Black Desert escrita por Kallin


Capítulo 6
Transfusão




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Sem parar para olhar muito a menina que parecia estabanadamente tentar arrumar as coisas ao meu redor tentando me dar passagem, eu arrastei o homem que já estava querendo fechar seus olhos e que parecia não estar mais aguentando ficar em pé até uma porta semiaberta que dava para a sala dos fundos...
A sala era enorme e muito bem iluminada, ela tinha um limpo piso branco de azulejo assim como paredes brancas, várias divisórias com cortinas, equipamentos e armários com diferentes tipos de medicina e cadeiras que podiam ser inclinadas e transformadas em macas se necessário.
Eu sentei o homem em uma das cadeiras procurando novamente a menina com meus olhos, que logo apareceu atrás de mim preocupada com o estado do homem que eu trouxe.
Assim que ela parou do meu lado eu a questionei sem muito tempo a perder:

— "Aonde está todo mundo? Você está sozinha aqui?"
— "T-todas saíram para atender emergências... o que houve com ele?"
— "Essa não... Eu o encontrei ferido na praça do museu, ele já perdeu muito sangue e precisa de uma transfusão o mais rápido possível."
— "T-transfusão?! ... e-eu não sei se já consigo fazer algo desse nível sozinha, Yura!..."
— "As outras vão demorar a voltar?"
— "Não sei te dizer..."

A garota abaixou sua cabeça preocupada, sabendo que não havia nada que ela podia fazer sobre aquilo.
Olhando através de meus panos para a sala praticamente vazia, e finalmente para o homem que parecia mais aliviado por estar sentado, mas ainda completamente sem forças, eu decidi:

— "... Certo... Parece que não tem jeito, eu mesmo farei essa transfusão."
— "O-oque?!-"
Quase dando um pulo do meu lado, a menina disse surpresa, mas com um certo alívio escondido em sua voz.
— "Kuki, me arrume todos os equipamentos... Não vai dar para esperar elas."
— "O-Ok Yura!!"

Falando isso, a menina fez um gesto de continência, e correu recolhendo algumas ferramentas e uma bandeja de metal com um suporte da minha altura, para colocar tudo em cima.

— "Ei, preciso que você me diga o seu tipo sanguíneo..."

Eu disse para o homem enquanto tentava chamar sua atenção com minha mão, ao que ele parecia estar já delirando um pouco, vagando seu olhar pela sala sem muito fazer sentido.
Fracamente ele me respondeu levantando sua mão e fazendo o número 3 com os dedos. Antes mesmo que eu pudesse dizer para Kuki qual bolsa de sangue precisava ser pega, ela já soltou um alto "Ok" por trás de mim, correndo até os fundos para pegá-la.
Tentando me deixar mais confortável para fazer o procedimento, eu soltei um pouco o manto que estava ao redor dos meus braços e rosto ainda sem descobri-los, apenas para que meus movimentos pudessem melhorar enquanto ela despejava a bolsa inteira de sangue dentro de um refratário de metal do meu lado.
"Já tem um tempo que eu não faço isso, espero não estar enferrujado."

Sem gastar mais tempo eu separei as mãos do homem de seu ferimento sem que ele mostrasse resistência alguma, e então finalmente pude ver melhor a profundidade em que estava a perfuração, assim como o sangue que começara a sair mais intensamente sem nada para impedi-lo. Antes que aquilo pudesse continuar eu apenas estiquei dois de meus dedos próximo o suficiente do ferimento, e a hemorragia cessou por completo como se ela nem mesmo existisse.
O homem mesmo fraco soltou uma expressão de espanto ao ver aquilo, aquilo que para mim ou Kuki não era mais do que normal.
Finalmente olhando para ele com uma expressão séria, eu disse:

— "Você agora talvez se sinta um pouco estranho, algumas partes do seu corpo também poderão ficar dormentes porque vou mexer com o fluxo do seu sangue, mas será uma sensação temporária... E procure não se mexer."

Falando isso, eu não dei tempo do homem de responder. Eu apoiei minha mão livre sobre o refratário com o sangue de reposição e comecei a lentamente fazer gestos sobre ele com minha mão como se quisesse tirar o sangue daquela vasilha apenas com a minha mente, convidando-o a sair lentamente lá de dentro com meus gestos, e guiando-o até mim...
O homem aos poucos não estava mais olhando espantado para aquela cena, ao que parecia que ele já se questionava se o que via era real ou apenas uma alucinação.
Kuki por outro lado olhava intensamente o processo que tanto queria um dia ser capaz de fazer também, ficando ali do meu lado disposta à ao menos me amparar das formas que ela por enquanto podia fazer.

Afastando meus dedos do ferimento e tentando não me desconcentrar da hemorragia que eu ainda estava contendo mais com minha mente do que com meus gestos, eu guiei com meus dedos o sangue que começara a flutuar ao redor de minha mão -da mesma forma que fizera mais cedo com a água da fonte-, e com gestos ondulados fazendo o sangue imitar esse mesmo movimento, ele lentamente começou a se transformar em uma minúscula linha que sem parar começou a ser guiada na direção do peito do homem...
Eu estava usando toda a minha concentração para isso, tentando não perder o foco um segundo sequer das várias coisas que eu estava fazendo ao mesmo tempo, e como uma tensão contagiante, ambos os dois que apenas me observavam em fascínio também se mantiveram imóveis e calados como se estivessem ansiosos para ver o que iria acontecer em seguida, e em seguida, e em seguida...
Aos poucos aquele minúsculo fio de sangue começara a perfeitamente entrar no homem como uma linha que passa por uma agulha, fluindo exatamente pelas suas veias que ao olho nu mal se conseguiam ser percebidas.
Sentindo que estava tudo correndo da forma certa, eu estabilizei os gestos movendo ainda lentamente minha mão direita para que o sangue seguisse fluidamente e ininterruptamente até o corpo do homem, consolidando o complicado processo da transfusão. Agora seria continuar com aquele exato ritmo até o fim do longo processo.

— "Isso foi incrível Yura...!"
Disse Kuki do meu lado, maravilhada.
— "Não me desconcentre."
Eu a repreendi sem tirar os olhos do que eu estava fazendo, sabendo que ela devia saber melhor do que aquele homem que aquele processo todo exigia um foco enorme para dar certo.
— "Ah! Me desculpa!!"
Ela disse se congelando novamente, ficando estática do meu lado.

Sangue... Água... Todo e qualquer líquido -não importava sua composição-, era possível de ser manipulado por mim. Cada um podia ter sua dificuldade especial graças aos seus componentes, mas não mudava o fato de que eu tinha uma enorme afinidade com todos os líquidos possíveis, e que conseguia usá-los como uma extensão de meus próprios sentidos e desejos.
Nós aqui da Citadela chamávamos as pessoas que tinham esse dom de manipular líquidos de "Feiticeiros d'água".
Não haviam melhores explicações de porque alguns humanos começaram a nascer assim -com esses dons de manipular elementos distintos-, além do que apenas a desculpa de ser tudo isso uma bênção vinda da morte de nossa deusa "Grivah".
Mas no fim das contas e das explicações, o fato era: Ou você apenas tinha isso, ou você não tinha... e quem tinha acabava procurando uma forma de treinar essa capacidade e usar para diversas finalidades, já que ninguém sabia qual era o real limite e o real potencial desses dons.

Sendo a feitiçaria algo ainda muito recente comparado aos anos de existência da nossa raça (acredito que os registros das primeiras feitiçarias datam de até 4 gerações de distância da minha própria geração), ela ainda não era muito comum no dia a dia, e mesmo que muitos aceitem isso como um acontecimento natural -um dom-, ela ainda não é tão abertamente usada pelas pessoas. Especialmente depois que o boato dos "Vessels" começaram a se misturar com o assunto da feitiçaria, e os Skreas começarem a criar problemas com os Feiticeiros também.
Por isso grande parte dos Feiticeiros (E das pessoas que se importam com eles), começaram a tornar cada vez mais a feitiçaria um ato fora do cotidiano, vindo a se tornar algo bem exótico até mesmo dentro de uma geração que já deveria estar acostumada com isso tudo... a minha própria geração.
"Bem, pelo menos as pessoas não tratam quem tem esse dom como algo ruim... Apenas ficam surpresas quando decidimos sair do anonimato e admitir que podemos fazer tudo isso..."

Porém mesmo diante dessas algumas limitações sociais, pequenos grupos ainda estão surgindo em meio ás regiões mais discretas (Até mesmo dentro de lugares como a própria Citadela), procurando ensinar os poucos Feiticeiros que surgem, à como usar seus dons para (na maioria das vezes) ajudar os outros, treinando-os para também dominarem e aprimorarem suas capacidades.
E pelos boatos que ouço vindo das outras regiões, mesmo de forma oculta, essa é uma cultura que está se tornando bem presente ao redor do mundo inteiro, já que muitos realmente precisam disso.
Aqui na Citadela, o grupo mais conhecido por entre os moradores são justamente os Feiticeiros d'água, que nada mais é do que esse pequeno grupo escondido de pessoas que praticam medicinas alternativas nessa clínica disfarçada no meio da cidade, ajudando as pessoas aqui do Gargalo e de outras regiões pobres que não podem dispor de serem atendidas no hospital dos Skreas.
Por muitas razões inesperadas porém, a localização dessa clínica e o paradeiro de todos os feiticeiros d'água precisou se tornar com o tempo realmente um segredo, e sendo cada vez mais guardado não só por quem faz parte dele, mas também pelas pessoas que são tratadas aqui. E infelizmente preciso dizer, dessa vez não são os Skreas os culpados por trás disso.
Eu já por mim não faço parte oficialmente desse grupo, e nem nunca cogitei também trabalhar nessa clínica salvando os outros, diferente das garotas que conheço e que viajaram enormes distâncias apenas para virem aqui tentar aprender com Sal a usar esses seus dons dentro da segurança do grupo.
Claro que eu não posso criticar muito a situação ou as razões delas, afinal também foi em grande parte graças a esse meu inexplicado dom que eu vim parar nessa cidade, e foi graças a esse dom que eu pude logo de cara ser bem recebido por Sal e seu grupo, impedindo que eu acabasse tendo que sobreviver de migalhas, sozinho aqui dentro... Porém aos poucos eu fui aprendendo a conquistar tudo que eu precisasse sem depender da clínica, como comida, dinheiro, um lar... trocando outros tipos de favores e serviços com as pessoas dessa região, e por fim lentamente me desprendendo de vez dos assuntos desse grupo assim como da ideia de que precisava fazer parte dele. Eu realmente não demorei para conquistar de volta minha independência.

Eu admito que todas as minhas escolhas para sobreviver aqui deram certo mais porque pude contar com a ajuda de um benfeitor no começo desses últimos 5 anos, aprendendo com ele sobre tudo que até então eu não tinha a menor ideia ou compreensão. E foi ele que também me apresentou à todas as pessoas que eu precisei conhecer para começar da melhor forma minha vida aqui, me permitindo no fim viver assim por conta própria, livre de compromissos com qualquer grupo ou pessoas que atuam dentro da Citadela.
Não importa qual seja o tipo da amarra, eu já suportei demais estar preso à pessoas que só me fizeram mal para ainda sim desejar fazer parte de novas situações ou lugares que também possam igualmente me prender. E é graças à compreensão de algumas pessoas ainda próximas a mim que eu consigo até hoje continuar mantendo essa minha nova liberdade.
Não me entenda mal, eu não sou uma pessoa obcecada com esse termo "liberdade", já que as vezes eu apenas não sei o que fazer com isso. Mas eu sei que também não quero mais ser limitado pelas outras pessoas quando for para decidir pela minha própria vida ou pelas minhas próprias escolhas.
"Talvez minha obsessão seja apenas sobre não ser preso novamente... e o que surgir dessa escolha, seja ela liberdade ou não, não passará de apenas mais uma consequência."


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