Black Desert escrita por Kallin


Capítulo 137
A verdade de cada um




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Quase como se o dia anterior pudesse se dar ao direito de ser esquecido, a manhã seguinte chegou com o refrescante som dos pássaros silvestres cantando nos galhos da árvore que ficava nos fundos da RedLight. Me acordando em uma estranha sensação de nostalgia ao ver aquelas paredes velhas de estuque pintadas me cercando, no que eu precisei de uns segundos para me lembrar de que não estava mais na Citadela.

Ainda um tanto atordoado pelo despertar eu então esfreguei o meu rosto lentamente enquanto começava a perceber a desconfortável sensação da água caindo distante no banheiro que ficava próximo ao quarto.
"Gale não está mais aqui... talvez seja ele tomando banho."
Eu concluí aguardando então sentado na cama -o mais longe possível- ele terminar para logo em seguida eu também poder entrar e lavar o meu rosto. Desconsiderando porém qualquer possibilidade de banho, mesmo que o estado do meu corpo não me deixasse esquecer por um momento sequer a minha já prolongada falta de atenção à higiene desde o dia anterior -mais tarde eu faço isso, quando a minha cabeça permitir.

Sendo assim, após sair do banheiro mais desperto meu olfato foi logo atiçado pelo cheiro gostoso de comida vindo da cozinha, onde Lilith parecia correr de um lado para o outro animada com uma frigideira em sua mão enquanto empilhando vários bolanis (um tipo fino de pão) em alguns pratos sobre a bancada que ficava do lado oposto do fogão, onde Saret e Gale já se encontravam sentados, comendo. Enquanto V. os observava de longe em silêncio com o que parecia ser uma xícara de café bem escuro em suas mãos.
Sem tardar muito mais eu então me juntei a eles. Comendo mais até do que meu corpo estava acostumado antes de V. enfim decidir nos levar lá para baixo, para nos falar enfim das tarefas que iríamos passar a fazer todas as manhãs para ela.

As tarefas em si não eram em nada complicadas, a maior parte envolvia limpar o chão e as mesas no andar de baixo da Boate, ajudar a levar mantimentos para dentro, ou ajudar ela com outros tipos de serviços gerais que -de acordo com V.- eram perfeitos para homens mais altos e fortes como Gale fazer. Me dando a entender que ela iria mantê-lo especialmente ocupado e afastado de mim -talvez até por conta da nossa conversa de ontem- enquanto que eu e Saret nos ocuparíamos com o resto.

— "Eu dispensei as meninas do turno da manhã enquanto vocês estiverem por aqui. Então não façam os seus trabalhos de qualquer jeito, porque ninguém virá mais tarde para consertá-los."

V. falou de forma impositiva dando dois esfregões para Saret e eu, assim como nos apontando onde encontrar mais panos e baldes caso precisássemos. No que Saret finalmente pareceu então observar melhor os arredores tendo enfim uma reação negativa ao perceber o tamanho do espaço que sozinhos iríamos ter que arrumar.

— "Não se preocupe, eu costumava fazer isso. Não demora tanto quanto parece."

Minha voz tentou sussurrar para ela, não dando Saret porém muita atenção para mim. Seus olhos cautelosamente pareciam percorrer desde a outra ponta do comprido salão onde um singelo bar se encontrava misturado a várias pequenas mesas altas e circulares, até as paredes que eram contornadas por poltronas de couro muito macias e mesas maiores quadradas, cada uma separada entre si por divisórias de mármore da altura da minha cintura. A maior quantidade do lixo, sujeira e garrafas vazias se encontravam nessas áreas mais confortáveis e distantes da iluminação onde as pessoas já cansadas preferiam ficar. Muito diferente porém dos 4 pequenos palcos circulares atravessados por barras de ferro que iam de sua base até o teto, dispostos aleatoriamente no centro da boate. Nessas áreas a única sujeira visível podia ser da terra dos sapatos que os clientes deixavam ao se moverem como animais tentando alcançar a atenção das odaliscas, mas nada muito além disso era notável aos meus olhos além da também completa escassez de dinheiro que eu sabia que às vezes caía desses clientes e eles nem reparavam -as odaliscas da noite podiam não limpar o lugar mas, certamente elas não deixavam uma nota para trás.
"Haah, que estranho me lembrar agora das noites em que eu vinha escondido tentar pegar essas notas do chão antes delas terem a chance..."
Minha cabeça balançou algumas vezes em constrangimento até V. terminar de nos dar as suas explicações.

— "E isso é tudo, alguma pergunta?"

Ela encarou cada um de nós com uma certa esperança de que não iríamos lhe tomar ainda mais tempo com perguntas triviais, perdendo na mesma hora então o seu sorriso quando de repente Gale levantou a sua mão um tanto empolgado pela oportunidade de lhe desapontar.

— "Eu tenho uma. Por quê você não deixou a menina descer também para nos ajudar?"
— "As tarefas de Lilith são lá em cima, e não aqui embaixo."
— "E só por isso você então decidiu fechar a porta com toda aquela pressa quando a viu tentando descer com a gente?"
— "Humph..."

De repente o olhar de V. pareceu mudar um pouco, cruzando ela os seus braços e encarando Gale por alguns minutos em completo silêncio como se ponderasse com muito cuidado o que agora lhe responder. Fazendo ele por outro lado se sentir tentado a dar um passo adiante como se pressionando ela por uma resposta lógica, no que V. enfim suspirou, lhe respondendo em um tom muito incomodado.

— "Haah... você realmente sabe ser bem inconveniente, Ebraín não mentiu nas cartas."
— "Eu sou só muito curioso."
— "Não, você é um pouco mais do que isso... você sempre sabe exatamente onde xeretar. Chega a ser tão conveniente que eu me pergunto se você na verdade já não chegou à uma conclusão por conta própria."
— "Heh, talvez eu tenha. Mas prefiro sempre que outra pessoa me confirme primeiro."
— "Tudo bem... Afinal isso nunca teve como ser um segredo também, Saret e aquele Skrea já entenderam toda a situação logo que a viram mesmo que vocês dois não tivessem como."
— "Heh, como eu pensei então..."
— "Sim, Lilith também é um Vessel. Ela é a Vessel da libido, e por essa razão não posso ficar arriscando deixar ela se aproximar de qualquer um. E isso inclui ela vir até aqui embaixo onde pessoas normais podem acabar entrando sem aviso pela porta."

Meu corpo estremeceu de cima a baixo e eu tive a impressão de que não ouvi com clareza as próprias palavras de V.!
"Como assim, Lilith também é um Vessel!?"
Eu encarei V. sem nem me dar conta de fechar a minha boca, espantado por escutar uma coisa daquelas mesmo depois de anos convivendo com Lilith sem jamais acreditar que havia algo de errado com ela além do albinismo!

— "Como assim Lilith também é um Vessel, V.!? Como foi que você nunca me disse isso antes!?"
— "Eu nunca achei ser necessário, Yura. Você era obediente, cuidava bem dela, e não era como se também você fosse ser afetado pela sua presença... Vessels são imunes uns aos outros. Se alguém estava em desvantagem perto de vocês dois e não podia se permitir a tal ignorância, esse alguém era apenas eu."
— "M-mas...!"

As palavras se amontoaram na minha garganta sem eu saber o que responder! Era verdade que V. nunca teve motivo para me contar uma coisa como aquelas mas, não seria mesmo assim algo importante para eu saber!? Algo importante que-... que eu gostaria de ter sabido.
De repente então, como uma flechada atingindo um mesmo alvo duas vezes, minha boca enfim se fechou e o espanto sessou. Notando que não fora só Ebraín ou Sal que escolheram jamais falar sobre essas coisas comigo, mas sim todos que até então haviam convivido comigo! Se não tivesse sido aquela Oráculo, se não fosse por Damian, será que eu realmente iria ter tido a chance de um dia saber? De um dia parar de achar que os Vessels eram mais do que um mero boato? Eu me senti um pouco iludido dentro daquela sensação, mas igualmente, àquela altura, não tão mais em choque dada a trivialidade que aquela verdade estava passando a ganhar na minha vida.

— "Espera aí, vocês dois cresceram juntos e você nunca chegou a perceber?! Hah, você é mesmo a pessoa mais ignorante que eu já conheci... Nem mesmo os próprios poderes conseguiu perceber por conta própria."

De repente eu pude ouvir Saret me indagando com espanto, antes dela própria tirar as suas conclusões e cruzar os seus braços como se não quisesse que eu sequer a respondesse de volta. Me fazendo olhá-la com um certo desanimo, no que distraídos um com o outro acabamos sendo pegos de surpresa com a voz de Gale rindo então de repente para tudo aquilo, antes de novamente voltar a confrontar V. com a sua completa falta de noção de limite!

— "Hehehe, realmente isso foi engenhoso. Usando a desculpa de que estava criando eles você então conseguiu prender os dois Vessels mais úteis para os seus negócios aqui dentro sem eles sequer suspeitarem que estariam sendo usados, libido e amor... que conveniente."
— "Você é bem perspicaz. Sim, eu não vou mentir que me aproveitei de Yura e Lilith para afetar os meus clientes e alavancar os meus negócios. Mas criar eles jamais foi uma desculpa, eu de fato fiquei com eles porque me importei em mantê-los seguros."
— "É claro que sim, afinal se eles fossem mortos, não só os sentimentos de libido e amor seriam enfraquecidos no mundo por um tempo como os seus negócios também iriam se enfraquecer."
— "O meu apreço pelos dois vai muito além dos meus ganhos. Eu realmente me importo com Yura e Lilith, e não quero ver nenhum dos dois sofrerem... especialmente ela."
— "Humph..."
— "Eu encontrei Lilith ainda bebê em uma venda de escravos, e no segundo em que a vi enrolada em um pano sujo chorando sem parar nos braços de outra menina pequena eu soube que ela não iria conseguir sobreviver por muito tempo nesse mundo sozinha. A libido pode tornar as pessoas muito irracionais, e certamente não foi por uma boa razão que ela já estava desde tão cedo sendo colocada à venda"
— "..."
— "Foi ali que então eu quebrei os meus próprios regulamentos e decidi manter ela comigo. Lilith iria precisar de alguém que soubesse que ela não tinha culpa de ser como era, mas que também sabia como o mundo não iria conseguir ser igualmente compreensivo. Assim como você já deve saber, afinal nenhum Vessel de sentimento neutro ou negativo recebe facilmente a compaixão dos outros."
— "... Sim, eu sei."
— "Já Yura... Eu admito que o mantive comigo mais por egoísmo do que por qualquer outra coisa. Ele nunca precisou da minha proteção, sendo um Vessel de sentimento positivo, mas eu por outro lado me vi incapaz de me afastar dele e fingir que não o queria só para mim. Por essa razão eu tentei compensar as minhas razões lhe dando uma boa educação que viesse a acentuar as suas próprias vantagens naturais. Talvez porque eu queria ter uma forma de garantir a sua segurança quando o perdesse, ou porque eu queria torná-lo cada vez mais precioso para mim... em nenhum momento porém eu o fiz por causa dos meus negócios."
— "Até algo acontecer e você ter precisado deixar ele partir."
— "Sim, foi quando os poderes dele começaram a se manifestar e eu não pude mais mantê-lo comigo, pelo bem de Lilith. Um feiticeiro sem controle pode ser perigoso, mas um Vessel sem controle pode vir a ser desastroso caso nada seja feito a tempo e seus poderes apenas continuem se desenvolvendo sem ele aprender a dominá-los. Foi nessa época que eu então tive que pedir para Ebraín levá-lo consigo para a Citadela-... para os cuidados de Sal."

Ainda espantado com todas aquelas coisas que eu estava ouvindo Gale conseguir arrancar de V. sem qualquer dificuldade, e me sentindo dividido entre um misto de revolta e de pouca surpresa por já saber que V. também nunca foi uma pessoa que agia movida por quaisquer interesses, eu então não consegui aguentar mais e precisei interrompê-los! Surpreso, mas igualmente satisfeito por enfim estar tendo a chance de ganhar repostas para coisas que eu nunca antes tive a chance de também ter!

— "Então foi você mesma que chamou ele, V.!?"
— "É claro que fui eu, Yura. Ou você achou esse tempo todo que Grivah havia feito aquele velho preguiçoso surgir em Nahalt por acaso e posar de seu salvador sem mais nem menos!?"
— "N-não, é claro que nem mesmo eu acreditava ter sido tudo uma enorme coincidência! Só que... eu nunca tive a chance de te perguntar isso e, Ebraín também sempre se recusou a entrar nesse assunto. Então acho que foi mais fácil eu apenas fingir que tudo havia acontecido por um acaso só para conseguir seguir em frente."
— "Humph, não me admira que ele tenha ficado quieto. Trabalhar como informante por tantos anos fez aquele homem desenvolver o péssimo hábito de esconder até as informações mais desnecessárias... Sinto muito eu ter te forçado a morar com alguém tão insuportável, meu querido."
— "Mas você mesmo assim me deixou ir."
— "Haah, claro. Depois de 3 garrafas de vinho e duas noites em claro, que escolha me restava? Eu sempre estive na verdade preparada para o dia em que seus poderes pudessem se manifestar, especialmente dado o acumulo das suas vivências negativas. Apenas não pude esperar que contra todas as expectativas você iria manifestar exatamente o poder mais improvável de todos! Justamente o maldito poder que iria me obrigar a ter que te entregar para Sal! Logo Sal... tsc, Grivah certamente estava com um senso de humor bem sádico nesse dia, para me fazer ter que recorrer a eles dois."

Ouvindo aquelas palavras quietamente minha mente então se ocupou de juntar algumas peças que eu nunca antes conseguira por conta própria. O surgimento de Ebraín naquela manhã enquanto eu brincava de manipular a água da fonte no meio da rua, a forma como ele me olhou e me estendeu sua mão, a reação de V. a aceitar tão fácil me deixar partir... tudo aquilo foi tão fácil, tão fácil que enfim eu pude sentir um certo alívio ao ter a confirmação de que isso tudo não tivera passado de um plano seu, desde o começo. E que no fundo, não fui eu que escolhi deixá-las antes que V. porém tivesse já tomado essa decisão por mim.
Só que no que a figura de Lilith se despedindo de mim naquele dia então me passou pela cabeça, eu subitamente precisei perguntar algo muito importante para V.!

— "Espera V., e Lilith!? Se ela também é um Vessel então isso significa que ela terá poderes-...?"
— "Sim Yura, é uma possibilidade sim. Mas rezo para que não se manifestem, porque com Lilith eu não terei essa mesma liberdade de mandar ela para longe para que alguém a instrua. Afinal, mesmo que ela até já saiba de sua própria situação, o seu corpo continua sendo muito frágil e a sua mente muito inocente para eu confiar que ela consiga se proteger de sua própria maldição."

Com aquilo eu então me aquietei com a mesma impressão de impotência com a qual V. parecia me olhar, igualmente sentindo o peso daquela situação por me importar tanto com Lilith quanto ela própria. Se talvez Lilith desenvolvesse poderes de água eu até poderia ficar aqui para ajudá-la, mas... se eu e Gale fomos concebidos com poderes improváveis, será mesmo que com Lilith não acabaria acontecendo o mesmo? Minhas mãos então se fecharam em volta do cabo do esfregão que eu ainda segurava. Só de imaginar que esse tempo todo o zelo absurdo de V. era porque ela sabia que alguém poderia fazer com Lilith aquilo que tantos já tentaram fazer comigo na Cidade Baixa, durante o meu trabalho, eu-...! Eu não suportava a mera impressão, mesmo que ela não fosse a minha irmãzinha de verdade eu jamais iria aceitar deixar alguém tratá-la assim também!

— "Bem, já chega de assunto. Vocês precisam começar a trabalhar logo ou o cronograma da boate ficará todo bagunçado."

V. então sem mais nem menos cortou aquele assunto se aproximando de Gale e o puxando pelo braço! No que impacientemente ela o mandou lhe seguir para ajudar com alguns reparos externos largando Saret e eu aos cuidados da boate após escancarar a porta da frente e sumir com ele por entre os raios de sol antes que algum de nós tentasse lhe perguntar algo mais! Sem outra opção então além de deixar todas aquelas informações apenas afundarem no vazio de minha mente, eu enfim tomei a atitude de igualmente chamar Saret para irmos até o bar pegar o resto dos produtos de limpeza. Eu não sabia se iria ter a chance de ter uma conversa daquelas com V. novamente, mas uma coisa eu tinha certeza -até essa chance voltar, eu iria precisar deixar esse salão brilhando primeiro!

Trabalhar com Saret na limpeza ao mesmo tempo que era muito fácil também era muito difícil. Éramos igualmente dedicados e rápidos no serviço, porém o seu corpo continuava claramente machucado e a sua voz continuava igualmente muito seletiva diante da minha presença. Falando ela brevemente comigo só quando mutio necessário, e mal olhando nos meus olhos antes de escolher largar o cabo do esfregão para ir limpar as mesas com um pano -possivelmente por conta de suas mãos machucadas não conseguirem segurá-lo por muito tempo sem reclamar.
E naquilo nós dois fomos trabalhando, eu tentava deixar as tarefas mais simples e minuciosas para ela enquanto me ocupava com a parte mais braçal. Limpando quase todo aquele chão com a ajuda dos meus poderes para ser mais rápido, até que por fim só restou auxiliar Saret com o resto das últimas mesas próximas à escada do segundo andar. E foi ali que eu não aguentei mais e precisei lhe confrontar sobre algo.

— "Então Saret, Gale acabou me falando sobre como vocês dois acabaram juntos, naquele prédio..."
— "..."
— "Ele também me disse sobre como vocês se conheceram, há 1 ano atrás."

Ao ouvir aquilo Saret então largou o pano que estava passando na mesa e se virou para mim, com um olhar um tanto seco e uma voz muito ríspida.

— "E o que é que tem?"
— "N-nada..."
— "..."
— "Eu só estava pensando sobre como você escondeu isso de Sal esse tempo todo..."
— "Você também nunca contou para ela sobre ter feito parte da BlackHole escondido."

Ouvindo aquilo eu então quase dei um pulo, surpreso!
"De onde que Saret ouviu isso!?"
A encarando um tanto preocupado, no que ela mesma parou de me olhar e voltou a limpar a mesa como se não tivesse dito nada demais.

— "De quem você ouviu isso, Saret!?"
— "De quem você acha? Aquele idiota não sabia ficar quieto perto da Minka e ela também não parava de perguntar tudo para ele! Foi muito inconveniente aturar eles dois por uma noite inteira conversando enquanto tentava fazer o jantar-... haah."

De repente, parecendo se dar conta de suas próprias palavras Saret então largou o pano sobre a mesa mais uma vez. Encarando as suas mãos com um estranho olhar de arrependimento no que o seu corpo então pareceu não aguentar mais e ela precisou sentar na poltrona, apoiando sua cabeça com as mãos como se o peso do mundo inteiro pudesse finalmente se revelar ter estado esse tempo todo sobre os seus ombros.

— "... Você está chateada com ele, não é? Pelo que aconteceu."
— "Acho que estou mais chateada é comigo, por ter deixado acontecer. Eu sabia que tinha algo errado, eu podia ver nos olhos dele, mas-...!"
— "..."
— "Mas não consegui dizer não quando Minka começou a insistir muito. Pela segunda vez eu precisava ter dado as minhas costas para ele, e não consegui... porque eu me preocupei mais em desapontá-la do que ouvir os meus instintos."
— "..."
— "A princípio eu até cogitei que ele pudesse estar me usando para chegar na Clínica, então por isso decidi não ir trabalhar nos dias seguintes ou envolver Sal. Eu pensei que se não saísse do lado dele, quem sabe Sal e Minka ficariam mais seguras-... mas no fim, tudo que consegui com isso foi machucá-la de uma forma que nem mesmo ele teria sido capaz. Eu-...!"
— "Não Saret, você não a machucou! Você a salvou! Não estávamos conseguindo tirar ela dos escombros, não podíamos fazer nada além de olhar. Foi você, a única que realmente conseguiu fazer algo por ela."
— "..."
— "..."
— "Ele disse que você tinha entrado na BlackHole para vingar uma pessoa importante. Naquele dia eu pensei que você fosse um idiota por ter tomado essa decisão mas, agora... agora eu acho que estou com inveja, porque eu queria também ser capaz de vingá-la. Só que como eu consigo vingá-la de mim mesma? Como eu vou poder superar o que aconteceu, se nem mesmo consigo me sentir menos culpada do que os outros?"
— "Saret..."
— "..."
— "Eu nunca me vinguei por Sáshia de verdade, e nem nunca superei a morte dela. Quando eu percebi que estar na BlackHole iria me fazer machucar mais pessoas do que aliviar o meu peso, eu então abandonei eles. Porque perdas assim a gente não supera, a gente apenas aprende a conviver."

Após ouvir aquilo Saret então se calou como se tentasse processar as minhas palavras com muita dificuldade. Estava óbvio em seu olhar o quanto a sua dor ainda era muito recente, muito incapacitante para ela conseguir sequer chegar naquele difícil nível de aceitação. E sabendo que eu também não poderia forçá-la, meu corpo então igualmente se sentou na poltrona do outro lado esperando que ela decidisse voltar a dizer qualquer coisa como um sinal de que iria tentar ficar bem por conta própria -sim, eu ainda me sentia desconfortável sempre que terminava com a responsabilidade de consolá-la.

Só que no que os minutos foram se estendendo e Saret sequer saiu daquela posição, a minha impaciência passou a crescer mais e mais. Isso, até o ponto em que eu não consegui aguentar mais esperar um sinal de vida dela e resolvi lhe dizer qualquer coisa para afastá-la daquele seu estado de pensamento solitário do qual eu não tinha muito a permissão para também me meter!

— "Sabe... Sal é quem me mandou atrás de você naquela manhã."
— "..."
— "Quando voltarmos para a Citadela eu tenho certeza de que ela vai querer te ver e conversar melhor sobre isso tudo, você só precisa ser forte até lá. Ela vai saber o que te dizer."
— "Eu quero muito vê-la, ver que ela está bem com os meus próprios olhos, mas-... mas ainda não sei se tenho coragem para falar sobre o que aconteceu."
— "Bem, não é como se você vá conseguir também esconder por muito tempo, do jeito que está deixando tudo tão evidente..."

Quando eu disse aquilo Saret então levantou a sua cabeça sem entender do que eu estava falando, me fazendo apontar em resposta para o pano molhado sobre a mesa e o balde com água recostado na poltrona, ao lado de seu pé.

— "Você não usou a sua feitiçaria nem mesmo para molhar o pano, enquanto que eu limpei todo esse chão na metade do seu tempo sem sequer mover o meu balde de lugar. Isso sozinho já faz qualquer feiticeiro perceber que você está evitando os seus poderes -e isso não é normal."
— "Humph! Eu só não quis usar os meus poderes atoa -isso não quer dizer nada!"
— "Saret, desde o incêndio você parece que ficou com medo dos seus poderes. E cada vez fica ainda mais óbvio que você está bloqueando eles! Até mesmo quando estávamos fugindo dos Skreas você não conseguiu se forçar a usá-los! Ficou encolhida em um canto enquanto eu, Gale e Damian lutávamos! E eu sei que você era capaz de ter entrado naquelas brigas conosco-...!!"
— "PAF!!"

De repente para a minha surpresa Saret então se levantou com raiva da poltrona dando um soco muito forte na mesa para eu me calar! Me deixando tanto espantado quanto ela própria, ao ser interrompida pela forte dor que transpareceu em sua expressão e a fez recuar com a palma de sua mão enfaixada segurando-a em arrependimento!

— "S-Saret... você está bem?"
— "Me deixe!"

Eu tentei me aproximar dela para ver a sua mão, mas no segundo em que fui tocá-la Saret fez um movimento ameaçando me empurrar para trás! No que ela então se afastou ainda mais das mesas me falando em um tom profundamente chateado.

— "Eu não tenho que ficar te aturando, o que você acha que sabe a meu respeito!?"
— "..."
— "Haah... já chega, eu não quero mais ter que olhar para você."
— "E para onde você acha que pode ir?"
— "Lá para cima, ajudar Lilith! Ficar perto dela pode ser difícil, mas não é tão insuportável quanto ficar aqui, com você... sendo forçada a toda hora me lembrar das pessoas que eu amo e o fato de que elas não estão mais comigo!"

Dizendo aquilo em um tom incisivo Saret então me deu as suas costas e sem qualquer resto de consciência simplesmente me abandonou sozinho naquele salão com dois panos molhados e 6 mesas restando limpar!
"Haah, Yura... acho que teria sido mais útil você ter ficado quieto."
Eu tentei relevar um pouco a sua atitude mesmo com a frustração de ter que terminar sozinho aquela faxina, imaginando se Ebraín realmente havia acertado ao pedir a minha ajuda a respeito de Saret -honestamente, eu duvidava de sua escolha cada vez mais.

— "O que afinal eu posso fazer se nem a minha presença ela admite conseguir suportar?"

Minha voz então desabafou para o vazio enquanto eu voltava a esfregar cada uma daquelas mesas. Pensativo, sem conseguir da mesma maneira esquecer a última coisa que ela me disse antes de sair... sobre eu a fazer lembrar de todas as pessoas que ela amava e sentia falta.
"Se é assim que ela se sente comigo... então deve mesmo ser bem torturante."
Minha cabeça ponderou calmamente me perguntando também sobre como as outras pessoas eram afetadas na minha presença de Vessel. V. disse que eu a fazia se sentir egoísta ao desejar me ter para si, Ebraín e Sal diziam me amar como um filho... mas e Damian? Como será que eu realmente o fazia se sentir? Que tipo de amor eu realmente o fazia sentir?

Meus olhos então escaparam um instante para a porta aberta no meio do salão imaginando sua figura aparecendo ali entre os raios de sol.
"Se ao menos eu pudesse te perguntar... se ao menos eu pudesse ter a coragem de ignorar as palavras dos outros e ouvir apenas a sua -eu queria muito poder ouvi-las."
Um aperto se fez no meu coração com aquele desejo, sabendo eu muito bem que por mais que a insegurança continuasse a me corroer, eu não poderia eternamente viver escondido atrás dela. A verdade iria aparecer em algum momento assim como apareceu hoje com V., com Saret, e ontem com Gale... só que a diferença é que eu também nunca iria ter conseguido acertar o que havia no coração deles se eles porém não tivessem me contado. E dessa mesma maneira, nem V. e nem eu também teríamos a capacidade de acertar o que realmente estava agora se passando dentro de Damian... a menos que eu igualmente o desse a chance de me dizer...

— "Mesmo que essa verdade vá me machucar-... eu não posso ficar fugindo eternamente como uma criança que tem medo de se decepcionar. Eu já me decidi, eu vou enfrentar qualquer que seja a sua verdade Damian, e em troca, eu vou querer que você também receba a minha!"



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