Black Desert escrita por Kallin


Capítulo 139
Vidro negro




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Eu tentei buscar por sobre meu ombro a fonte daquela voz enquanto minha atenção continuava presa em Damian sob o risco de machucá-lo caso eu não focasse no que estava fazendo. Quase perdendo o meu controle sobre ele porém quando enfim pude ver V. diante da porta, apontando um revolver para ele friamente!

— "Vamos ver se ele ainda vai querer reagir, pode soltá-lo."

Assustado por estarmos ambos na mira de seu revolver eu então a obedeci rapidamente! Dando um passo para trás no que Damian na mesma hora caiu sobre os seus joelhos parecendo tentar recuperar o seu fôlego!
"S-será que eu exagerei? Não, daqui o corpo dele parece não ter sofrido qualquer efeito colateral. Ele está bem."
Eu procurei me conter e evitar correr para ver como ele estava já que qualquer movimento brusco -até mesmo meu- poderia tentar V. a atirar sem pensar duas vezes! Me forçando a ficar imóvel, até mesmo quando então eu percebi Damian no chão voltar a se recobrir com aquelas chamas escuras rosnando em um tom perigosamente irritado!

— "Grrr, já chega... Eu te deixei viver por tempo demais. ISSO VAI TERMINAR AGORA, SEU MALDITO!!"
— "Heh... Concordo, já está na hora de acertarmos isso. Eu não nasci para ser amigo de um Skrea."

Sem também parecer se preocupar com a presença de V. Gale então respondeu Damian com sarcasmo, soltando a minha mão de seu braço com uma sacudida e colocando a sua adaga na nossa frente de forma defensiva! Ao que em um pulo Damian simplesmente se levantou e disparou novamente na nossa direção com a sua cimitarra mirando no braço de Gale que havia se projetado ainda mais para frente na tentativa de me tirar do caminho das duas lâminas!

— "POW!!"

Um som ensurdecedor de repente explodiu ao nosso lado, fazendo nós três recuarmos assustados sabendo que V. havia atirado contra um de nós! Não precisando porém procurar em quem ela acabou acertado porque antes mesmo da minha audição conseguir se recobrar eu pude ouvir o choque da lâmina cimitarra de Damian contra o chão, encarando ele suspreso as suas mãos terminando de estremecer graças à vibração que o impacto da bala causou contra a sua arma forçando-o a soltá-la!

— "Não me subestimem só por eu ter perdido um olho, eu não errei esse tiro. Mas se quiserem continuar com isso, vamos lá. A próxima será na cabeça."

Enfim entendendo a situação em que estávamos Damian e Gale então se entreolharam completamente congelados em seus movimentos, recuando ambos lentamente até que nem mais as chamas escuras ao redor de Damian ou o brilho vermelho das luzes da boate refletido na lâmina da adaga de Gale pudessem ser vistas por V. e eu. Mantendo-se ambos quietos, e reféns daquela arma que ela voltou a mais uma vez engatilhar sem demonstrar ela qualquer intenção de também subestimá-los.

— "Ótimo, tomaram uma boa decisão."
— "..."
— "Agora me escutem porque eu só vou dizer isso uma vez. Não me importa que o som lá dentro seja alto o suficiente para abafar até mesmo o disparo de um revolver, brigas na frente da minha boate são expressamente proibidas -especialmente em horários de movimento. Vocês entenderam!?"
— "..."
— "Certo. Agora você, Gale. Volte para dentro, amanhã eu penso em uma punição adequada para essa sua audácia. Já Yura e o outro, continuem exatamente onde estão."
— "..."

Encarando V. o direcionar com o cano de sua arma para que ele passasse pela porta atrás dela, Gale então franziu a sua sobrancelha de forma desagradada a obedecendo mesmo assim. Ao que no instante que ele deu as suas costas para nós eu notei V. apontar o cano do revólver que ainda fedia à pólvora queimada para Damian, percebendo ela a forma preocupante como ele acompanhava Gale igual a um predador vigiando a sua presa até ela desaparecer completamente de seu alcance. No que assim que ela viu Damian dispersar a sua atenção de volta a ela, V. finalmente relaxou um pouco a sua mira tornando a nos ordenar.

— "Agora vocês dois... Para o meu escritório, temos que ter uma conversa."
— "..."
— "E Yura, de um jeito de cobrir ele. Não quero ninguém vendo essa coisa entrando no meu estabelecimento."

Me ordenando aquilo V. então nos deu as costas sem perder tempo e logo voltou para dentro deixando a porta da boate aberta para a seguirmos. Ao que distraído porém pelas suas palavras eu enfim me dei conta que Damian estava completamente exposto e sem o seu pano lhe cobrindo a cabeça e o rosto! Por instinto eu corri então para desenrolar o meu manto dos meus ombros e lhe entregar, encarando discretamente os arredores para ver se alguém havia notado a sua presença ali, ao que me aliviando em notar que as ruas estavam desertas e muito calmas eu logo voltei então com a minha atenção para ele apenas para congelar ali mesmo ante a forma como seus olhos vermelhos estavam seriamente me encarando de volta!

"Espera, é mesmo!! Ele me viu agarrado com o Gale! E-essa não, será que ele está pensando que eu...!?"
Meu peito disparou no que eu estremeci pela mera ideia de um mal entendido tão grande assim entre nós dois! Não entendendo como esclarecer nem mesmo para mim aquele sentimento misto de medo e culpa que agora passou a me consumir, no que em meio à minha hesitação Damian simplesmente bufou de um modo impaciente e tomou o manto de minhas mãos, se cobrindo com ele e mudando o foco da sua atenção sem a menor intenção de me esperar reunir a coragem para conseguir lhe dizer qualquer coisa que fosse!

"Essa não, será que ele está muito irritado comigo!?"
Eu o encarei sem qualquer ação, vendo-o se preocupar mais em pegar de volta a sua cimitarra no chão e checar o estado da lâmina do que sequer voltar a me olhar, no que assim que ele então se dirigiu para a porta da boate disposto a sair dali sem trocar qualquer palavra comigo, eu, por puro impulso o agarrei pelo braço forçando desesperadamente a minha voz a sair -mesmo que eu ainda não soubesse o que de fato lhe dizer!

— "D-Damian... sobre o que acabou de acontecer-...!"
— "Eu não quero saber."
— "N-não! Eu não posso deixar você entender isso errado!"
— "Como Skrea isso não tem por quê me importar. Então eu não quero saber."
— "M-mas...!"
— "Vamos logo, é melhor não deixá-la esperando."

Ignorando o meu óbvio constrangimento Damian apenas sacudiu a minha mão para longe e voltou a caminhar até a direção da porta. Me aguardando pacientemente para tomar a liderança já que ele não ia ter sequer como adivinhar o caminho no meio de tantos humanos se agitando lá dentro, no que eu totalmente sem chão não consegui voltar também a ter a coragem de insistir naquela conversa. Eu não ia conseguir, porque nem mesmo eu me sentia no direito de poder amenizar o fato de que por um momento, por um mero instante, eu acabei retribuindo por impulso os avanços de Gale. Sendo assim, incapaz de ignorar minha culpa eu então apenas aceitei abaixar a minha cabeça e tomar quieto a sua dianteira até o escritório de V., sem tentar mais nada até lá.

Andando por entre todas aquelas pessoas que se amontoavam muito facilmente no centro da boate eu apenas continuei seguindo com a cabeça baixa e totalmente exposto às atenções alheias. Sem o meu manto e sem qualquer sensação de dignidade, ao que dentre todos aqueles olhares famintos e curiosos que seguiam o brilho das luzes refletidas nas minhas joias, o único olhar que de fato conseguia me perturbar profundamente era o daquele Skrea por sobre o meu ombro. Me seguindo atentamente igual à uma sombra sem sequer parecer ser desnorteado pelos arredores no que após cruzarmos todo o salão nós logo chegamos a uma porta bem discreta, próxima ao bar, na qual eu bati duas vezes logo abrindo-a e adentrando junto de Damian sem esperar pela confirmação de um convite.

Dentro do escritório de V. a luz e o frescor da noite se misturavam à frieza e seriedade com a qual ela nos encarava pacientemente, sentada em uma confortável poltrona do outro lado de uma maciça e retangular mesa de escritório sobre a qual diversas pilhas de papel se amontoavam com perfeita organização. Mandando ela então em um gesto breve que eu fechasse a porta, no que assim que eu o fiz a música ensurdecedora do lado de fora simplesmente se dissolveu no ar como se jamais tivesse existido -eu ainda me recordo de como esse quarto fora construído de uma forma especial para que o som alto não incomodasse V., as paredes eram mais grossas e feitas de um material que não se encontrava normalmente nos desertos. O que a impediu de conseguir porém fazer o mesmo nos quartos do andar de cima pelo alto custo e a dificuldade que ela teve em adquirir esses materiais.

— "Então Yura... acho que teremos que ter uma conversa séria agora."

De repente a voz de V. me fez voltar a atenção para ela, um tanto intimidado pelo seu tom no que sequer eu tive o impulso de me sentar em uma das outras poltronas vagas pela maneira ameaçadora com a qual ela continuava a nos encarar, limpando cuidadosamente o cano de seu revolver com um pequeno pano branco e um claro intuito de deixar a arma ainda ao alcance da visão de Damian.

— "V., me desculpe. Essa confusão que aconteceu, isso tudo foi-!"
— "Foi algo que não era para ter sido responsabilidade minha. Vocês estão aqui para que eu os proteja de uma Oráculo, e não de vocês mesmos. Por isso desde o começo eu fui contra receber essa coisa aí. Eu sabia que em algum momento ele iria tentar matar um de vocês-..."
— "NÃO! Damian não é assim V., pare de ficar insinuando essas coisas! Você não o conhece!! Se você quer culpar alguém pelo que aconteceu então culpe Gale, desde sempre ele provoca Damian ao ponto de-...!"
— "JÁ CHEGA!"

Com um berro V. então se levantou da poltrona esmurrando com força a sua arma contra a mesa e me fazendo em um pulo engolir cada uma das minhas palavras! No que eu congelei ali mesmo percebendo o tom errado que acabei usando, e que agora poderia me custar bem caro!

— "Yura, você realmente acha que eu estou me importando por um desses dois quase terem se matado na frente da minha boate!? É claro que não, isso só iria reduzir os meus problemas! Eu estou preocupada é com você! Com a sua incompetência em tomar decisões! E como isso vai acabar te matando se você continuar achando toda hora que um Skrea precisa da sua proteção contra os outros mais do que você precisa ser protegido dele!! Então corte esse papo porque eu já estou ficando cansada de tentar te fazer entender o óbvio!"
— "..."
— "Ele é um Skrea e você é um Humano, vocês não nasceram para se entender ou se darem bem juntos, vocês nasceram para serem um a ruína do outro! E se você continuar a ser o inocente nessa história então não será ele que acabará tendo o final trágico aqui! Porque Yura, nesse mundo só há lugar para apenas uma raça prevalecer e esse aí entende isso muito melhor do que você está se esforçando para entender!"

Eu engoli a seco aquelas palavras não porque eu estava ainda me permitindo ser convencido por V., ou porque eu ainda podia levar a sério aquele seu excesso de desconfiança. Mas sim porque eu temia pela minha própria segurança e a de Damian caso não o fizesse, graças a forma como ela continuava a balançar violentamente seu revólver para lá e para cá enquanto argumentando todos os seus motivos para querer acabar com ele bem aqui e agora!
Porém, à medida que suas reclamações pareciam se tornar cada vez mais cruéis e suas palavras ainda mais ofensivas, eu acreditei perceber em Damian um breve frisar em sua expressão. Tomando ele depois de muito tempo calado um passo então à minha frente, e interrompendo V. de forma surpreendentemente intolerante sem sequer se intimidar pelos riscos de o decidir fazer!

— "Me desculpe, mas isso está sendo uma perda de tempo. Você não me quer aqui tanto quanto eu não quero também estar aqui. E se a sua única razão para ter me chamado foi para me envolver nessas acusações então é melhor parar, porque como Skrea eu não vou negar ou concordar com qualquer afirmação que seja apenas baseada em mera dedução Humana. Por isso, se esse for o único propósito para você ter me chamado aqui então é melhor que eu vá embora -não acho que haverá mais nada de importante para você me dizer além do que já disse também..."

Falando aquilo secamente Damian então se voltou sem qualquer preocupação para a porta atrás dele e tocou a sua maçaneta, no que antes porém de conseguir girá-la V. o interrompeu em um tom incisivo, quase maquiavélico.

— "Não, não vá ainda. Este não foi o único propósito para eu tê-lo chamado até aqui. É claro que eu não esperava te fazer admitir na frente do Yura coisas baseadas apenas nas minhas 'deduções', mas há algo que eu sei que você não terá como não admitir. Um fato do qual poucos Humanos sabem, mas que vocês Skreas estão bem a par. E que eu duvido que o Yura irá conseguir ignorar tão facilmente assim uma vez que ele também ouvir."
— "...!"

Parado diante daquela porta sem conseguir dizer nada Damian então se voltou primeiro para mim com uma expressão atribulada, tomando o seu tempo para pensar em sua próxima ação ao que logo ele se voltou decidido para V. -mesmo que suas pupilas ainda se contraíssem em um estranho alerta. Quase como se mesmo receoso ele estivesse disposto a confrontá-la independente da óbvia ameaça que transbordava de suas intenções, através do sorriso sádico que ela simplesmente lhe deu em resposta, ao vê-lo retornar para o meu lado de forma obediente.


— "O quê você quer ouvir de mim?"
— "Certo, eu quero que você conte ao Yura sobre o vidro negro. Conte a ele do que aquilo é feito. E vejamos se mesmo depois disso ele ainda vai ter a coragem para querer continuar do seu lado!"
— "!!"
— "... E então?"
— "Eu... eu não vou falar sobre isso."
— "Ora ora, e eu pensando que Skreas admitiam sem medo a verdade quando diante deles."
— "..."
— "Ou será que... Até mesmo você sabe que os sentimentos dele não são tão fortes assim para suportar  isso? Interessante, você de fato não se ilude por tão pouco -que nem o Yura. Só é uma pena que não me resta qualquer outra alternativa senão essa para fazê-lo cair em si! Então se você não vai dizer, eu mesma direi!"

Com aquilo V. então se voltou para mim, ignorando completamente a expressão crítica que Damian fez no segundo em que ela disse aquelas palavras, no que eu o percebi com o canto do meu olho tentar se mover exasperado na sua direção segundos antes de V. sacar o revolver e apontar para ele, forçando-o a novamente se conter! Tudo isso, enquanto eu sequer pude fazer muito além de estremecer ante a completa falta de compaixão com a qual ela continuava a me fitar -pouco antes de começar a falar.

— "Yura, me diga, você por acaso já se perguntou alguma vez do que grande parte daquela cidade de Skreas realmente é feita?"
— "V-você diz o vidro negro? Não... eu nunca achei que deveria me preocupar em saber-..."
— "Mas é claro que você nunca achou. Nem você e nem grande parte dos idiotas que vivem lá, porque se vocês soubessem jamais iriam querer continuar a pisar naquele lugar amaldiçoado. E sabendo disso é que as poucas pessoas que conhecem a verdade como eu, Ebraín ou Sal decidimos então manter essa informação apenas entre nós -por isso não saia por aí também revelando o que estou prestes a te contar."
— "Ebraín e... Sal?"
— "Sim, ou você acha que aqueles dois escolheram viver nas áreas mais antigas da cidade porque pedras e madeira apodrecida dão ótimas casas no deserto? Eu já os questionei muito sobre a decisão de viverem em um lugar como aquele, mas independente de todo o sangue frio que possuem nem mesmo eles tiveram a coragem de viver perto demais desse vidro negro! E isso por apenas uma única razão que até mesmo você é capaz de entender Yura."
— "..."
— "Porque nós Humanos não aprovamos o uso dos nossos finados como material de alvenaria!"
— "!?"

Meus olhos se arregalaram por um instante e eu me voltei na mesma hora para Damian, confuso pelo que acabara de ouvir!
"Espera, eu devo ter entendido errado, ela não está dizendo que-...!"
Só que antes que meu coração pudesse terminar de acelerar em uma imensa confusão, V. voltou a me chamar com uma voz impaciente não parecendo se contentar em parar apenas por ali!

— "Corte essa expressão de criança perdida Yura, você me ouviu muito bem! O vidro negro é feito dos restos daqueles que morrem pelas ruas da sua querida cidadezinha! Seus ossos são recolhidos e refinados junto de areia e um pó escuro nas fábricas que ficam no meio do deserto ao sul da Citadela! Um lugar tão nefasto quanto a sua adorada cidade de Skreas, mas construída longe o suficiente dela para que os ventos não possam trazer de volta o cheiro da carne queimada, fazendo vocês passarem mal com o lembrete de sobre o que diariamente vocês pisam tão despreocupadamente!"
— "!!"
— "E tudo isso feito com a cortesia do povo desse aí que está ao seu lado! Porque eles são tão dignos de consideração, não são Yura? Eles são tão merecedores da nossa compreensão...! Tão merecedores que esse aí sequer teve a coragem de admitir na sua frente a verdade! A verdade do que ele realmente é, e que não vai deixar de ser só por sua causa!"
— "Já chega V.-..."
— "Não, não acho que chega Yura. Olhe para ele e me diga se eu realmente devo parar!? Me diga se eu realmente devo te poupar dessa pessoa que nem está tendo a ousadia de negar as minhas acusações, porque ele sabe que elas são todas verdadeiras!? OLHE PARA ELE YURA, E ME DIGA AGORA QUE ESTOU ERRADA EM ODIÁ-LO! TENTE AINDA ME CONVENCER DE QUE ELE MERECE QUALQUER COISA DIFERENTE DO NOSSO ÓDIO!!"

Ao que a voz de V. começou a se projetar mais e mais alto contra os meus ouvidos eu então obedientemente me virei para Damian mais uma vez! Buscando qualquer chance, qualquer oportunidade de dizer que ela estava errada mas-...! Mas... mas eu não sei por quê não consegui. Eu não consegui nem mesmo me convencer de que ele não fazia parte daquela raça que menosprezava até mesmo os nossos mortos! Porque a forma como Damian olhava para o chão... a forma como ele se desviada totalmente da minha atenção como se tamanho peso lhe coubesse bem demais para rejeitá-lo... aquela maneira, fez então o meu estômago revirar ante o silêncio que se fez entre nós três. Um silêncio mórbido que eu não soube aonde encaixar dentro de mim, até que V. finalmente me fez o favor de o fazer por mim.

— "... Ele não vai negar Yura, porque ele não tem a capacidade de negar ou se arrepender. Ele apenas convive com isso como se fosse normal porque eles são assim. Indiferentes ao destino que tomamos, ao significado da nossa existência diante da deles. E apenas enquanto formos úteis eles irão se permitir dividir esse mundo conosco. Apenas enquanto você for útil."
— "..."
— "As pessoas que morreram de propósito ou acidentalmente naquela cidade, e até mesmo o seu próprio povo. Todos eles são agora os pilares do império dessa raça, literalmente... e um dia você também acabará sendo se insistir em confiar na fragilidade desse elo que a sua presença de Vessel mantém entre vocês dois. Porque Yura, ela está ligada à sua vida e, no dia em que ele tomar a coragem de tirá-la de você por um motivo decisivo, não sobrará nesse Skrea consideração sequer pelos seus restos mais."
— "Eu não quero ouvir..."
— "Você irá terminar em uma parede, em um chão, em um muro... igual às crianças do extermínio, aos Vessels que eles mataram, igual à sua Sáshia! Irreconhecível pelas pessoas que um dia te amaram! Ou você acha que consegue dizer que os corredores pelos quais você passa todo dia, ou o chão no qual você pisa todas as manhãs sem se importar não são na verdade feitos dos restos dela? Feitos dos restos de alguém que eu certamente acredito que você amou -diferente desse aí!?"
— "Eu não quero-..."
— "Encare os fatos Yura, eles lhe tomaram Sáshia e arrancaram de sua morte qualquer sombra de dignidade restante!! Encare, e admita de uma vez que seu coração é incapaz de perdoá-los por isso!!"
— "EU JÁ DISSE QUE NÃO QUERO MAIS OUVIR ISSO!!"

Irritado e enojado por tudo aquilo eu então berrei para V. cortando-a antes mesmo que meu estômago pudesse terminar de revirar com aquela verdade! Encarando com um intenso desprezo a satisfação em seu olhar ao me ver reagir daquela maneira, no que olhando também para a forma como Damian até mesmo fechara os seus olhos em uma tentativa de ficar alheio à minha voz eu simplesmente dei as costas para eles dois e escancarei com força aquela porta! Fugindo por ela e por entre as pessoas que se assustaram próximas ao bar com o barulho, no que eu não quis saber e fui empurrando-as até passar pela saída da boate correndo para o mais longe que eu podia de todos eles! De tudo aquilo! De toda aquela informação que fez em pouco tempo o meu estômago terminar de se revirar e eu não aguentar mais, me agachando por fim contra a parede de um prédio em uma rua vazia e vomitando puramente pela angústia que agora dominava totalmente o meu corpo!

Eu tremia sem saber o que fazer, o que querer fazer! Eu até mesmo estava com medo dos meus pensamentos porque eu não queria continuar permitindo que V. pudesse me influenciar tão facilmente contra Damian assim, só que a sensatez para fazer isso também não era algo que eu sabia se seria capaz de ter agora! Eu sequer estava confiando em mim mesmo no que as lágrimas pareciam cair dos meus olhos sem o meu controle! Tremendo incontrolavelmente, ante aquela sensação que parecia esfriar e aquecer o meu corpo ao mesmo tempo acentuando ainda mais o gosto amargo na minha garganta. Eu não estava bem. E eu não sabia como seria capaz de voltar ficar...
Sendo assim, temendo ser novamente alcançado por pessoas conhecidas na hora errada eu limpei a minha boca com a mão e voltei a cambalear para o mais longe que eu podia! Até que a adrenalina no meu corpo passasse e os meus pés começassem a afundar na areia entregando que eu já estava caminhando por sobre uma duna e não mais pelas estradas de Nahalt. Foi ali que enfim eu decidi parar mais uma vez e me atentar aos arredores, enxergando em meio àquela escuridão apenas as luzes distantes da cidade e o brilho de fogueiras à esquerda vindo provavelmente dos acampamentos dos mercadores -meus pés me carregaram para muito além do que eu estava pretendendo ir.

Sendo assim, no que a adrenalina já estava abaixando e me fazendo perceber o gelo da noite eu então abracei o meu corpo, arrependido pela falta do meu manto no que em um esforço para ainda aturar a brisa gelada eu caminhei até o fogo mais próximo que pude encontrar. Vindo ele de uma fogueira quase apagada pelo descuido de algum vigia que certamente se esqueceu daquela tenda cheia de caixas ao lado de um oásis, e com a silhueta de apenas dois camelos que grunhiram em alerta ao que eu me aproximei deles sem lhes dar maiores motivos para se incomodarem. Naquilo, e com o resto de minhas forças eu me apoiei sobre um balde de madeira próximo a eles para terminar de lavar a minha boca e enfraquecidamente me sentei diante daquela fogueira. Procurando me aquecer um mínimo antes de ser totalmente derrotado pelo frio, no que àquela altura nem mesmo o fogo baixo fora suficiente para me incentivar a levantar e buscar por mais gravetos para alimentá-lo.
E ali eu não tive outra opção senão ficar até sentir o resto das minhas energias definharem, apoiando a cabeça sobre as minhas pernas e as abraçando de uma forma que apenas o som do estalar do fogo e dos camelos permearam a minha mente por um longo tempo. Um longo tempo no qual sequer o frio pareceu me intimidar mais do que as próprias lágrimas quentes que continuavam a cair pelo meu rosto junto da lembrança das palavras de V. sobre o possível destino horrível de Sáshia.
"Sáshia... me desculpe. Se eu soubesse que isso ia acontecer eu-... eu jamais iria ter te abandonado naquele dia. Eu jamais iria ter deixado... eles te tirarem de mim."

Açoitado por uma imensa culpa eu então simplesmente deixei os meus sentidos ficarem dormentes, incapaz de adormecer de fato ou de encarar a aflição que tentava se revoltar dentro do meu peito no que tudo pareceu sucubir em um profundo escuro. Tudo, menos aquele calor da fogueira se esvaindo e esvaindo lentamente, ao que o tempo foi simplesmente passando junto à minha preocupação pelo tremor cada vez mais intenso do meu corpo... Foi aí que de repente eu senti do nada um grande pano recair delicadamente sobre a minha cabeça me fazendo em um susto precisar retomar a consciência! Tomando bruscamente tal tecido em mãos e quase que o reconhecendo imediatamente!
"I-Isso é-... o meu manto?!"

Meus olhos dispararam então para cima no que de repente eu vi Damian por trás de mim em pé, me olhando sem dizer nada ou sequer dar a entender por quais motivos ele decidiu vir atrás de mim depois de tantas oportunidades para se manifestar desperdiçadas!
"Tsc, seria melhor se ele não tivesse nem se dado ao trabalho!!"
Eu o encarei frustrado sem conseguir porém me sentir a vontade para dizer qualquer coisa -afinal eu ainda temia cometer erros ao fazê-lo, a minha mente ainda não estava pronta para isso- no que ele em resposta então apenas me deu as suas costas e pacientemente foi até a tenda mais próxima recolher um punhado de gravetos para reacender a fogueira.

Seus olhos, sua expressão, seus movimentos, nada nele me permitia deduzir o que poderia estar se passando em sua cabeça -será que ele estava irritado? Se sentindo culpado? Preocupado? Perturbado? Eu não fazia idéia, ao que mesmo que por lógica dividirmos o espaço pudesse soar terrívelmente inconveniente no momento, mesmo assim, Damian contrariando a minha expectativa escolheu se sentar ao meu lado e ali ficar, silenciosamente, após fazer o fogo voltar a crescer. Quieto. Indiferente. E deixando que o tempo entre nós dois apenas passasse enquanto eu tentava me aquecer sob o meu manto, aquietando também graças à sua paciência as várias revoltas dentro na minha mente até que nenhum tormento mais me sobrasse senão o medo contínuo de tentar lhe dizer qualquer coisa. Não, essa situação já foi estragada demais sem a ajuda das nossas palavras... eu não vou dessa vez arriscar estragá-las ainda mais se ele também não estiver disposto a correr o risco! Eu-... eu não sinto que tenho mais a coragem para tentar isso...


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