pra frente que a professora tá falando ― Dou a língua para ele, dando um ponto final à conversa.

Os biscoitos parecem ter melhorado radicalmente meu astral. É impressionante como um tanto de gordura, açúcar e aromatizante de morango podem ser o melhor remédio para combater um ataque de mau humor. Enquanto ouço a professora falar coisas sobre a reunião à qual ela havia se ausentado de sala para comparecer, fecho meu livro e pego meus quadrinhos antigos novamente. Agora tenho a leve sensação de estar conformada com o fato de que não devo mais continuar Asas Quebradas. Realmente não tenho mais tempo para me dedicar a um hobby e não quero ficar alimentando um amor imaturo e sem sentido por um personagem fictício. Talvez a melhor coisa a fazer seja dar um fim nessa papelada velha de uma vez por todas e superar isso de uma vez. E a fogueira de ano novo parece ser a ocasião perfeita para isso. Felizmente, ouvi o sinal tocar. Arrumo o material o mais rápido possível e desço correndo para não pegar a fila interminável que se forma no refeitório também na hora do almoço. Um breve intervalo me aguarda, e depois mais aulas.

***

— Ei! — Evan insiste em roubar batatas fritas do meu prato, mesmo já tendo terminado um prato cheio de comida. Ameaço espetá-lo com o garfo. — Olha que eu já espetei a mão de um cara em um restaurante, só porque ele toda hora metia a mãozona na minha mesa pra roubar o ketchup. Imagina o que eu faria se ele estivesse roubando minhas batatas.

— Tá bom, essa foi a última. E aquela notícia imperdível que fez você gastar todos os meus dados para ler, era sobre o que? — O início do noticiário na televisão muda do refeitório faz o loiro lembrar que eu estava procurando por notícias na hora da aula.  

— Nada demais. Quer saber, mudei de ideia, não vou mais voltar a desenhar nada.

— Ué, porque?

— Ah... vou ficar bem atrapalhada. — Invento uma desculpa que não deixa de ser um pouco verdade. — Você sabe, quando eu gosto de fazer alguma coisa, é fácil colocar aquilo acima de tudo. Aí daqui a pouco chegam as provas e desenho nenhum vai me salvar. E sabe o que me deixou feliz com essa decisão?

— Fala.

— Nossa fogueira vai ser ainda maior esse ano! — Abro um sorriso tão grande que minhas bochechas chegam a doer.

— Ah, não! Você não vai queimar os seus desenhos! — Ele tem um sobressalto, como se eu tivesse falado algum tipo de absurdo. — Qual é, eles estão muito bons! Tem até alguns coloridos, não sei como você consegue pensar em jogar eles fora, devem ter dado um trabalho enorme!

Antes que ele comece a enumerar razões para eu não jogar aquela pasta toda fora, falo em um tom mais sério:

— Evan, chega. Eu vou queimar aquilo tudo e não adianta tentar me convencer do contrário. Se você quiser os coloridos, a pasta está em cima da minha mesa, pode pegar e guardar com você.  

Ele leva a sério meu conselho e eu juro que nunca vi meu amigo correr tão rápido. Parece até que a pasta estava programada para se auto destruir logo depois que eu mencionasse o fato dela ser incinerada. Talvez eu deva ficar lisonjeada agora porque isso significa que ele não estava exagerando em todas as vezes em que elogiava meus desenhos. Ou talvez ele estivesse fazendo aquela cena toda só porque somos amigos mesmo. Aposto que as poucas folhas que ele salvar da fogueira não vão ter um destino melhor do que estavam tendo naquela pasta, esquecidas no fundo do armário tendo como companhia a poeira que se acumula naqueles cantinhos mais difíceis de limpar. Alguns minutos depois, um Evan ofegante volta à mesa, se jogando na cadeira em uma postura desleixada para recuperar o fôlego depois de subir e descer alguns lances de escada correndo.

— Então, voltando ao que estávamos falando antes — retomo a conversa — quando vamos fazer a nossa fogueira?

— Acho que dá pra ser nesse final de semana. A Melanie também vem, tudo bem? — A respiração difícil dele faz com que algumas palavras saiam entrecortadas.

— Tranquilo. — Dou um leve sorriso — Então agora é que o ano vai começar.

Assim que o sinal toca e voltamos para a sala de aula, me certifico de que Evan pegou para si só algumas folhas de papel dentre as que estão naquela pasta — porque ele é o tipo de pessoa que poderia muito bem pegar o conteúdo todo só para ficar me aborrecendo depois com coisas tipo “essa história tinha futuro, mas você parou de desenhar, mimimi” — e parece que ele pegou bem poucas páginas. Devem ter sido os poucos desenhos coloridos, ou então os retratos realistas, lembro que ele gostava desse estilo de desenho. E também não faz sentido ele pegar um ou outro rascunho de história em quadrinhos fora de um contexto. Mas agora que ele já pegou o que queria, não preciso me importar mais com isso.

***

Depois de quatro longos dias de espera que mais pareceram dois meses cada, percebemos que temos muitas coisas para queimar. Muito disso é porque o colégio tem um sistema de apostilas que são praticamente trocadas em uma base mensal e ao mesmo tempo são disponibilizadas online, mas os professores exigem as cópias físicas durante as aulas. Então imagina só, sempre temos zilhões de apostilas de zilhões de matérias diferentes todo ano, mais as dos anos passados. A fogueira realmente é a maior que já fizemos até hoje. E maior que ela, só mesmo o sentimento de liberdade que essa “tradição” está trazendo para mim. É como dar um fim na ingênua desenhista para que a jovem adulta séria possa surgir aos poucos. E talvez isso não passe de uma impressão dos meus olhos, mas o fogo parece tão... diferente de todas as outras fogueiras que já fizemos. As chamas parecem ter mais vida, e eu posso jurar que dessa vez as fagulhas se lançam ao ar como se dançassem, tão exuberantes que posso jurar que cada uma delas acredita que tem o poder e a beleza de um fogo de artifício. Se tivéssemos assado marshmallows, eu poderia dizer que a minha percepção distorcida era efeito de uma alta dose de açúcar no meu organismo, mas está sendo uma noite isenta de guloseimas, só com algumas recordações do ano passado e conversas sobre coisas bobas. Aliás, a namorada do meu amigo está se revelando uma pessoa bastante agradável. Ela aceita a nossa estranha brincadeira de queimar coisas numa boa, e faz questão de permanecer ao lado do namorado até a hora de apagar tudo com segurança, sem medo de ficar com os cabelos cor de rosa impregnados pela fumaça. É interessante ver a menina gordinha e calada ficar mais falante e espontânea conforme as horas passam e novos assuntos surgem em nossas conversas.

Começamos com as apostilas e depois vamos jogando qualquer papel que não importe mais para nós. Melanie não tinha apostilas velhas, mas contribuiu com páginas de um antigo diário e suas muitas circulares de recuperação escolar. Ainda existem alguns protestos da parte do Evan quando abro a pasta dos desenhos, mas apenas um gesto meu indicando silêncio faz com que ele entenda que eu estava mais do que certa em minha decisão. Prefiro não bancar a dramática e fazer a cena melancólica de jogar uma página por vez. Separo e queimo pequenos grupos de folhas sem nem olhar duas vezes para eles. Por mais que pareça besteira, penso nisso tudo também como uma espécie de funeral para todas as ideias que eu havia registrado naqueles papeis. Os desenhos rapidamente se tornam cinzas, mas eu gosto de acreditar que as ideias das quais eles eram formados ainda permanecerão vivas e se misturarão ao ar juntamente com a fumaça que sobe rumo ao céu até desaparecer. E quem sabe um dia meus personagens e histórias não renascerão? Serão fruto das mesmas ideias, somente escritos ou desenhados por outras pessoas, talvez cheguem até alguém com talento ou determinação suficiente para mostrá-los para o mundo. Talvez isso tudo não passe de um pensamento fantasioso nada compatível com a minha idade. Mais uma vez penso que me livrar do passado é só uma questão de planejamento para continuar a vida. Afinal, logo planejo cursar a faculdade, e quanto menos coisas eu tiver para levar na mudança, mais prático vai ser todo o processo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Moral da história até agora: Biscoitos de morango são gordurosos e Clair toma decisões drásticas demais.
Sintam-se livres pra curtir, comentar, me tacar na fogueira, etc.
A partir da semana que vem, as atualizações acontecerão mensalmente.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Asas Quebradas" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.