Black Desert escrita por Kallin


Capítulo 127
Fardo solitário




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Eu não conseguia pensar direito enquanto ouvia os berros de dor daquele Skrea se distanciando de nós, no que meus pés corriam o mais rápido que podiam sobre aquela areia seca tentando acompanhar Gale para o mais longe possível! Sem saber se ele estava ainda seguindo o rastro de Saret e Ebraín, ou se sequer iríamos poder parar em algum momento para eu ter a chance de encontrar algum sentido em tudo que aconteceu! Isso, até eu finalmente perceber que o único som que eu ainda estava conseguindo ouvir era o da fadiga em nossa respiração -e nenhum outro mais.
"Haah, haah... conseguimos mesmo nos distanciar dele?"
Minha cabeça então se virou para trás, com dificuldade em acreditar naquilo enquanto eu tentava recuperar algum fôlego, me pegando de surpresa quando Gale sem aviso me puxou junto dele na direção de um pequeno corredor que ia no sentido oposto das pegadas que estávamos seguindo! Por um momento eu não entendi o que ele estava fazendo, mas quando finalmente notei que a metade daquele caminho estava obstruída por um muro quebrado que parecia ser capaz de esconder as nossas figuras, eu relaxei -Gale só estava procurando um esconderijo temporário.

Foi então que seu corpo grande praticamente desabou contra a parede de um dos prédios que estava nos ocultando. Parecendo ele estar totalmente sem forças, no que eu igualmente precisei abaixar a minha cabeça e apoiar as minhas mãos nos joelhos tentando ignorar a dor nos músculos após um esforço que não era para ter significado muito para mim, se porém eu já não estivesse bem cansado após um dia inteiro fugindo de Skreas! Até a minha respiração parecia ainda estar comprometida pela fumaça que eu havia inalado mais cedo, já que o ar que entrava pela minha garganta era tão áspero que eu acabei não conseguindo conter minha própria tosse algumas vezes. Esperando pacientemente o meu peito se acalmar para enfim decidir também checar o estado Gale, já que ele não parecia estar muito melhor do que eu.

Naquele discreto escuro eu não podia dizer muito de sua expressão, mas graças ao contorno em seu corpo projetado pela pouca luz vinda do céu eu podia dizer que pelo menos o peito de Gale ainda se movia também com dificuldade. Não parecendo ele dar porém qualquer atenção para isso, já que seu rosto apenas apontou então para cima parecendo admirar o céu sobre nós que se mesclava com o topo dos prédios, sem sequer dar atenção ao pequeno rastro de sangue que estava escorrendo de seu nariz.
"Espera, sangue!? Tsc-... então era isso mesmo."

— "Gale."
— "Hum?"
— "Ebraín estava certo esse tempo todo, não é? Você é mesmo um feiticeiro."
— "..."

Ao ouvir minha afirmação com um olhar atento, tudo que Gale fez em resposta foi franzir um pouco as suas sobrancelhas e virar a sua cabeça para o outro lado. Se poupando de afirmar ou negar qualquer coisa, ao que irritado com sua atitude eu não me segurei e acabei gritando com ele!

— "Tsc, você vai mesmo fingir que não sabe do que estou falando!? Mesmo depois de tudo isso que eu te vi fazer!?"

Minha voz ecoou com firmeza naquele pequeno beco ao que eu não tinha mais como ter dúvidas! O sangue, a fraqueza em seu corpo, tudo aquilo era um sinal do uso excessivo de feitiçaria, e isso somado às coisas que eu vi e ao fato de que ele não estava me negando nada era o suficiente para eu ganhar a minha confirmação! Só que eu não ia me contentar apenas com isso, eu queria ouvir ele também admitir! E no que Gale finalmente entendeu isso, um pesado suspiro então escapou de sua boca, assim como uma reticente e sussurrada resposta.

— "Hah, não. É só que-... eu não estou muito acostumado em admitir isso. Preferia que você não tivesse descoberto dessa maneira."
— "E como você preferia que eu tivesse descoberto então!?"
— "Nunca..."
— "Grr, o quê afinal tem de tão errado você ser honesto comigo sobre isso Gale!? Afinal eu também sou um feiticeiro, e-... e seu amigo!"
— "Haah, o problema todo é... esses poderes, eles-... tsc, isso que eu consigo fazer não é algo que as pessoas apreciam descobrir."
— "E-e você acha que qualquer feitiçaria é apreciada assim, de primeira!? É claro que as pessoas sempre estranham! Mas Gale, pelo menos em mim você tinha que ter tentado confiar... porque eu tenho como entender a sua situação!"
— "Haah, não você não tem. Sabemos disso."
— "!?"
— "Yura, o que você pode fazer e o que eu posso fazer são duas coisas muito diferentes! Mesmo nós dois sendo mal vistos a princípio, você sabe que com o tempo as pessoas passam a te tratar melhor porque você pode usar os seus poderes para curar. Mas eu? Ninguém vai desejar que eu exista ou fique por perto delas, porque eu só consigo é ser perigoso. Então não, você não tem como entender a minha situação da forma que está pensando."

Eu ouvi Gale dizer aquilo quase como se pudesse sentir um pequeno traço de medo em sua voz. Vendo-o segurar uma de suas mãos como se encarando um fardo muito grande, mas que diferente de mim ele não temesse mais do que pudesse vir a temer a ideia de tê-lo sendo exposto. Afinal, eu de fato podia não me incomodar com as pessoas me vendo como um pária mas, Gale por outro lado eu sabia que se incomodava -e muito. Já que no fim das contas ele não temia ser adorado ou odiado pelas outras pessoas mais do que ele temia ser rejeitado -coisa que eu acabei aprendendo durante as várias tardes em que andamos juntos por aí, conversando e ouvindo suas histórias acerca da dura realidade das ruas na qual ele se criou sozinho.

Em suas histórias ele me dizia que a vida nas ruas fora uma vida isenta de compaixão, e que até mesmo um chacal faminto poderia ter recebido mais simpatia dos outros do que ele sequer um dia chegou a receber durante a sua infância. Fosse isso dos possíveis pais que o abandonaram à sua própria sorte muito cedo, ou dos estranhos que não tinham qualquer motivo para ter-lhe dado valor mesmo. E que assim ele foi se virando para não morrer de fome até o momento em que a morte deixou de intimidá-lo e ele passou a querer brigar contra ela para conquistar à força o mais próximo de um sentimento de afeto que ele poderia conseguir dos outros -o sentimento de respeito (fosse esse por admiração, ou por medo).

"Haah, eu posso não entender como é de fato ter uma feitiçaria condenada como a dele, mas-... mas pelo menos acho que entendo do que é que ele não quer abrir mão ao estar em troca guardando sozinho esse segredo por tanto tempo assim."
Eu admiti aquilo para mim mesmo percebendo enfim que não tinha por quê eu continuar me chateando com Gale pelas escolhas que ele tomou -afinal, isso ao menos eu podia entender- e que eu não queria igualmente ser "aquela pessoa" que iria condená-lo só por ter temido o julgamento daqueles ao seu redor -mesmo que isso também me incluísse. Não, eu não podia ser "essa pessoa", mais do que eu sentia que devia de agora tentar ser aquilo que ele de fato parecia estar precisando ter consigo. Um amigo (bem mais paciente).

— "Você está certo Gale, eu realmente não vou entender por inteiro o seu fardo. Mas acho que não significa que eu não possa tentar. E que eu não queira..."
— "Heh... Você quer mesmo me entender melhor?"
— "Sim, eu quero saber mais sobre os seus poderes. Eu quero saber mais sobre do que você é capaz e não sobre o que os outros vão achar disso -eu não poderia me importar menos com essa parte."
— "Tudo bem então, eu vou te contar..."
— "..."
— "Eu não sei realmente qual é a extensão dos meus poderes além das coisas que já consegui encontrar em livros, e nem essa parte também foi fácil de conseguir já que a maioria desses textos são raros. Mas resumindo, a minha feitiçaria força alterações químicas instantâneas em qualquer coisa pequena que eu toque. Como plantas, rochas, líquidos..."
— "E criaturas vivas?"
— "Eu nunca tentei -essa é uma linha que eu prefiro não cruzar."
— "Então... você basicamente pode realizar alquimia sem depender de nenhuma ferramenta?"
— "Sim, seria isso. Quando eu uso os meus poderes é como se-... como se eu pudesse sentir a composição de cada uma dessas coisas e tocá-las, mudá-las apenas com o meu pensamento. Mas isso só funciona se eu também souber o que estou fazendo, senão os meus poderes podem acabar agindo de forma imprevisível e criando algo perigoso -até mesmo para mim, já que eu não sou imune à nenhuma substância. Foi por essa razão que eu precisei começar a estudar alquimia. Para usar esses poderes direito em uma emergência."
— "'Emergência'... então você não recorre muito aos seus poderes."
— "Não, para ser honesto eu tenho medo de depender deles para qualquer coisa. Afinal, quanto mais usá-los mais eu posso acabar sendo descoberto, não concorda?"

Gale me jogou aquela indireta com um meio sorriso que deixava claro para mim o seu arrependimento em ter sido exposto por Ebraín mais cedo, o que por outro lado não era algo que podia prejudicá-lo tanto quanto se porém Damian e os outros Skreas talvez acabassem descobrindo em seu lugar. O que me fez sorrir sem me dar muita conta e lhe retrucar de forma bem honesta.

— "Realmente poderia ser, mas também é uma pena -tirando a parte de você usar aquelas flores para incitar os Skreas. Quero dizer, eu nunca conheci muitos outros feiticeiros além das da água, e você pode fazer coisas bem diferentes. Então poder finalmente ter te visto usando os seus poderes daquela forma... até que foi bem legal."

Eu desabafei sem me dar muito conta do quanto minhas palavras significaram para Gale, fazendo ele na mesma hora me olhar surpreso, quase parecendo se engasgar com um sorriso que ele tentou conter de forma atrasada. Tapando então a sua boca logo em seguida e voltando o seu rosto para o outro lado como se envergonhado pela própria satisfação que terminou de dissolver o resto da tensão que ainda o envolvia.
Foi aí que ele decidiu me dirigir novamente a palavra, mesmo que ainda tentando se recompor de seu extasiado sorriso.

— "Heheh... obrigado Yura."
— "Huh? Pelo quê?"
— "Por você ser quem você é. Definitivamente eu gosto (de você)."

Ouvindo aquilo eu então abaixei a minha cabeça um pouco pensativo, satisfeito por Gale parecer melhor, mas igualmente contrariado pela resposta que ele me deu... afinal, eu não sei se eu também conseguia ser grato por ser da forma que eu era. Quero dizer, além da minha atitude que era minha por natureza, eu também tinha os fardos de ser um feiticeiro e-... e um Vessel. E essa parte, em mim, eu não podia dizer que agora estava me fazendo sentir qualquer gratidão por existir. Foi aí que eu acabei me descuidando e desviando então o meu insatisfeito olhar para o outro lado, me distraindo, ao que eu só fui me dar conta de que Gale havia se aproximado ainda mais quando finalmente a sua mão se apoiou no meu rosto e me trouxe de volta para a sua direção, para bem perto daqueles seus olhos verdes impetuosos que me encaravam com a honestidade de uma pessoa que não pretendia mais se conter diante de mim.

— "Não faça isso."

Eu o alertei junto ao peso do latejar do meu coração, sentindo uma imensa dificuldade de deixar que ele fizesse qualquer coisa que agora pudesse também automaticamente me fazer lembrar de Damian. Forçando Gale a então, por um segundo, me encarar naquela posição assimilando o momento antes de finalmente recuar de volta para a parede, cruzando os seus braços e me questionando em um tom falsamente descontraído como se tentando passar por cima do que ele acabou de quase fazer.

— "... Bem, te conhecendo bem, imagino que você agora quer que eu explique o que foi aquilo que eu te fiz jogar naquele Skrea, não é mesmo?"
— "..."
— "Trióxido de enxofre e água, ácido sulfúrico. Não é o meu recurso favorito -especialmente porque é difícil de produzir às pressas- mas costumo sempre ter comigo um pedaço de pirita para usar na pior das emergências. Se bem que honestamente, como alquimista, eu achei que você iria entender na mesma hora em que me viu segurando ela."

"Á-ácido!?"
Eu o encarei bruscamente! Estremecendo ao ouvir aquilo e me sentindo enojado por um momento por saber que ele usou os meus poderes para atirar ácido nos olhos d-de outra pessoa! Se bem que por mais que eu pudesse me sentir dessa forma, eu não devia também de me sentir responsável pelo que aconteceu, deveria? Afinal, eu só estava seguindo as suas instruções. O que então me deu a coragem de desviar o assunto, em uma tentativa de apenas passar por cima desse delicado detalhe da mesma forma que Gale também sempre fazia quando diante de uma situação complicada.

— "E-Eu só estudei a alquimia com plantas, não sei muito sobre pedras -como você pelo visto."
— "Entendi... então aí vai a sua primeira aula, pirita é um metal e não uma 'pedra'."
— "Tsc, eu não estava dizendo que era!"
— "Hahaha."
— "E aquele cristal que você fez surgir no chão aliás? Aquilo foi vidro?"
— "Sim, eu não posso esquentar as coisas que nem um feiticeiro do fogo mas ainda sou capaz de forçar uma boa reação química da areia para ela cristalizar. Se bem que... fazer isso às pressas para segurar um Skrea no lugar acabou sendo bem mais exaustivo do que eu pensei que ia ser. Não pretendo repetir esse truque."

Me dizendo aquilo Gale então apenas riu descontraidamente voltando a encarar o céu acima de nós, totalmente ignorante ao fato de que ele me fizera atirar ácido nos olhos de um Skrea como se a sua consciência estivesse completamente limpa -se bem que eu nem me surpreendia, afinal Gale guardava um profundo rancor contra qualquer Skrea, fossem eles os culpados de fato ou não pela miséria na qual ele cresceu. E honestamente, acho que eu entendia o seu desejo de encontrar alguém para sempre estar culpando já que eu também não era muito diferente dele quando pensava em Sáshia -foi isso que afinal me atraiu até ele e a BlackHole há 4 anos atrás. Onde eu acabei me afastando só quando enfim percebi que, diferente dele porém, eu não estava disposto a sacrificar outras pessoas para realizar a minha vingança.
Só que, depois de tudo isso que aconteceu hoje... será que eu não podia voltar a dizer que mais uma vez os nossos interesses haviam voltado a se tornar os mesmos? Afinal, estávamos agora sendo caçados pela mesma Skrea, e-... realmente também pelas mesmas razões?

— "Gale?"
— "Um?"
— "Se você realmente era um Feiticeiro esse tempo todo, então... isso significa que Damian estava certo quando também te acusou de ser um Vessel?"
— "..."

De repente a expressão de Gale se fechou e ele pareceu perder qualquer desejo de continuar com o seu bom humor. Limpando finalmente com a sua mão o rastro de sangue que ainda estava sobre seu rosto e saindo daquela parede sem mais parecer querer ficar por ali testando o restante da sua sorte contra o que restou dos Skreas -e da minha inconveniente curiosidade.
No que ao me dar as suas costas ele então me ordenou indiferente à minha pergunta.

— "Vamos, temos que continuar andando. Aquele Skrea não vai mais conseguir nos seguir mas, ainda sobraram 8 que conseguem."
— "Espera, Gale! Só me responda mais isso!"
— "..."
— "Você é ou não o Vessel que Damian e Ebraín te acusaram de ser!?"
— "Quem sabe? Afinal aqueles dois são tão convincentes quando nos acusam de algo, não são?"
— "... Gale."

Ele me respondeu de uma forma tão vaga, tão distante, que eu não tive como simplesmente dizer que eu acreditava mais (ou menos) nele após sua resposta. Afinal ele até podia mesmo ter todas as setas apontando na sua direção, só que-... da mesma forma que eu não queria ainda carregar comigo a certeza -e a responsabilidade- de ser um Vessel, eu sentia que igualmente não deveria de forçar Gale a fazê-lo. E sendo assim eu então aceitei me contentar com a sua dúbia resposta, balançando solitáriamente minha cabeça em concordância antes de seguí-lo apressado para fora daquele beco.

Daquela maneira -com poucas palavras- nós continuamos a seguir juntos pelo caminho que Ebraín e Saret tinham nos deixado antes que o fim da luz do dia nos deixasse por completo. Os tons da noite já envolviam o nosso caminho, e por isso mesmo sabendo que nossos corpos não suportariam muito mais esforço nós tentamos manter um ritmo ágil pelo resto dos corredores, ao que, sendo indicado por Gale eu desenrolei o meu manto e comecei a arrastá-lo atrás de mim para apagar as nossas pegadas em uma tentativa de não cometermos o mesmo erro duas vezes até enfim sairmos daquela área muito remota.

Foi daquela forma que, sem muito tardar, -antes que as estrelas começassem a brilhar com muita força- conseguimos finalmente chegar até a passagem mais próxima para fora dali, dando ela para o meio de uma rua mais larga onde algumas pessoas ainda caminhavam rumo às suas moradias. Notando ao mesmo tempo o começo do acender das luzes da rua, e o escurecer completo da rota atrás de nós.
"Isso, conseguimos a tempo...!"
Eu pensei comigo, sabendo que a partir dali nenhum Skrea iria mais conseguir nos identificar com facilidade em meio às outras pessoas sem a ajuda da Oráculo. O que me fez respirar fundo, e enfim sentir um imenso mau agouro finalmente se afastando de nós dois -ao menos, enquanto essas ruas não começassem a igualmente esvaziar.

— "Yura! Vocês estão bem, que alívio."

Eu então notei de repente duas figuras saindo de um pequeno vão entre dois outros prédios do nosso lado e correndo na nossa direção! Ao que uma das pessoas me segurou em um forte abraço antes de enfim me soltar para eu poder perceber que era Ebraín! Estando Saret junto dele com uma expressão bem exausta, e incapaz de habilmente esconder a sua satisfação por igualmente nos rever em segurança. O que eu até queria poder apreciar um pouco mais, se a sua voz porém não cortasse o momento com a impaciência de seu próprio cansaço.

— "Pelo visto vocês conseguiram cuidar do problema. Podemos então sair daqui?"
— "Sim, sim. Saret está certa, não podemos parar ainda. Vamos aproveitar as pessoas e caminhar entre elas. Ainda resta algum chão para percorrermos."

Ebraín nos comandou ainda parecendo um pouco duvidoso na intenção de revelar para onde exatamente estávamos indo, o que por outro lado não me fez querer segui-lo menos, assim como Saret e Gale que também o fizeram sem reclamar. Nos dando todos porém ao luxo de agora andarmos mais calmamente, com Ebraín sempre afrente seguindo sem hesitar para dentro da região do Gargalo -mesmo que aos poucos, graças ao horário, nosso caminho gradualmente voltasse a se tornar um tanto solitário.
Passando todos nós daquela maneira então pelos altos prédios que contornavam os muros, os menores prédios espaçados que ficavam mais adiante, o cheiro de boa comida vindo das casas mais ao fundo da região, tudo sempre acompanhados pelo frio desolador de breves correntes de ar que passavam facilmente por entre as largas ruas de pedra e o estalar do som de nossos sapatos sobre elas que de noite se tornavam ainda mais distintos em meio ao silêncio noturno -tudo isso, acompanhado pelo medo constante de ainda estarmos sendo rastreados, o que fazia de tempos em tempos um de nós olhar para trás de forma suspeita.

Só que quando então passamos todos direto pelas ruas que davam até a Clínica e continuamos seguindo para leste, mais ainda para dentro do Gargalo, foi que eu deixei de entender qual exatamente era o nosso destino. Afinal, a única coisa que havia para além daquelas ruas antes de chegarmos nos limites do Aqueduto teria que ser-...
"O buraco do Gargalo?"
Eu me questionei um tanto descrente, antes de enfim me sentir preocupado quando Ebraín de fato escolheu parar diante da visão daquela vastidão em plena cidade onde as pessoas mais pobres adentravam no grande subterrâneo exposto cruamente à luz das estrelas. Quase como se ele estivesse pensando consigo "chegamos", o que fez Gale, Saret e eu nos entreolharmos muito confusos e pouco dispostos a acreditar.

— "E-Ebraín, esse... Esse é o lugar para onde você queria nos trazer?"
— "Eu sei Yura, eu sei que não parece uma boa ideia, mas é justamente por isso que essa é a melhor delas. Você e Gale ficarão bem se escondendo no buraco por essa noite. Mesmo que os Skreas possam dar um jeito de rastreá-los até aqui, eles jamais irão conseguir entrar. E as pessoas que vivem lá embaixo são as únicas que eu não duvidaria serem capazes de tratar a presença de Gale com indiferença -contanto que ele também se comporte."
— "Mas... mas como vão sequer nos deixar entrar? Os moradores do buraco não aceitam a entrada de gente de fora!"
— "Não exatamente... Eles vão aceitar contanto que não desçamos muito, e nós não iremos fazê-lo. Apenas fiquem todos juntos e não teremos problemas."

Dizendo aquilo Ebraín foi então caminhando lentamente na direção daquele buraco onde uma grade baixa mal colocada ao redor dele sequer poderia servir de outra coisa senão um aviso para estranhos não se aproximarem demais de seu território. Ao que, como se aquilo não fosse o suficiente, também haviam os olhares desconfiados dos moradores e dos guardas da entrada mais próxima que, por mais que não conseguissem intimidar Ebraín, à Gale, Saret e eu eles conseguiam, fazendo nós três começarmos a andar colados por igual desconfiança.
Eu nunca havia, em toda minha vida aqui dentro, entrado no buraco. E por não saber o que esperar, tudo que pude fazer foi então esconder ainda mais o meu rosto com o manto esperando que ninguém fosse encrencar com a nossa presença ali, ou tentar nos atirar de sua beirada pelo puro atrevimento de querermos entrar em seu território.

— "Auto, para onde vocês vão?"
— "Nós vamos para a taberna do homem morto, temos negócios com Geva."

Ebraín respondeu um dos guardas sentados em uma velha cadeira quebrada, que por sua vez havia levantado discretamente um lado de seu manto revelando, ante a nossa aproximação, o seu revolver. Após ouvir Ebraín porém ele então trocou olhares desconfiados com o seu companheiro de vigília até ambos balançarem as cabeças em concordância, voltando o guarda a esconder a sua arma em um gesto de que podíamos passar.

— "Não passem da zona azul e não criem problemas."
— "Não iremos."

Abaixando sua cabeça em agradecimento Ebraín então passou pelo portão subindo em uma precária plataforma de madeira, antes de seguir adiante. Ao que nós 3, preocupados, não estávamos em nada confortáveis para segui-lo tanto quanto também não estávamos para continuar pelas ruas à mercê dos Skreas -nem mesmo Gale de fato parecia estar gostando da ideia de entrar ali, muito provavelmente porque sua influência era pouco relevante naquele mundo que existia isolado do resto da cidade. Só que, no que Ebraín continuou seguindo sem esperar por nós, desaparecendo ele na escuridão do buraco... nós 3 então não vimos outra opção senão fazer o mesmo.

O buraco era o ápice da pobreza e da miséria na Citadela, as pessoas que viviam ali dentro eram a escória, pobres, criminosos, doentes, pessoas incapazes de conviver com o resto de nós e que por isso precisavam se esconder nas sombras de um gigante buraco antigo de extração de minérios e água dos Skreas. Aqueles que viviam ali não tinham luxos, não tinham regras que conhecíamos, e igualmente não tinham apreço por pessoas como eu que andavam por aí adornadas nos luxos das joias ou de roupas sempre limpas. Afinal, na escuridão, que utilidade teriam essas coisas, se a luz que chegava até eles não era suficiente para reluzir suas imagens mais do que os rasgos de tecido poderiam ser ao protegê-los do cortante frio da noite que por outro lado escoava tão facilmente buraco adentro?

Notando aquilo eu então decidi cobrir ainda mais o meu corpo com o meu manto, indicando Saret para fazer o mesmo enquanto descíamos por aqueles corredores de andaimes de madeira sobrepujados uns nos outros. Em comparação ao meu vestuário Saret usava muito menos adornos, mas isso não a tornava menos arrumada graças ao visível couro de gado de qualidade usado nas suas roupas. Caminhando todos nós em silêncio por afinados caminhos feitos de tábuas que rangiam ao pisarmos, sendo estes dispostos em camadas pouco firmes como se cada vez que aquele suspenso corredor de madeira velha apodrecesse, uma nova tábua fina era então colocada por cima como um remendo mal feito.
Além disso algumas piras grandes de fogo eram igualmente dispostas pelo já apertado caminho, às vezes sendo elas amparadas por compridas armações de metal, e outras por meras bacias pequenas no chão que sequer preveniam as fagulhas de pularem para fora, caindo perigosamente nos mesmos tapumes sobre os quais pisávamos.

E quanto mais descíamos por aquele caminho circular que contornava toda a circunferência do buraco, piores as coisas pareciam ficar. Ao que começávamos agora a conseguir olhar de baixo a fraca sustentação das vigas que aguentavam o peso das pessoas caminhando nos andares acima de nós, estando estas fincadas sem nenhuma garantia de segurança no paredão duro e calcificado daquele velho e imenso buraco.
Além destas também haviam várias sequências de muretas, sempre à nossa esquerda, feitas de pedaços de madeira que aparentemente nos protegiam de cair lá de cima por acidente. Não transmitindo essas também qualquer segurança, já que na tentativa de passar por nós, alguns dos moradores acabavam se apoiando contra elas me permitindo notar com isso o balançar de toda a contenção -como se ela pudesse ceder sem muito esforço. Da mesma forma que por outras vezes, pilares de madeira entravam no nosso caminho como se sustentando o andar de cima sobre um outro andar que igualmente não possuía qualquer capacidade de suportar o seu próprio peso, fazendo a minha garganta engolir a seco várias vezes quando sentia o chão sob meus pés balançar, e uma de minhas mãos tatear constantemente aquele paredão como se eu pudesse, no pior dos casos, tentar me segurar nele caso tudo desmoronasse ao nosso redor.

"Ugh, esse lugar... como essas pessoas conseguem viver nesse lugar?"
Eu me perguntava sem acreditar, mesmo que lá no fundo eu entendesse que, mesmo aquela estrutura sendo muito mais velha do que eu, ela continuava sempre resistindo fielmente ao peso de seus moradores e permitindo a eles continuarem abrindo buracos dentro das paredes de pedra para fazerem as suas casas -igual aos ratos nos becos que buscavam quaisquer frestas para se esconderem.

— "Tsc, esse lugar é bem pior do que eu imaginava."

Me sussurrou Gale então, quando eu precisei me afastar da parede para evitar uma pessoa dormindo no meio do caminho e com isso acabando ambos nos debruçando contra a mureta de madeira, o suficiente pelo menos para então conseguirmos olhar para baixo e reconhecer a profunda escuridão sob nós que era contornada e contornada por vários andares indicados apenas pelos pontos de luz das piras de fogo até onde nossos olhos podiam enxergar.

"Até onde esse lugar deve ir?"
Eu me questionei, até mesmo me perguntando se as pessoas que moravam lá embaixo conseguiam ainda se lembrar de como era a luz do dia, independente da noção de que muitos que moravam aqui ainda saiam de manhã para arrumar afazeres pela cidade antes de retornarem ao cair da noite -afinal, pobres ou não, essas pessoas tinham que fazer os suprimentos chegarem até o fundo desse buraco. Me admirando mesmo assim com a precariedade da vida dentro desse lugar, antes de Ebraín então finalmente parar em seu caminho nos fazendo todos virarmos para uma abertura na parede onde uma placa suspensa com um desgastado e irreconhecível desenho parecia balançar no ritmo de muitas vozes, e de uma agradável música suave surgindo de dentro daquele recinto.

— "É aqui que vocês passarão a noite. Na taberna do homem morto."


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