Black Desert escrita por Kallin


Capítulo 7
A chegada de Sal




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Refletindo um pouco sobre tantas coisas enquanto eu continuava a transfusão, aos poucos consegui reparar que o homem na minha frente começara a ganhar mais cor parecendo voltar lentamente às suas forças e à sua própria consciência...
Nossos métodos certamente pareciam grosseiros, primitivos e não muito confiáveis, mas tínhamos todo o treinamento para que nossas técnicas fossem extremamente efetivas -até mais do que os Skreas que dependiam cegamente de sistemas e tecnologias para salvar vidas em seus Hospitais-.
A grande diferença entre o nosso método e o deles, era simplesmente o fato de que tínhamos controle total do que fazíamos. Graças as nossas capacidades, nós podíamos sentir as reações internas no corpo das outras pessoas, sabendo melhor como agir e quando agir diante de qualquer que fosse o problema durante um tratamento.
Eu por exemplo podia sentir por onde deveria passar o sangue da própria pessoa, ajudando-o se preciso a circular pelo corpo dela caso eu tentasse fazer isso. E também podia sentir todo tipo de líquido estranho (ou não) fluindo no corpo de alguém, assim como aquele que também não estava mais dentro do corpo.
Relembrando minhas palavras, todos os líquidos eram como uma extensão dos meus sentidos e dos meus desejos...
E ainda por cima, como a água e o sangue conseguem ser diferentes diante da nossa visão, do nosso olfato, do nosso paladar... esse sentido extra que fluía dentro de mim também conseguia distinguir qualquer tipo de líquido, um do outro sem que eu precisasse depender dos meus outros sentidos... era como saber dentro de mim qual era a composição daquilo que eu podia sentir, da mesma forma que quando nos sujamos e conseguimos perceber qual é o tipo da sujeira usando apenas o nosso tato.
E caso eu tivesse ficado sob a guarda de Sal e aprendido medicina com ela, eu acredito que teria sido capaz até mesmo de saber diagnosticar grande parte das doenças que uma pessoa pode adquirir, afinal... o corpo humano é composto em grande parte por água.
Mas é claro que em meio a tanta teoria eu ainda preciso concentrar minhas vontades e estar suficientemente perto da pessoa para conseguir fazer tudo isso... Porque se eu não estiver focado pensando no que quero fazer, eu simplesmente não farei.
E esse é o limite conhecido dos meus poderes. Todo o resto cabe apenas a mim, à minha imaginação e à minha concentração para ser feito.
"Pelo menos se tratando me mim..."

De repente, da sala dos fundos pude ouvir batidas fortes vindo da porta de entrada. Antes que um misto de alívio e medo me dominassem por imaginar que as meninas de Sal pudessem ter chegado, assim como também pudesse ser alguém que seguira o rastro de sangue até ali, eu resolvi apenas limpar minha mente voltando apenas a manter meus olhos nítidos no que eu estava fazendo mesmo. Só por aquele segundo de distração com meus sentimentos, 2 gotas de sangue pingaram no chão ao que escaparam facilmente do meu controle e do meu foco.
Sabendo que eu não podia me preocupar com esse assunto, sem falar nada Kuki me deu as costas indo tranquilamente até a frente para atender a porta, aparentemente bem despreocupada.
Eu consegui em pequenos instantes levantar minha guarda ao que tentava dividir a minha atenção entre o que eu estava fazendo, e muito possivelmente o que eu iria ter que fazer caso realmente fosse um intruso... Porém toda e qualquer preocupação minha logo desapareceram quando pude ouvir diversas vozes femininas ao mesmo tempo preenchendo a sala da frente com bastante vida e animação.
"Finalmente chegaram..."
Eu disse para mim mesmo, relaxando meus ombros e aliviando minha tensão... Agora nem mesmo se algum intruso aparecesse, eu iria precisar me preocupar.

Logo que eu me deixei levar pelo alívio, pude ouvir passos com um ritmo próprio -pesado porém tranquilo- entrando na sala aonde estava, esse barulho mal ecoava aqui dentro em contraste com a barulheira vinda da sala da frente que começava a crescer desproporcionalmente... Finalmente sem mais demora ou outro tipo de anúncio, uma gentil mão tocou meu ombro por trás...
Sem me virar para a pessoa correndo o risco de perder totalmente o foco, eu continuei a me manter totalmente imóvel e indiferente à esse gesto.

— "Obrigada pelo que fez até agora, pode deixar que eu assumo daqui."

Uma voz carinhosa porém já de idade soou do meu lado, ao que duas mãos largas porém gentis invadiram meu espaço começando a imitar meus exatos movimentos e lentamente tomando a posição em que eu estava, como se tentasse roubar minha dominação.
Assim que confirmei que era Sal do meu lado, eu parei completamente de manter os meus gestos e dei alguns passos para o lado me afastando, cedendo o processo de transfusão para ela que mal parecia ter sofrido com a troca de Feiticeiros.
Aquela era Sal, a líder daquele grupo de Feiticeiras D'água curandeiras. Ela era uma senhora já de idade, um pouco baixa por culpa de suas costas já semi-arqueadas, com grisalhos cabelos amarrados em um coque imperfeito e um constante sorriso que parecia impossível de ser destruído... Sal também usava túnicas simples e comprida de cores claras, assim como uma longa e antiga capa marrom com capuz para se proteger do tempo do lado de fora e um cinto vagamente visível em torno de sua cintura que assim como o meu também carregava algumas coisas úteis.
Sendo a mais experiente curandeira da cidade, desde que eu a conheci Sal gastava todo seu tempo recrutando, acolhendo e ensinando as outras meninas... Eu nunca vim a aprender sobre os seus motivos para fazer isso, mas ela sempre pareceu ter vocação para se importar com as pessoas e cuidar delas desde que eu a conheci. E mesmo que se trate de alguém como eu que continua constantemente se afastando desse grupo, Sal ainda sim jamais deixou de me receber com um extremo orgulho e carinho em seu coração, como se realmente eu fosse um filho para ela. Ela tem essa tendência de jamais deixar a distância e o tempo diminuir seu amor e sua preocupação por cada um de seus alunos.
"Sal nunca teve uma família, marido, filhos... Por isso talvez ela se dedique tanto às pessoas que ela escolhe acolher."

— "Você deu muita sorte senhor, de que Yura estivesse aqui...!"
— "?"
— "... Não é qualquer um nessa clínica que tem a habilidade refinada o suficiente para ser capaz de fazer uma transfusão."

Sal começou a falar com o homem quando brevemente se virou para mim, sorrindo orgulhosa sem que nem mesmo a transfusão fosse prejudicada.
"Alguns podem achar que o nível de controle do meu dom é anormal, mas está longe de estar no mesmo nível do dela... O que ela consegue fazer só se consegue depois de décadas de treino..."
Contrariando porém meus pensamentos, eu me foquei apenas na reação inusitada dela de orgulho, e acabei abaixando um pouco minha cabeça enquanto puxei um pouco mais o pano que contornava meu rosto, cobrindo meus olhos e tirando-os do alcance dos dois, sem jeito...
Diferente de todas as meninas que estavam nesse grupo, eu jamais fui realmente ensinado por Sal e nem por ninguém à usar esse dom. Tudo que eu tentei aprender a fazer com ela não tomou de mim mais do que alguns momentos de observação, para descobrir no fim que eu já sabia como fazer de primeira. Diferente do que é o comum entre nosso tipo de gente, tudo sempre me veio muito rápido e naturalmente se tratando dessa habilidade. E ainda sim contrariando minha expectativa, ao invés de me considerar imaturo, perigoso ou indisciplinado demais... Sal apenas sempre disse ter orgulho de mim por eu ser dessa forma que era, mesmo nunca tendo precisado dela... e isso realmente me deixava sem graça.
"Eu não fui criado para lidar com a admiração das pessoas..."

— "-Ah! Yura!"

Quebrando aquela situação constrangedora e silenciosa, eu me virei ao som de uma voz diferente vindo da porta, apenas para ver Kuki entrando mais uma vez na sala como se estivesse indo em direção a Sal, mas mudando de ideia e do nada se virando para a minha direção, apontando seu dedo para o meu peito com toda uma atitude pré-adolescente.
A altura e o físico de Kuki comparado ao meu era muito menor, mas mesmo assim ela falou com bastante imposição, enquanto olhava por baixo dos meus panos para conseguir me encarar nos olhos:

— "Seu manto está completamente sujo de sangue!! Vamos, tire ele, eu vou lavá-lo antes que você vá embora!"
— "N-não precisa! Eu estou bem assim!"
— "Não seja teimoso! Eu lavo bem rápido! Vamos, me dê ele logo!"

Estendendo suas mãos para pegá-lo, mas quase que decidindo por si própria arrancar de mim o pano que me cobria todo, Kuki me encarou determinada a não ser convencida do contrário.
"...Quem é o teimoso aqui?"
Tentando entender porque ela entrou tão subitamente naquele assunto, eu levei alguns segundos para computar a situação e finalmente olhar perdidamente para baixo para notar que eu realmente havia me sujado um pouco (provavelmente enquanto estava carregando aquele homem até lá)...
"Aiai... Nunca é bom me expor aqui, mas vai ser pior ainda se eu andar pela cidade sujo dessa forma..."
Pensando nisso enquanto encarava a parte suja do manto, eu soltei um suspiro sabendo que realmente seria melhor deixar ela lavá-lo para mim... Sendo assim, aos poucos comecei a me desenrolar do pano ainda um pouco relutante em me descobrir...
Eu tinha as minhas razões para ficar coberto por ele sempre que possível, e essas razões não eram poucas.

Assim que eu me despi do pano e entreguei nas mãos de Kuki, ela soltou um sorriso de vitória quase pulando de alegria por ter conseguido que eu cedesse tão facilmente. E sem perder nenhum tempo a mais, ela correu para fora da sala toda animada com o pano nos braços quase como se eu nunca mais fosse vê-lo de novo...
Sinceramente... Eu pude apenas passar a mão na minha cabeça enquanto me perguntava como uma pessoa podia ficar tão animada em lavar uma roupa.
... Mas... até que eu consigo entender se eu parar para pensar...
Kuki ainda era jovem e muito recente dentro do grupo... Aquela era apenas a segunda vez que eu a via, já que ela havia sido acolhida por Sal a menos de alguns meses. E por isso, ela mal tinha tido chances de usar sua própria magia ainda. Afinal, se tratando da vida dos pacientes ali dentro, Sal sempre foi muito rigorosa e exigente com as meninas que podiam ou não participar nos tratamentos.
E tirando os tratamentos, não restava realmente outras boas chances para se treinar ali dentro livremente... Então nem que fosse para lavar uma roupa, eu imagino que para ela isso podia ser muito libertador. Assim como para mim também sempre foi libertador poder usar e estar em contato com esse nosso dom à toda hora.


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