Black Desert escrita por Kallin


Capítulo 16
Gale




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Sem que o menor som entregasse a presença de alguém além de mim ali dentro, de repente, duas mãos surgiram por trás de mim pousando nos meus ombros que se levantaram por um instante no susto! Mas rapidamente como um reflexo, eu disfarcei minha reação não querendo admitir que havia sido pego de surpresa...

— "Achei que você iria chegar acompanhado de uma catástrofe..."

Eu disse em um tom irônico me ajeitando melhor e inclinando de leve meu corpo sobre o braço da poltrona, apoiando meu rosto em minha mão e desviando meu olhar para o lado totalmente oposto do qual a silhueta de uma pessoa surgira.
Sem precisar olhar para notar que um leve riso veio daquela pessoa, eu continuei ignorando-a ao que ela passou descontraidamente do meu lado cruzando a mesa até a outra poltrona que ficava diretamente de frente para mim, sem realmente se sentar.

Finalmente achando que o momento de recepção havia passado, eu espiei um pouco aquela pessoa com meus olhos apenas para ter certeza de que era "ele" que estava ali. Mas contrariando meu desejo de não olhá-lo por muito mais tempo, eu acabei prendendo meu olhar nele ao que passei à encará-lo questionavelmente em silêncio... Finalmente pude vê-lo com um sorriso bobo em seu rosto enquanto sua atenção focava apenas nas folhas de papel espalhadas em cima do que provavelmente era sua mesa, como se estivesse bem entretido com aquela situação.
Por um instante ele sem aviso olhou para mim também, mas em reflexo, eu apenas voltei a desviar o olhar para o outro lado e com isso novamente pude ouvir um novo riso desapegado e contido escapar dele.
Aquele era Gale, o líder da gangue de rua conhecida como BlackHole.

Gale não tinha idade ou aspecto de líder, ao menos não de líder de um grupo bem sucedido e com tanta infâmia quanto a dele... Ele era bem jovem, provavelmente alguns anos apenas mais velho do que eu. Porém comparado a mim, seu físico era muito maior... Mãos maiores, peito mais largo, rosto mais retangular... Até sua altura facilmente me ultrapassava (se bem que eu não sou realmente alto). Mas sinceramente ele não parecia ser alguém grande ou forte por si só. E se eu procurasse pensar muito, Gale na verdade tinha uma estatura ideal para o seu arquétipo (sinceramente eu é que sou o estranho, tendo uma fisionomia delicada demais em comparação com os outros homens). Gale tinha cabelos castanhos bem curtos que não eram nem escuros e nem claros, e que quase sempre pareciam bagunçados e arrepiados, do tipo que provavelmente era ajeitado em rápidos 5 segundos com ele passando a mão neles sem olhar... Sua pele não era considerada clara, mas também não era escura igual a minha já que os desertos também não eram sua terra natal. Porém ainda sim graças ao forte sol diário do qual nenhum de nós podia escapar, Gale acabou ficando levemente moreno, assim como muitas outras pessoas que viviam o tempo todo no meio das ruas. Seus olhos eram intensamente verdes, quase reluzente quando a luz batia neles, e seu olhar -diferente de sua aura relaxada e amigável- era totalmente ousado e astuto como se nada jamais fosse capaz de passá-lo para trás, sempre parecendo estar à frente de tudo sem jamais ser surpreendido.
Gale também tinha aquele mesmo cavanhaque que toda hora parecia estar sempre para fazer, e aquela sempre mesma postura jovial que esbanjava descontração e escondia bem a sua absurda capacidade. Suas roupas (mesmo simples), eram bem modernas entregando rápido sua jovem idade... Ele vestia sempre uma camisa normal que nunca parecia estar suja ou rasgada, contrariando o fato de que ele jamais ficava longe da ação por tempo demais. Por cima dela estava sempre a mesma desgastada e grossa jaqueta verde-escura de manga comprida, cobrindo-o, e sua calça comprida que também era escura porém bem desgastada diferente do resto das roupas, entregando o quanto ele havia andado por aí desde que a colocou nessa manhã (acredito eu), mas o que realmente se destacava nas suas roupas eram seus acessórios, como o fino cordão de aço que ele usava e que ficava justo em seu largo pescoço... além dos 2 piercings em sua orelha esquerda, e seu cinto que segurava 3 pequenos compartimentos de couro em um dos lados da sua cintura, assim como um revólver que eu sabia que ficava constantemente escondido por dentro da sua jaqueta e que ele muito raramente usava.

Gale na verdade andava com muito mais coisas "perigosas" do que realmente parecia andar, e normalmente a maioria delas ficava ocultada em suas roupas, coisa que ninguém normalmente espera dada a facilidade com que ele sempre se movimenta por aí.
"Se ficando totalmente coberto por roupas eu já me sinto preso demais para me mover, então o que ele consegue fazer com várias coisas escondidas em suas roupas, para mim, está além da minha capacidade de compreensão..."
Como eu disse, Gale não tinha uma imagem de um líder (de gangue)... Mas muito provavelmente ele usava isso a seu favor, considerando que ele É inteligente o suficiente para saber fazer isso. Porque assim, subestimá-lo acaba se tornando um erro muito comum de todos que não o conhecem, e dessa forma ele consegue sempre ter a vantagem inicial para se dar bem sobre qualquer que seja a situação.
Ao menos é isso que eu o vejo fazer, desde que nos conhecemos.

— "Fico feliz em te ver Yura, não imaginei que teria essa sorte hoje."
— "... Você me deu razões para precisar aparecer."
— "Eu?... Bem, então espero que seja sobre a minha proposta de você finalmente se tornar apenas meu."
— "..."

Eu não pude evitar de perder meu foco e encarar Gale com um olhar mal-humorado ao que ele tentava não rir, falhando miseravelmente e me encarando com um prazer indescritível, ao que eu roubara totalmente a sua atenção dos papéis que ele apenas largou para lá. Gale começou a andar, contornando lentamente a mesa à seu tempo até ficar não mais do que a distância de um braço de mim.
Gale pode ser a pessoa cheia de artimanhas que ele é, mas sempre cede muito rápido para esse hábito de querer me seduzir quando está com tempo livre... Não é que Gale realmente tenha esse tipo de interesse em mim, mas ele as vezes tem esse jeito com qualquer um ao seu redor quando ele decide não levar nada a sério, e por alguma razão, se não estivermos os dois no meio de uma enrascada, então ele não vai querer mesmo me levar a sério.

Estendendo sua mão até meu rosto, Gale encostou levemente seus dedos em mim, deslizando sua mão até meu cabelo e trazendo até ele uma das minhas poucas longas mechas que contornavam meu rosto e caíam no meu colo. Seu olhar lentamente foi alternando entre nostalgia e seriedade, parecendo me analisar e cobiçar ao mesmo tempo quase como se quisesse ser capaz de me devorar. Mas seu corpo em si traía aquele seu jeito, recostando relaxadamente na mesa à minha frente e se mantendo bem afastado de mim.
Aquilo me reforçava como sempre o fato de que Gale não era realmente algum tipo de tarado que poderia se aproveitar de mim no instante que eu abaixasse minha guarda (não que eu fosse também confiar), e por isso eu apenas não via razão para gastar minha energia reagindo atoa.

Esperando em silêncio com toda sua paciência e atenção pelas minhas próximas palavras, Gale continuou a mexer em meu cabelo na medida que o tempo se estendia, trazendo-o até perto de seu rosto enquanto começara a sorrir discretamente apreciando aquele instante em uma quietude contemplativa.
Desde que o conheci, eu demorei um pouco para me acostumar com aquele que era realmente o seu jeito, mas eu sabia que se mesmo que minimamente, aquele fosse seu humor no momento, então eu deveria apenas entrar no jogo e não levar nada a sério para se poder ter a cooperação dele.

— "Ainda não estou em oferta, na verdade eu vim aqui porque preciso que abra o jogo comigo..."
— "Abrir o jogo... Ok, você me pegou, eu estou apaixonado por você Yura."

Tentando ainda manter meu forçado sorriso com dificuldade, eu continuei com a minha compostura, claramente sentindo que Gale estava me provocando se fazendo de desentendido e tentando rebater o assunto para o mais longe possível (não era a primeira vez e nem a última que ele iria fazer isso). Independente daquilo, nossos olhares à cada instante de silêncio se tornavam quase os mesmos, como o de dois predadores se encarando com curiosidade, trocando sorrisos falsos e cogitando quem dos dois daria o próximo passo... e qual seriam as reais intenções desse "próximo passo".
Mas logo que aquilo começou a se prolongar demais para o meu gosto, eu precisei me decidir... Gale era teimoso, e sabendo que em momento algum eu estava lidando com um ignorante ou uma pessoa fácil de empurrar para onde eu queria, eu finalmente deixei minha guarda abaixar, vendo que teria que ser eu mesmo o primeiro a descer as cartas na mesa e apelar para a boa e velha abordagem direta.

— "Eu soube que você teve um problema hoje nas Avenidas."

Eu realmente não esperava por isso, mas assim que ouviu minhas palavras, pude quase notar um pequeno brilho em seu olhar fazendo aquele sorriso se quebrar em uma rápida e disfarçada tensão, Gale finalmente largou a falsa ignorância com a qual estava brincando -e também o meu cabelo-, fechando sua expressão em puro silêncio e desviando seu olhar por um instante como se analisasse com cuidado aquele assunto.
"Eu sabia, realmente tem coisa aí! Com certeza não é apenas um mal-entendido...!"
... Porém, até devo admitir que eu estava preparado para um embate de teimosia contra ele, então ter essa vitória precoce foi mais do que surpresa para mim... Tanto, que ter até mesmo Gale prosseguindo esse assunto continuou a me surpreender por dentro.

— "O que você sabe sobre as Avenidas?"
— "Nada útil o suficiente para que eu pudesse evitar vir te procurar..."
— "... E que tipo de coisa você espera descobrir comigo, afinal?"
— "Apenas quero saber o que você está pretendendo ao resolver começar a atacar os Skreas."
— "..."

Como uma faca que estivera apontada para ele até então -e que finalmente o atravessou-, Gale tentou não demonstrar nenhuma reação sobre aquela frase, mas diante dos meus olhos que não deixaram de focar nele por um instante sequer porém, ele não teve sorte alguma em esconder que eu o havia acertado bem no ponto.
Notando que eu não tirava meus olhos dele, ao invés de tentar uma última defesa -como por exemplo jogar minha falta de provas contra mim mesmo alegando sua própria inocência-, Gale apenas admitiu tudo conscientemente através de suas atitudes, fazendo uma cara desagradável e se afastando da mesa em que estava apoiado, caminhando um pouco por aquele quarto sem se preocupar quanto a olhar tão cedo novamente para mim...

Se eu tivesse que apostar em uma explicação para esse momento, eu apostaria que o que quer que tenha acontecido na rua com os Skreas não é algo que Gale seja capaz de empurrar para debaixo de um tapete com facilidade, provavelmente por isso ele nem mesmo está tentando continuar com seu jogo de inutilmente me enrolar... Porém...
"Será que está tão ruim assim a situação, para ele nem tentar escondê-la...?"
Meus olhos aguçaram ao que esse pensamento naturalmente me contaminou. Eu estava sentindo um misto de confusão, esperança e medo ao mesmo tempo, apenas por culpa daquelas pequenas peças que eu estava coletando e juntando sobre o assunto mesmo diante da falta de certeza sobre tudo isso.
E a intensidade daquelas sensações, mais parecia um fantasma voltando a me assombrar do que algo que realmente tivesse a ver com o momento.

— "É melhor você sair daqui, não quero que se envolva."
— "... Com o que eu não devo me envolver?"
— "Algumas coisas saíram do meu controle nessa noite, e esse não é mais um assunto que alguém como você deva se meter..."
— "Quão ruim está a situação?"
— "... Ruim o suficiente para ser problema apenas da minha gangue... Yura, eu realmente quero você trabalhando comigo, mas não agora, e não para se envolver nisso."
— "Gale, eu não estou pedindo para me deixar ajudá-lo com isso. E eu estou longe de ser um dos seus peões para você ficar decidindo por mim se eu vou ou não me meter! Se eu estiver afim, eu vou me intrometer aonde eu quiser."
— "... Realmente, não posso com você... Mas dessa vez não vou poder fazer as suas vontades, porque ela está indo contra as minhas. Porém, vou adorar quando chegar o dia em que iremos finalmente trabalhar juntos... e eu sei que você ainda me ajudará a trazer as Feiticeiras D'água e seus poderes de cura para o meu lado."
— "... Ainda esperando por isso?"
— "... hehe... Sinceramente, não mais do que estou esperando pelo dia em que você será apenas meu... Mas pelo bem da minha gangue e dos meus planos, minha prioridade precisa ser encontrar elas e criar essa aliança antes que outra gangue o faça na minha frente. Já esse meu outro desejo mais egoísta quanto a você, ficará por enquanto como o nosso pequeno segredo."
— "...Tente não esperar em pé. (por ambos)"
— "Vamos lá Yura...! Você sabe que os dons de cura delas poderão salvar a vida de milhares de humanos, tanto inocentes quanto aqueles que querem lutar pelo nosso espaço nessa cidade! Eu só preciso que elas finalmente se aliem à BlackHole, e então abrirei todas as portas para que elas possam fazer isso!"
— "Isso está longe de ser assunto meu, eu só quero hoje saber o que você está planejando Gale."
— "..."

Depois de ter tentado mudar o assunto sem muito sucesso, Gale que houvera voltado a me encarar -só que dessa vez do outro lado da sala- novamente desviou seu olhar para o chão, pensando agora com uma seriedade muito mais curiosa do que defensiva enquanto esfregava sua mão em sua barba distraidamente.
Eu não havia esquecido minha ansiedade sobre o assunto inteiro, mas eu relaxei também um pouco ao que eu sabia que se Gale estava prolongando o momento, e agindo com calma e tranquilidade, então era porque nada de sério estava para acontecer... ainda. Ao menos quando se tratava de ser responsável, ele podia falhar em se responsabilizar pelos inocentes que ficavam no caminho dos seus planos, mas ele definitivamente se responsabilizava e se preocupava com todos aqueles que juravam apoiá-lo... e nesse exato momento, havia muita gente lá fora na entrada e nos becos próximos que o apoiavam cegamente.
Finalmente, se apoiando em uma das estantes na parede, Gale se virou cruzando seus braços e voltando a se dirigir a mim.

— "O que eu "estou planejando" hoje é apenas parte do que eu vim planejando desde sempre, e você já sabe do que isso tudo se trata. O que eu fiz essa noite foi só uma tentativa de nos dar a chance de ter mais do que jamais teremos caso continuemos abaixando a cabeça para todos os desejos, todos os ímpetos "deles"...!"
— "E você acha que atacar os Skreas cegamente assim vai trazer algo de bom pra alguém!?"
— "Heheh... Eu não "ataquei cegamente" os Skreas... O que eu fiz foi muito mais do que apenas isso."
— "... Gale..."

Um frio correu pela minha espinha e eu lentamente levantei da poltrona -sem tirar por um segundo meus olhos dele- ao que Gale falou aquilo com um sorriso quase sádico olhando diretamente para mim das sombras que se formavam pelo quarto -mas sem me encarar-, como se visualizasse algo além de mim... algo além do próprio quarto em que estávamos... algo que estava apenas em sua visão, em sua mente, em seus objetivos. Aquela era a faceta da ambição que ele carregava, escondida por baixo de tanta falsa despreocupação... e ela sempre me assustava, desde que eu a vi pela primeira vez.
Foi a partir dessa expressão, que eu percebi que Gale deveria ser a última pessoa que eu poderia subestimar... e que não havia nada de ingênuo em alguém que conseguia ter um olhar de tão tamanha intensidade.

Gale tinha 3 modos que se alternavam na verdade... o relaxado, o sedutor e o ambicioso... E pessoalmente, o ambicioso era o qual eu menos gostava de lidar, porque fazia qualquer bom sentimento cujo ele inspirava se dissolver em segundos, restando apenas um medo misturado à um receio indescritível.
Talvez até mesmo por testemunhar esse mesmo receio, é que Sal tenha também decidido por se esconder dentro da cidade no segundo em que descobriu o desejo de Gale de dominar seu grupo, ao invés de facilmente enfrentar a ambição de Gale -que era tê-la sob seu poder.
Sal poderia enfrentar Gale à altura na verdade se quisesse, mas sua filosofia jamais envolvia entrar em embate com alguém. Especialmente quando isso envolvia a segurança e liberdade de suas meninas para que elas pudessem se dedicar à aprender e crescer corretamente... Isso para ela estava acima até mesmo de seus desejos de caridade para com o resto da população.

Agora, eu sei que por si só a BlackHole não é uma gangue assustadora capaz de invocar fama e respeito por aí pelas ruas, para que então suas ações realmente consigam alterar a rotina das outras pessoas... Mas Gale... Gale e seus capangas mais próximos estão definitivamente em um patamar diferente do da gangue em si. Quando eles se envolvem então pessoalmente nos serviços, dá pra se esperar que não será qualquer coisa que estará para acontecer.
Ainda sim, mesmo sabendo que Gale deve estar envolvido até a cabeça nesse problema das Avenidas, eu por alguma razão não estou me abalando por conta disso.
Talvez a ficha apenas esteja caindo muito devagar dessa vez, por estar tudo sendo tão imprevisto.


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