Black Desert escrita por Kallin


Capítulo 134
A dama de vermelho




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— "Chegamos!"

O mercador não tardou em nos avisar, ao que antes que eu pudesse me dar conta nós já estávamos atravessando o oásis ao redor da cidade que abrigava os acampamentos dos mercadores usados para guardarem os seus camelos e mercadorias enquanto eles próprios desfrutavam da noite na cidade. Sendo a nossa passagem no meio da escuridão levemente acentuada pelo gemido dos animais que despertavam com a nossa presença, pelo fogo que queimava brandamente nas fogueiras ao ar livre, e pela sensação da água fresca contornando-os enquanto que um ou outro vigia se dava ao trabalho de levantar sua tocha apenas para conferir que não éramos ladrões.
"Ladrões de camelo, nossa. Como eu me esqueci disso desde que passei a viver na Citadela. E também dos-... haah, dos traficantes de escravos. Aposto porém que seus acampamentos estão mais afastados, já que eles não têm boas relações com nenhum outro tipo de viajante senão eles mesmos."
Meu corpo se estremeceu com aquela irrelevante recordação, ao que eu pude sentir Damian imediatamente pousar a sua mão em meu ombro sem ousar dizer nada. É verdade, estávamos muito próximos para ele não conseguir ser afetado pelas minhas emoções. E por conta disso eu então voltei a me recostar contra a carroça tentando ignorar quaisquer outras desagradáveis recordações, mesmo que algo naquelas largas ruas de Nahalt e em seus prédios de até três andares adornados com arcos de sustentação e tingidos pela cor clara do estuque feito das areias daquela região me trouxessem uma estranha sensação de familiaridade e inquietação que eu apenas não conseguia abstrair.

E foi aí que a carroça enfim parou. Ante uma grande construção larga de dois andares feita de estuque que se destacava de várias outras posicionadas em seu entorno graças ao alto som de música vindo de seu interior, e de uma avermelhada luz neon que parecia transbordar tanto da marquise que acompanhava as janelas seladas do primeiro andar, como também de dentro de uma tímida porta de madeira semi aberta. Estando parada próximo a ela a figura escurecida do que parecia ser uma bela e alta mulher recostada contra a parede, levando impacientemente uma piteira para longe de seu rosto e trazendo-a de volta várias vezes, enquanto observando a fumaça que saia de sua boca se dissipar sobre a fria escuridão da larga rua de areia batida que nem mesmo as estrelas no céu conseguiam direito iluminar.
Afastando ela então o seu corpo da parede, quando notou que a nossa carroça não iria mais se mover para além de sua vista, no que ela lentamente veio andando em nossa direção me permitindo aos poucos conseguir distinguir o contorno de seus cabelos que não passavam dos ombros, se ondulando eles gentilmente ao redor de suas feições, assim como o seu belo vestido vermelho fendido que quase se arrastava de forma elegante no chão sob seus pés, erguidos estes sobre dois belos sapatos de salto alto.

— "Como combinado, aqui é a parada de vocês. Hora de descer."

O mercador rompeu a expectativa do meu silêncio no que pude logo sentir a carroça chacoalhar com os movimentos pouco hesitantes de Gale, Saret e Damian, obedecendo-o prontamente! Diferente de mim porém, que fiquei ali em transe... em transe com a figura daquela mulher que de forma muito elegante continuava a se aproximar, em seu próprio tempo, de todos nós. Deslizando ela refinadamente os seus pés sobre a areia enquanto a vermelhidão da luz emanando no prédio atrás contornava as suas curvas de uma forma quase visceral...
"Essa pessoa, eu conheço essa pessoa-..."
Eu engoli a seco aquela estranha e familiar sensação como se um misto de alegria e medo pudessem criar um sentimento completamente novo dentro de mim. Um sentimento que ao mesmo tempo podia me emocionar, e me deixar muito pouco confortável ao finalmente entender para onde afinal eu havia retornado.

— "Yura, vamos?"

A voz grossa de Gale então me fez voltar a mim, ao que eu olhei correndo para os lados notando nada mais ao meu redor senão a cara de tédio do mercador! Me forçando eu então, contra o meu próprio choque, a me jogar lá de cima em um pulo mal pensado que apenas Damian teve a reação de impedir antes que eu alcançasse o chão! Ignorando Saret minha desastrada reação, no que ela ao mesmo tempo se esticava por sobre a proteção da carroça para pegar as bolsas de couro, antes da voz grave e madura daquela mulher interrompê-la.

— "Deixe os suprimentos para trás. Vocês não precisarão de nada disso estando sob os meus cuidados."
— "V.!!"

Eu deixei aquele nome escapar sentindo o meu coração quase parar ante a certeza de que eu não estava enganado! Mas como, como eu pude não reconhecê-la de imediato!? E esse lugar também! A minha boca estremeceu, levando eu finalmente uma de minhas mãos ao rosto para tentar conter as lágrimas que quase escaparam dos meus olhos sem acreditar -afinal já fazia quanto tempo? 5 anos desde que eu havia visto V. pela última vez?!
"Como eu não me toquei? Nahalt, claro! Foi aqui que eu fui salvo dos traficantes por V., e foi exatamente nessa boate que eu morei por anos até Ebraín finalmente me levar para a Citadela! Mas como eu pude!? Como eu ousei não reconhecer esse lugar assim que ouvi seu nome!?"
Minhas mãos terminaram de cobrir o meu rosto por vergonha, mesmo que no fundo eu até pudesse entender as razões que me fizeram decidir esquecer esse lugar. As velhas lembranças que remetiam à minha vida de escravo, é verdade... nenhuma dessas lembranças antes da Citadela eu fiz questão de carregar comigo. Nenhuma lembrança que pudesse me tentar a olhar para trás novamente, mesmo que algumas delas até tivessem sido boas.

Sentimentos mistos de receio e felicidade voltaram então a brigar dentro do meu estômago, no que por um descuido meu duas mãos finas de repente se aproximaram afastando os meus dedos da frente de meu rosto e me forçando a enfim dar de cara com V. e seu familiar, aconchegante sorriso! No que totalmente enfeitiçado pela sua presença eu simplesmente não consegui mais resistir e pulei em seus braços, abraçando-a com uma saudade que não mais havia uma razão para ser escondida! Uma saudade de 5 anos que antes eu precisei deixar esquecida dentro de mim apenas para não alimentar qualquer ousadia que me instigasse a querer retornar para esse lugar... sentindo V. também começando a me abraçar de volta com muita força, enquanto afundando os seus dedos em meus cabelos para acariciar a minha cabeça de forma afetuosa.

— "Yura, como é bom te ver novamente."
— "V.! E-eu também... eu também estou tão feliz em te rever!"

Me ouvindo dizer aquilo V. então nos afastou, terminando ela de abaixar o meu manto para ver melhor o meu rosto ao que eu também em troca consegui agora enxergar melhor os seus olhos castanhos-escuros bem delineados, assim como o tapa olho preto em seu olho esquerdo que normalmente acabava sendo coberto por seu ondulado cabelo cobreado sem ela sequer se importar.
Tirando algumas mechas grisalhas que acentuavam a sua elegância e muitas poucas rugas que acabaram surgindo graças ao seu sempre sério semblante ela realmente não havia mudado nada. Ela continuava sendo aquele misto de pessoa que me assustava e me acolhia com a sua presença incomparavelmente poderosa, não tomando V. muito mais tempo com a nossa reunião porém, ao que após um último sorriso contente ela então me puxou para o lado dando alguns tapinhas no meu ombro antes de se virar finalmente para Saret. Que estava parada à minha esquerda um tanto sem saber o que fazer ou dizer diante da presença imponente de V. que agora a encarava.

— "E pelo que eu li nas cartas você deve ser Saret, a outra protegida daqueles dois estorvos na minha vida. Não é?"

Falando aquilo V. tirou então a mecha de cabelo que cobria o seu tapa olho, apoiando a sua outra mão na cintura enquanto encarando Saret de cima a baixo naquela fraca iluminação da rua que acentuava a sua acuada postura. Tremendo ela um pouco em resposta, ante o silêncio questionador da própria V. que decidiu aproximar então uma de suas mãos do rosto de Saret tomando consigo uma das mechas escuras de seu cabelo e deslizando por entre aqueles longos fios os seus dedos, em um gesto admirado que adornou ainda mais o tom gentil com a qual ela decidiu prosseguir.

— "Você parece uma boneca... Não precisa ter medo de mim querida, eu sou o contato de Ebraín aqui nessa cidade. Me chame de V., é como todos me conhecem. Ele já me contou pelo quê vocês todos passaram, e enquanto você estiver sob os meus cuidados eu prometo que nada daquilo irá voltar a se repetir. Eu lhe dou a minha palavra."
— "O-obrigada..."

Saret balbuciou em um tom não muito convincente ao que independente disso V. apenas balançou a sua cabeça se voltando então de forma perspicaz para Gale, que estava do meu outro lado. Cruzando ele os seus braços e franzindo suas sobrancelhas em resposta, mesmo que o seu sorriso convencido de canto de boca simplesmente não conseguisse lhe abandonar. No que V. imitou aquela sua pose e começou a se aproximar dele lentamente, me fazendo notar que para cada passo que ela dava em sua direção, o corpo de Gale parecia tentar recuar em igual proporção -mesmo que ele acabasse não o fazendo.

— "E você deve ser o tal do Gale. Ebraín me avisou sobre as suas artimanhas e me disse para não confiar demais na sua palavra, mas creio que ele não o avisou que eu também sei ser muito sórdida quando necessário."
— "Heh, ele realmente não entrou em muitos detalhes -ao menos não com a gente."
— "Então pelo visto sou eu que terei que esclarecer as coisas entre nós dois. Escute bem, enquanto você não entrar no meu caminho ou optar por me causar problemas, eu poderei optar também por ser uma pessoa bem agradável. Você entende aonde eu quero chegar?"
— "Sim, e não precisa repetir. Eu aprendo rápido o meu lugar."
— "Ótimo. Adoro lidar com pessoas espertas."

Falando aquilo em um tom de ameaça, V. então se afastou de Gale enfim olhando nós 3 de uma forma cautelosa, mas com um sorriso convencido em seu rosto. No que, quando porém eu pude notar os seus olhos se fixarem na imagem oculta de Damian que estava logo atrás de mim, eu pude ver V. perder aquele seu sorriso antes de voltar a propositalmente ignorá-lo. Acenando ela com a sua mão para o mercador como se enfim permitindo-o partir, antes de se dirigir então mais uma vez para todos nós, junto ao som dos camelos voltando a caminhar sobre a areia seca e o ranger das rodas da carroça seguindo para longe, para dentro do breu que nos rodeava até por fim sumir.

— "Certo, pelo que vejo daqui vocês não encontraram problemas durante a viagem, todos parecem inteiros. Agora, antes que eu os convide para entrar na minha propriedade para que vocês possam descansar, eu quero deixar bem claro uma outra coisa que eu não sei se Ebraín chegou a lhes explicar. Se for para vocês ficarem aqui comigo, vocês terão que seguir tudo o que eu disser sem me questionarem. Vocês não estão aqui de férias, então espero que todos trabalhem para pagar pela estadia. O local diante de vocês é a minha boate, RedLight, o andar de baixo funciona durante a noite e o andar de cima é onde eu moro -e onde vocês ficarão hospedados. Eu não quero vocês se expondo às pessoas dessa cidade, então eu só permitirei vocês aqui embaixo de manhã, para me ajudar com a limpeza e com outros serviços menores. E não vou querer saber também de vocês andando por aí a menos que eu tenha pedido. Os habitantes de cidades pequenas como Nahalt tem o mau hábito de levar as suas fofocas até os ouvidos dos mercadores, e estes podem levar informações desnecessárias para onde não se deve, então quanto menos a cidade souber que vocês estão aqui melhor será. Avisado isso, se mesmo assim vocês quebrarem algumas destas regras básicas eu os devolverei para Ebraín sem pensar duas vezes. Estes são os meus termos, alguém aqui não concorda com eles?"
— "..."
— "Pensem bem, porque se eu sentir que estou perdendo o meu tempo aqui vocês não vão gostar do resultado."

Em um tom ameaçador V. então fitou cada um de nós, menos Damian, esperando por uma resposta no que eu cruzei os meus braços indiferente ao desejo de questioná-la. Notando Saret abaixar a sua cabeça e fechar a sua boca firmemente, enquanto que Gale continuava encarando V. de volta com uma má expressão que porém não ameaçava discordar de suas vontades -acho que a essa altura, era porque seria tolice realmente qualquer um de nós recuar depois de tudo o que aconteceu. O que fez V. finalmente quebrar aquele clima com um sorriso confiante, e um balançar decidido de sua cabeça dando ela enfim as suas costas para todos nós e nos fazendo um gesto com sua mão para segui-la.

— "Venham então, eu vou mostrar onde vocês irão ficar. Não é bom continuarmos aqui nessa friagem, tão expostos."

Ouvindo suas ordens Saret e Gale prontamente começaram a seguir V. ao que eu por outro lado levei alguns segundos parado ainda tentando digerir aquela situação de estar de volta em seus cuidados -independente de se o frio, que cada vez mais se acentuava, me forçasse a continuar de braços cruzados para refreá-lo de alguma maneira... eu me sentia sem pressa de dar o primeiro passo. Levando com isso então os meus olhos para as estrelas de um modo atribulado.
"Haah, até mesmo as estrelas parecem familiares... de alguma maneira. Eu realmente voltei ao início de tudo, não é? Para o lugar que eu havia me prometido nunca mais retornar se fosse para ter alguma chance de encontrar as minhas irmãs..."
Engolindo então a seco aquela nostalgia complicada os meus pés enfim começaram a lentamente se mover, espalhando para os lados a areia sob eles com muita hesitação no que cada vez mais a minha visão parecia se tingir com o vermelho daquelas luzes que afugentavam o brilho gelado das estrelas para longe.

— "Yura..."

De repente então eu pude sentir Damian me segurar por trás com uma voz receosa e uma presença que -desde que chegamos- parecia ter evanescido junto a todo o resto das coisas que só pareciam conseguir manter a sua relevância dentro da Citadela. Não parando nós dois de seguir em frente porém, mesmo que em sua companhia eu agora me movesse ainda mais lentamente do que antes já estivesse.

— "Damian, você está bem?"
— "... Eu não vou com vocês. Há muitos Humanos com sentimentos alterados nesse prédio, eu posso sentir daqui."
— "! Espera, mas você não pode também ficar aqui sozinho na rua! Essa cidade não é a Citadela, você não tem nenhum outro lugar seguro para ficar!"
— "Haah..."

Por um instante eu achei que Damian iria tentar argumentar contra as minhas próprias palavras, só que ao me ouvir falar aquilo, quase como se a sua cabeça tivesse esbarrado na própria realidade, ele apenas decidiu dar um suspiro e voltou a se calar. Fazendo o meu peito estranhamente se remoer com aquela falta de atitude que não combinava em nada com ele ao que então, por alguma razão, a minha mão tentou procurar pela dele sentindo ele recuar por um instante antes de me permitir enfim segurá-lo.

— "Damian, eu vou estar com você. Se algo der errado, eu-...!"
— "Haah... está tudo bem, eu já disse que você não tem que fazer isso. Afinal a decisão de vir foi minha, e você não tem-..."
— "Damian!"
— "Apenas... esqueça. Eu resolverei isso sozinho."
— "..."

Ele me disse aquelas palavras de uma forma um tanto fria, soltando então a sua mão da minha e acelerando os seus passos como se estivesse tentando evitar algo naquela conversa, ao que porém, assim que Gale e Saret passaram pela porta tentando Damian fazer o mesmo, V. então parou em seu caminho abaixando o braço para bloquear a sua passagem com uma expressão ameaçadora!

— "Eu não disse que você podia vir junto, Skrea. Volte para a sua merda de cidade, você não é bem vindo aqui."
— "!"

Vendo aquilo e me recordando das palavras de Ebraín -quase que instantaneamente- eu então acelerei os meus passos e me prostrei entre ambos! Encarando V. com uma séria preocupação, ao que eu pude sentir o meu estômago se revirar em ansiedade por estar desafiando-a, mesmo sabendo que eu não iria ter outra escolha!
"Ebraín não estava brincando em dizer que a única chance de Damian iria ser eu interceder por ele! V. é muito difícil de se lidar quando contrariada!"
Eu engoli a seco aquela noção, temendo pelas consequências de enfrentá-la mas não deixando porém que aquilo me significasse mais agora do que deixar Damian seguro precisava significar!

— "V.! Ele também está com a gente, Ebraín disse que iria te enviar uma carta explicando-...!"
— "Sim, ela chegou algumas horas antes de vocês. Mas ainda estou tentando digerir o que estava escrito nela."
— "Então você sabe que Damian está do nosso lado!"
— "Não, o que eu sei é que você e aquele velho perderam a noção do ridículo, mas eu não! Skreas nunca foram bem-vindos em Nahalt e nem em minha boate, e eu não pretendo fazer exceções essa noite!"
— "Grr, então eu também não entrarei! Pode me deixar nas ruas se quiser, mas eu não vou abandoná-lo aqui sozinho! Eu prometi para Ebraín que iria me responsabilizar por ele e-...!"
— "Pff-...! Ha-haha-hahaha!"
— "V.!?"
— "Você está mesmo querendo fazer isso? Então faça, fique aqui fora! Ebraín costumava me contar por cartas que aquele menino tão doce, tão ingênuo que eu mandei para ele estava crescendo. Se tornado um homem, um homem tão tolo que seria capaz de até mesmo ousar um dia me desafiar se tivesse a oportunidade. E eu admito que quis pagar para ver se era verdade. Se ele havia mesmo conseguido te criar tão mal assim. Ah, que decepção agora descobrir que a habilidade daquele homem em me decepcionar passou também para você..."
— "Humph."

Era difícil ouvir V. falar tão mal de mim ou de Ebraín daquela maneira, mas ao invés de demonstrar o quanto suas palavras podiam me machucar dado o tanto que eu considerava a sua opinião, meu corpo continuou se mantendo firme naquela mesma posição independente de seus dedos finos e vermelhos por conta do esmalte deslizarem pela minha bochecha sordidamente. Contornando eles o meu rosto irritado de uma forma depreciativa, mas que eu sabia que poderia piorar se porém eu agora demonstrasse qualquer fraqueza ante sua dureza. Trocando ela olhares comigo naquele clima agridoce, até enfim a sua mão se abaixar com raiva e uma de suas unhas arranharem a minha pele, me obrigando a conter o meu desconforto porém ao que, em um tom impaciente, V. abruptamente concluiu.

— "Você realmente me voltou como um homem cheio de convicções. E Yura, eu odeio homens com convicções demais e atitudes de menos."
— "..."
— "Mas pelo menos você está sabendo manter alguma atitude. Talvez não seja um caso totalmente perdido afinal... acho que ainda tenho como te consertar mesmo que precise quebrar um pouquinho as minhas regras dessa vez para ter a chance de corrigir esse seu temperamento. Vocês dois, entrem antes que eu mude de ideia."
— "!! Você está falando sério V.!?"
— "É claro que estou. Mas Yura, eu não trato nada com Skreas... Se você quiser mesmo me forçar a isso você então terá que se esforçar e trabalhar pelos dois, e se ele sequer sair da linha por algum motivo é você que irá também pagar pelo que ele fizer -e a punição será à altura dele, não à sua... Mesmo ouvindo tudo isso, porém, você ainda deseja que eu o receba em minha residência?"
— "Sim! Se for para tê-lo ao meu lado eu vou fazer o que for preciso!"
— "Humph, combinado então. Vamos ver quanto tempo eu levarei para conseguir fazê-lo se arrepender dessas palavras."

Claramente não muito contente com sua própria decisão V. então saiu do caminho, no que sabendo da reticência de Damian em também querer entrar eu simplesmente o segurei pelo braço e o puxei comigo para dentro, sentindo os seus pés resistirem um pouco mesmo que a sua voz sequer parecesse ter a intenção de me avisar o que estava se passando dentro dele após ter testemunhado tudo isso! Não, eu também não queria saber. Eu me sentia naquele momento cometendo um grande erro, e quanto mais eu agora ousasse olhar para trás mais eu temia me assustar com o precipício que estava se desfazendo atrás de mim me impedindo de simplesmente voltar atrás na direção que escolhi tomar! Eu não podia fazer nada, senão seguir adiante e torcer para que mais a frente as coisas pudessem se tornar menos complicadas do que agora estavam sendo.

Lá dentro da Boate porém todas as minhas preocupações simplesmente pareceram se dissolver, sendo meus sentidos violentados de imediato pelo misturar do escuro profundo e das luzes vermelhas que pareciam se enfrentar ao som de uma música alta, constante e inquietante, embalando esta também o movimento de muitas pessoas em pé agitadas se reunindo ao redor de pequenos palcos espalhados pelos centros de um comprido e extenso salão onde meninas vestidas de odaliscas dançavam de forma simultânea. Cada uma delas se dividindo entre a obrigação de seduzir aquelas pessoas com seus movimentos, e ao mesmo tempo dar uma atenção especial para o cliente que atirasse a maior gorjeta aos seus pés. Esperando este que o transe do olhar daquelas belas meninas por um mero minuto pudesse se fixar em seus peitos e os embalar até o resto da noite em uma satisfação que a própria V. jamais permitira em seus domínios ser saciada de outra maneira, senão por aquela distante e charmosa ilusão -na verdade, V. sempre fora muito exigente quanto a decência dos clientes com suas meninas, e graças a sua personalidade assustadora ninguém ousava ali desafiar as suas vontades sob o risco de perderem os próprios dedos.
Se eles quisessem fazer algo mais íntimo com elas, teria então que ser apenas sob o seu consentimento e bem longe da boate. Do contrário você nunca mais iria ouvir falar o nome daquela pessoa novamente pelos arredores. Ou... eram estes os boatos que eu me lembro de ficar escutando enquanto morava em Nahalt com ela. Não sabendo dizer se eu acreditava muito ou não neles, já que eu a conhecia bem o suficiente para saber que V. também era uma pessoa muito generosa e bondosa quando queria ser.
"Se bem que para esse lugar nunca ter se degenerado ao nível da Boate na Cidade Baixa... eu diria que de fato V. devia de ter mesmo algum truque muito assustador para manter tudo aqui sob ordem -ahem, sob suas ordens."

Meus olhos admiravam aquele lugar que desde a minha partida havia mudado consideravelmente, sem porém ter perdido a sua essência única e atípica à cultura dos desertos. Tendo minha memória porém dificuldade para se recordar de fato de como RedLight realmente era durante os horários de serviço já que na verdade nem mesmo eu, V. permitira muito descer durante esses horários para observar o movimento -afinal, eu sempre fui um de seus protegidos especiais. O máximo que eu conhecia desse ambiente fora na verdade pelas vezes em que consegui me misturar escondido aos clientes sem que ela me descobrisse, e isso tudo só após as longas tardes de trabalho e de estudo em diversas artes. Estudos esses relacionados a danças ou lutas, o que me fazia às vezes chegar a pensar que ela de fato planejava um dia me transformar em uma odalisca, e outras vezes, que ela queria a todo custo não ver eu me tornando uma. Me exigindo porém constantemente a perfeição fosse na arte de seduzir as outras pessoas ou de me defender delas, afinal era assim que V. desde sempre escolheu me tratar... não como se eu fosse um filho e nem como se eu fosse um escravo, mas sim como se eu fosse digno de fazer parte dos seus orgulhos pessoais.
"É... E eu só fui conseguir entender melhor esse lado de V. quando enfim chegou o dia da minha partida e ela me disse: 'agora você pode fazer o que quiser porque eu o tornei capaz disso, só não me desaponte'. Foi ali que finalmente eu entendi que ela não estava me preparando para ser uma coisa ou outra. Ela estava era me preparando para ser aquilo o que eu quisesse ser, sem ter que depender da gentileza ou dos interesses de mais ninguém. Sim, foi ali que enfim eu percebi o quão grande seu amor por mim realmente fora, e o quão grande a minha gratidão por ela também jamais poderia deixar de ser."

Distraído por tantas lembranças que pareciam me assaltar por todas as direções eu porém me deixei surpreender quando então senti V. se embrenhar por entre nós 4 logo após cruzarmos a lateral de uma parede adornada com vários bancos estofados e mesas, tomando ela a dianteira e nos apontando enfim uma passagem discreta camuflada mais adiante na parede que dava até uma escadaria escura, estreita e comprida.
"Ah sim, eu me lembro dessa escadaria!"
Como se me recordar de cada pequeno detalhe ainda pudesse continuar a me surpreender, eu então deixei um sutil sorriso me escapar subindo animado por aqueles degraus na frente dos outros! Afinal eu pressentia que algo me aguardava ansiosamente em seu fim e eu tinha que subir o quanto antes! Mesmo que minha memória tão pouco estivesse me ajudando enquanto meu peito pulava de forma animada, eu sabia! Havia algo muito importante me aguardando além daquela simples porta de madeira que esperava ser empurrada pelas minhas mãos -e as de mais ninguém, considerando que aqueles que estavam no andar de baixo tinham um mínimo de amor a vida para não ter a ousadia de invadir o lar de uma das maiores matronas de Nahalt por mera curiosidade ou má intenção!

E foi bem ali, quando eu terminei de empurrar aquela porta e sentir o clarão vindo do confortável cômodo do outro lado dela ofuscar a minha vista que meu peito terminou de disparar! Fazendo o resto das lembranças simplesmente voltaram a mim de forma praticamente instantânea quando então o som da voz doce e feliz de uma garota de cabelos brancos e pele pálida surgiu em meio àquela luz, trajando ela um belo vestido azul rendado que esvoaçou junto a corrida que suas pernas deram na minha direção, se atirando ela finalmente nos meus braços!

— "YURA!!"

Aquela voz pareceu fazer 5 longos anos simplesmente desaparecerem da minha mente como em um estalar de dedos! Mesmo que eu não mais tivesse que me ajoelhar para envolver os meus braços ao redor daquela pequena cintura, ou ter cuidado com a força de minhas mãos sempre que eu queria erguê-la por sobre meus ombros motivado pelo som de suas gargalhadas intermináveis! Sim, essa era aquela mesma criança que eu tive a audácia de uma vez abandonar e apagar da minha mente. Aquela mesma criança que parecia uma pequena boneca, de cabelos compridos sempre bem penteados e rosto delicado, que constantemente me olhava feliz com seus olhos grandes vermelhos enquanto me segurava pela roupa com as suas mãos pequenas tentando me seguir para onde quer que eu fosse mesmo que os seus pezinhos quase nunca pudessem me acompanhar durante a pressa das tarefas do dia! Sim, era ela mesma, Lilith, a menina com a qual eu cresci aqui dentro sob os cuidados de V., e que agora já passara da altura da minha cintura mesmo que nossa diferença de tamanho continuasse sendo tão óbvia quanto a diferença de 10 anos em nossa idade -por Grivah, como eu pude me forçar a também esquecer dela sendo que ela claramente nunca se esqueceu de mim?!


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