Black Desert escrita por Kallin


Capítulo 9
Uma Rivalidade sem Solução




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/711599/chapter/9

— "Ora ora, então o "grande prodígio" resolveu dar as caras mais uma vez?"

Uma voz nada amigável porém bem audível de repente surgiu em meio as meninas que passavam confusamente para lá e para cá ao fundo da sala, tapando elas de nossas vistas a silhueta da pessoa que tentara debochadamente se dirigir até mim.
Só que, mesmo sem a confirmação de nossos olhos, todos nós -quase que ao mesmo tempo- paramos o que estávamos fazendo e simplesmente encaramos a direção da qual tal voz surgiu... já sabendo que pela mera presença da dona daquela voz no recinto, uma confusão estaria agora para facilmente começar.

— " ... Saret..."

Eu então respondi ao vento em um tom completamente desanimado, como se anunciasse o óbvio a mim mesmo, ao que meu corpo se levantou da poltrona sem sequer considerar confirmar de quem era o real dono daquela voz (por partes porque eu não queria, e por partes, porque eu também sequer precisava)...
Ao que ela própria então surgiu finalmente diante de mim, sem qualquer tipo de cerimônia ou do desejo de recuar daquele nosso desnecessário encontro. Uma garota da minha altura, com cabelos pretos, compridos e comportadamente lisos que caíam por sobre seus ombros. Olhos amarelos e afiados, que por vezes ameaçavam serem cobertos por uma franja preta perfeitamente reta e cheia. E um corpo pálido e delicado -que facilmente entregava sua origem vinda de longe dos desertos-, ao qual uma comprida e grossa capa de couro o recobria quase que até os pés -a mesma capa que muitas das outras meninas da clínica também usavam como uma espécie de uniforme.
Sendo que por baixo daquela capa, dava-se para perceber também roupas curtas e justas para facilitar seus movimentos. Assim como cintas pretas de couro contornando firmemente sua cintura, e uma espécie de túnica da cintura para baixo que se emaranhava à essas cintas e recaia por sobre suas pernas. Uma túnica que aliás era fendida na frente para -igualmente às minhas roupas- não a atrapalharem durante quaisquer movimentos que fizesse, ao que com isso, com os frascos presos em sua cintura, e com o bastão escuro de ferro que ela carregava firmemente em sua mão, não dava para se imaginar outra coisa senão que Saret possuía uma natureza tão pouco sedentária quanto a minha.

Porém não era só em sua aparência física que Saret realmente se destacava... Sua característica mais notável era na verdade a aura firme, crítica e muito intimidadora que exalava de sua presença... Ao que sendo essa uma mistura muito forte de energias para se emanar de qualquer um, nada podiam as outras garotas fazer senão simplesmente estremecerem por um instante que fosse frente à ela. E especialmente, quando então aqueles dois olhos firmes decidiam apontar em suas direções como afiadas lanças. Desdenhando da cena à sua frente, sem sequer tentar esconder o desgosto que ela parecia sentir por me ver recebendo tanta atenção assim de uma só vez.

— "Então? O que alguém como você quer aqui? Achei que era bom demais para esse lugar!"
— "...Também é bom te rever... Saret..."

Ao som de minha resposta extremamente sarcástica e apática, Saret então apertou um pouco mais os seus olhos em desagrado. Dando com isso 3 novos passos em minha direção, e repelindo quase que instantaneamente as outras garotas de perto de mim. Ao que em um gesto de vaidade, sua mão se apoiou em sua cintura afastando sua capa do corpo, e revelando os vários frascos cheios de líquido em um sinal de que a Clínica não precisava de qualquer ajuda minha, ou dos meus serviços para ter os seus estoques de medicamentos supridos -ela podia fazer muito bem por eles tudo o que eu já fazia.

Aquela mulher chamada Saret nada mais era do que uma das (várias) feiticeiras que faziam parte do grupo de Sal, só que ela não era qualquer uma ali dentro também.
Talvez por sua imensa dedicação, ou seja lá qual for a sua história, Saret acabou se tornando muito rapidamente uma das melhores alunas de Sal ali dentro. E ela não tinha comedimento nenhum para mostrar aquilo para quem quer que fosse, ao que claramente seu orgulho -ou a sede por se orgulhar de si mesma- ficava extremamente estampado em tudo que fazia.
Um orgulho que poderia afastar as pessoas, se por outro lado Sal não fosse gentil o suficiente para simplesmente ter abraçado Saret pelo que ela era, e ter usado isso ao favor da Clínica. Colocando ela assim para ser o seu braço direito, já que sua imensa dedicação em não falhar a capacitou para fazer muitos dos serviços complicados que as outras garotas ainda não podiam fazer.

Só que, mesmo dando até hoje à Saret todo o reconhecimento que ela poderia querer em troca de seu esforço anormal, Sal ainda sim não conseguia dar 1 única coisa à ela. A única coisa que a essa altura irritava-a muito não ter. A garantia de que suas habilidades estavam também acima das minhas. Ou melhor dizendo, acima das de alguém que nunca se esforçou tanto quanto ela, ou se dedicou tanto àquela Clínica e à Sal como ela.
E foi assim que Saret acabou com o tempo cultivando uma desagradável rivalidade contra mim... Não porque ela era uma pessoa difícil de se lidar, mas sim, porque aos olhos de Sal ela nunca iria conseguir estar um degrau acima de mim -como feiticeiro. E assim sendo, ela nunca conseguiria ser exclusivamente a pessoa que Sal mais poderia se orgulhar de ter por perto também.
"Se bem que... Sinto que mesmo se não fosse esse o caso entre nós dois, ainda sim continuaríamos a não nos dar bem. Afinal nossos gênios são fortes demais para sequer desejarmos conviver direito um com o outro."

— "S-Saret, você já está de volta?"
— "Você já fez a entrega que Sal pediu? Como o Ebraín está?"
— "Ele mandou alguma encomenda para nós? Eu posso guardar para você se quiser!"

As meninas então de repente -como se tivessem se recuperado da surpresa- tentaram subitamente cercar Saret com várias perguntas, fazendo um muro entre ela e eu! Ao que quando eu notei elas discretamente se intrometendo entre nós dois, nada mais desejei fazer senão aproveitar que sua atenção havia sido roubada para eu também virar meu corpo para outro lado e fingir que ela simplesmente não estava ali -falsamente acreditando que aquilo iria funcionar, mas verdadeiramente desejando que pudesse dar certo.
Afinal, se dependesse apenas de mim eu realmente não iria ficar tentando começar discussão nenhuma com ela. Seria perda demais de tempo para mim, quando eu mesmo não tinha nada contra ela... mesmo que Saret, por outro lado, pudesse ter tudo que fosse possível contra mim.

E no que o mero entreolhar entre nós dois passou a agravar mais e mais a pertinente tensão ali dentro sem qualquer demonstração de que tal momento iria se desgastar, foi que então, com apenas uma voz inesperada vinda por trás de mim foi que tudo pôde se extinguir.
Uma súbita voz, que mesmo sem fúria ou firmeza, conseguiu bruscamente se sobrepor às de todas as outras meninas dentro daquele cômodo.

— "Ah, Saret! Vejo que voltou, e que também já notou quem resolveu nos fazer uma visita hoje!"
— "... Preferia não ter notado!... Com todo respeito."

Não cedendo muito ao momento, mas logo corrigindo às pressas a sua atitude, Saret então virou o seu rosto frustrado para a minha direção mais uma vez. Ao que Sal surgira na porta atrás de mim, limpando suas mãos com um pano branco e portando o mesmo sorriso de sempre -incólume diante da situação que fosse.
E assim sendo, Sal então deu alguns passos inadvertidamente até se prostrar entre nós dois. Permitindo com a sua presença que as outras garotas aliviadamente pudessem abandonar-nos ali sem temerem pelo começo de uma briga, ao que junto delas, Saret também quase partiu. Dando ela alguns passos para trás, e se afastando na medida em que Sal se aproximou daquele pequeno tumulto formado ao nosso redor. Sinceramente ela podia ser um estorvo, mas por sorte seu respeito e o seu esforço em se demonstrar sempre disciplinada perto de Sal continuavam sendo muito maiores do que qualquer que fosse o insaciável desejo seu de me perturbar.

— "Como estava Ebraín hoje?"
— "Bem, como sempre. Ele disse que enviará mais tarde alguns dos tônicos que já estavam acabando... e também mandou lembranças."
— "Ótimo, ótimo! Às vezes não sei como eu daria conta de conseguir todos os suprimentos dessa clínica sem a ajuda dele! Nossas habilidades podem até dar conta dos tratamentos mas, são os remédios que realmente os ajudam a se recuperar."

Sal, ao que terminara de falar, discretamente então repeliu com sua presença Saret ainda mais de mim sem que sequer eu pudesse antes ter notado! Se posicionando ainda mais entre nós dois como se cortasse nossos campos de visão, igual à uma mãe, que se posicionava como um escudo entre seus dois filhos para que eles parassem de brigar. Me fazendo por fim até querer respirar mais aliviado, se não fosse pela parte de que eu me recusava em dar à Saret o gosto dela notar aquele meu desconforto!
Só que uma coisa eu sempre tinha que concordar. Realmente apenas a presença e a esperteza de Sal já eram suficientes para acalmar todo e qualquer clima estranho que ousasse tentar surgir dentro de sua clínica. Ela possuía o respeito de todas as meninas e pacientes ali dentro, e, sabendo disso era que então ela jamais se poupava em manter o controle das situações que pudessem envolver seu tão estimado território -mesmo que o fizesse porém com um jeito não mais do que astutamente dócil.

E logo no que Saret também notou não haver mais a possibilidade de me hostilizar ali dentro, ela então acabou relaxando os seus ombros em uma possível desistência, afrouxou os barbantes de couro de sua capa que se entremeavam na altura do seu peito, e escapando com seu olhos para o resto do cômodo ao nosso redor -muito provavelmente procurando outra coisa melhor para fazer, mesmo que seu corpo por outro lado não demonstrasse ainda o desejo de sair dali para me deixar sozinho com Sal.
Sendo assim Sal então sorriu ante a óbvia postura teimosa de Saret e se voltou mais uma vez para a minha frente. Dirigindo-se até o meu lado, ao que mesmo com sua aprendiz ainda por perto, ela jamais se intimidara em demonstrar que confiava na capacidade de Saret de lhe dar um instante de privacidade para conversar à sós com quem ela quisesse -mesmo estando Saret ainda tão perto.

— "Yura, eu já terminei a transfusão. O rapaz está agora com as meninas estabilizando a circulação de sangue do seu corpo, para então cuidarmos do ferimento dele e mandá-lo de volta para casa... Agora, gostaria de me dizer quem afinal é esse nosso convidado surpresa?"
— "Eu-... Eu realmente não sei nada sobre ele, Sal. Me perdoe por esse meu descuido."
— "..."
— "... Sal?"
— "!... Hehe, está tudo bem, não precisa ficar preocupado. Mas vejo que precisaremos então descobrir o que aconteceu com ele, assim como quem ele é. Não concorda?"
— "Sim, eu pretendo descobrir tudo isso antes que ele vá embora. Não se preocupe, eu não vou arriscar a Clínica por um mero descuido meu."
— "Certo, vou então deixar essa responsabilidade em suas mãos Yura, mas não deixe que as meninas saibam disso. Elas confiam em você, mas irão se preocupar atoa caso descubram que você sabe menos de nosso convidado do que deveria. E esse tipo de preocupação, não precisa chegar até elas fora de hora."

Sal e eu sussurramos um para o outro, aproveitando o momento de completa desatenção de Saret ao nosso diálogo para poder dividir aquelas breves frases. Ao que eu a ouvi sem mudar muito a minha própria expressão, e sutilmente balancei minha cabeça em concordância com cada uma de suas ordens.
Eu sabia que Sal, assim como eu, precisava constantemente estar a par de tudo que acontecia dentro daquela cidade. E em especial dentro de sua própria clínica, sem que suas meninas fossem diretamente envolvidas toda hora. Afinal, (por razões diferentes) nós dois vivíamos muito imersos nas margens da sociedade e suas ondulações, nos arriscando sozinhos muitas vezes em assuntos complicados, e nos envolvendo com situações delicadas demais que interligavam grupos muito extensos de pessoas -pessoas ruins, e pessoas boas.
Toda e qualquer informação sobre o que acontecia na Citadela, mesmo não nos envolvendo diretamente, acabaria podendo ser vital para os nossos outros assuntos mais pessoais! E por isso que qualquer coisa que não sabíamos, se tornava por si só necessário de ser descoberto o mais rápido possível. Fosse isso algo importante, ou não. Qualquer tipo de informação, por menor que fosse, tinha o seu valor aqui dentro.

E isso era porque, para todos que viviam não só no Gargalo mas também em outros locais -ou situações- igualmente precários aqui dentro, estar sempre à frente dos problemas era uma arma muito poderosa de se ter ao alcance! Fazendo assim com que informações se tornassem uma moeda de troca por dentre os becos mais sórdidos, e o escudo mais firme que poderíamos empunhar pela nossa própria sobrevivência.
Um grande diferencial que fez com que, além de todo o trabalho com a clínica e com suas alunas, Sal também passasse a participar das maiores e mais exclusas redes de informações que compreendiam grandes partes da Citadela. Tudo, para que sua influência interna então pudesse se tornar grande o suficiente para proteger aquilo que ela mais amava. Seu trabalho, e suas protegidas.

Enquanto que eu, por outro lado...
Eu não tinha nenhuma afiliação em particular para representar ou procurar proteger, mas como eu conhecia gente demais pela cidade, e boa parte dessa gente fazia parte de alguma rede de informações diferente, eu então acabava me tornando um alguém capaz de adquirir facilmente qualquer tipo de notícia antes mesmo dela acontecer. Circulando-a por entre todos os grupos possíveis caso assim eu o quisesse, ou guardando-a apenas para mim pela necessidade que eu pudesse vir ainda a ter.

Se bem que eu estaria mentindo se dissesse que realmente vivo como um informante aqui dentro, porque eu não cobro sempre por essas informações, e nem faço disso a minha vida (eu apenas tenho minhas razões para querer agir assim).
E eu apenas funciono dessa forma, porque... houve um momento aqui dentro em que eu vivi totalmente alheio e despreocupado ao que acontecia na Citadela. Sendo que foi por culpa dessa minha ignorância, que muitas coisas ruins conseguiram acontecer ao meu redor sem que eu pudesse ter controle sobre elas. Tudo, porque eu não tive como prever e me preparar para o pior... tudo, porque eu escolhi ser desinformado.
E foi por isso que desde então eu passei a fazer questão de sempre estar a par de tudo que acontece aqui dentro -para então, sempre estar afrente também do que poderá acontecer.
"Assim... talvez eu possa evitar no futuro perder as poucas pessoas que ainda são próximas a mim. Mesmo que isso signifique estar me apegando demais à 'uma culpa do passado da qual não sei me livrar', como alguns me acusam até hoje de fazer."

Só que de repente então, como me tirando de um breve momento de reflexão, uma batida incomum foi ouvida vindo mais uma vez da porta de entrada! E sabendo que não estavam esperando ninguém, assim como, que todas as suas meninas já estavam ali dentro, Sal então logo -em reação- franziu os seus olhos! Ao que Saret, como quase recebendo um comando indireto, empunhou seu bastão e lentamente foi até a porta... com um jeito muito desconfiado.
Cruzando o caminho de várias outras garotas, ao que, em seu rastro atentivo cada uma delas também pararam, todas se voltando para aquela solitária porta e madeira ao fim da sala, em um clima misto de suspense e cautela.

Mesmo sendo essa uma clínica da qual as pessoas pobres dependiam demais, depois de vários acontecimentos complicados, Sal começou a frear a forma ativa que os atendimentos eram conduzidos ali dentro. Passando agora a apenas enviar suas meninas para cuidar das pessoas em suas próprias casas, podendo assim com isso dispersar e ocultar um pouco melhor a localização do seu grupo dentro daquela cidade. O que dissolveu aos poucos a presença das Feiticeiras pelas várias ruas e becos da Citadela, até que seus rastros -e sua própria existência- se tornassem nada mais do que um grande mistério para as pessoas vindas de fora.

E suas razões por trás dessa atitude não chegavam a ser um segredo para mim. Eu sabia que ela andou precisando cortar muito sua exposição nos últimos meses para despistar algumas pessoas perigosas, ao que o custo disso, estava sendo todo esse cuidado que nós -conhecidos e clientes mais antigos- tínhamos que passar a ter para não entregar a localização delas também. Assim como o próprio cuidado que as meninas dela tinham que ter para não chamar atenção alguma em meio às ruas, enquanto iam pessoalmente até seus pacientes para tratar deles.

Um cuidado necessário que me faltara até um instante atrás, e que agora, começara a me preocupar ainda mais pelo tipo de pessoa ou de problema que eu poderia ter trazido aqui para dentro, apenas por ter me importado com a vida daquele homem!
"Ainda por cima se ele acabar sendo um risco para esse lugar, não vou poder deixar ele vivo no fim das contas... Espero não ter que me arrepender do que fiz depois de tudo isso!"


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Black Desert" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.