Black Desert escrita por Kallin


Capítulo 121
Inimizade necessária




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/711599/chapter/121

"6 horas já..."
Eu não conseguia parar de encarar impacientemente o relógio naquela parede, toda vez que eu ouvia os seus ponteiros se movendo dentro do silêncio incômodo em que a casa permaneceu após a última conversa que todos tivemos juntos –e eu até preferia que continuasse assim, porque eu não estava mais convencido de que alguma nova interação entre todos nós iria conseguir terminar sequer melhor do que a última.

Depois de tudo que aconteceu, eu vi cada um rumar para um lugar diferente da casa esperando poder ficar sozinho. Ebraín se recolheu para o seu laboratório, Gale decidiu ficar pela cozinha arrumando qualquer coisa para fazer antes que alguém pudesse sequer cogitar fazê-lo primeiro, Sal transitava de vez em quando entre os cômodos no fim do corredor, possivelmente porque ela não estava querendo ainda voltar a olhar eu ou Gale nos olhos, e Saret... bem, ela estava muito fraca para ir para um dos quartos, então ela apenas se manteve deitada naquele sofá absorvida em seus próprios pensamentos, sem ninguém além de Sal ousando perturbá-la de vez em quando.

Tomado então pela aflição de encarar aquela porta sentindo que o tempo estava passando mais lentamente do que a minha paciência poderia suportar, eu decidi sair dali e fui tomar um banho para tirar a sensação das cinzas ainda de cima de mim além de cuidar do resto dos meus machucados que –muito para a minha surpresa- eram bem poucos.
“Haah... com certeza eu iria estar pior se Damian não tivesse-...”
Eu refreei a minha mente. Pensar em Damian naquele momento sem saber como ele estava era quase como uma segunda tortura, junto a obrigação de ficar preso ali dentro com todas aquelas pessoas diferentes que agora se odiavam, tentando elas fingirem que continuava tudo bem.

Após isso eu decidi me arriscar a ir então para a cozinha, sabendo que Gale naquele momento era a pessoa menos complicada para eu escolher lidar. No que ele por sua vez mal interagiu comigo, apenas me oferecendo um pouco do que quer que ele estava comendo antes de voltar a me ignorar pelo resto do meu tempo ali.
“Nem Gale está tendo a coragem de voltar a falar alguma coisa... por essa eu não esperava.”
Desapontado, eu então voltei para a sala retornando ao meu lugar de sempre, ao lado do sofá de Saret onde meus olhos podiam continuar a pular entre a porta de entrada -de um lado da parede- e o relógio –do outro lado.

Àquela altura, porém, eu já estava ficando exausto dos meus próprios pensamentos, e não considerei a implicação de meu desespero quando distraidamente meus olhos foram para Saret... se fixando nela por mais tempo do que deveria.
Não sei quando, mas Sal devia de ter vindo aqui com alguns panos ajudá-la a se limpar e trocar os curativos –possivelmente quando eu saí do cômodo. Seu aspecto parecia o de uma boneca reclinada sobre o sofá, imóvel, encarando hipnoticamente a lareira apagada à sua frente sem dar atenção a mais nada, nem mesmo à minha presença, como se não houvesse absolutamente nada em sua mente agora senão a própria dificuldade de se convencer do motivo pelo qual as suas roupas ainda estavam chamuscadas e sujas de cinzas, e do por quê ela tinha que continuar ali imóvel, coberta de curativos nas mãos, pernas, pés...

— "O quê você quer?"

A voz de Saret de repente me assustou! Me fazendo disfarçar o meu olhar para o outro lado como se eu estivesse fazendo algo muito errado, enquanto ela lentamente tomara o seu tempo para me encarar de volta.

— "... N-nada. Só queria saber como você está..."
— "Você realmente está me perguntando isso?"
— "..."

Eu engoli a minha voz sem saber o que lhe responder. É claro que ela não estava bem, e é claro que aquela minha pergunta era idiota. Mas o que mais eu poderia dizer além de “estou tão entediado que estou considerando agora até mesmo puxar assunto com você”? Eu balancei a minha cabeça em vexame, tentando fingir que de fato que não estava considerando aquilo... mas antes que eu pudesse esquecer que sequer tentei falar com ela, Saret voltou a olhar para a lareira me perguntando em um tom mais brando.

— "Por que você se importaria?"
— "!... P-por quê? Bem... porque você não se machucou pouco, e..."
— "Não temos esse tipo de relação, você sabe disso."
— "Haah, certo. Eu só não tenho ideia melhor do que fazer agora senão ‘isso’."
— "Você diz conversar comigo?"
— "..."
— "..."
— "..."
— "... As minhas mãos ainda estão muito sensíveis, mas acho que o resto do meu corpo está melhorando. Ebraín me deu algo para ajudar com a dor.”

Quando Saret me respondeu aquilo eu fiquei um pouco confuso sobre como reagir. Era verdade, não tínhamos o tipo de relação em que eu poderia dizer “que bom, fico feliz”, ou “vai dar tudo certo, ou “posso te ajudar se precisar”. Não só porque aquilo passava muito longe da minha índole para com ela, como também porque eu não era capaz de ser tão desonesto assim... não, eu não ia mentir para Saret e fingir que eu estava ali para tranquiliza-la porque eu não estava. Mas acho que eu também não queria à essa altura abandoná-la ali sozinha depois de ouvi-la, justamente porque ela se mostrou ser a única pessoa disposta a ainda querer conversar comigo depois de tudo que havia acontecido.

— "... Obrigada, por ter perguntado...”
— "!..."
— "Mas não pense que eu vou te detestar menos só por isso.”
— "Que bom, porque eu também não estava planejando fazer isso."

Como se voltássemos a uma rotina um tanto comum nós então trocamos aquelas palavras com aspereza, nos encarando hostilmente de uma forma tão nostálgica que nenhum de nós dois conseguiu então disfarçar o pequeno sorriso em nossas bocas.
“Que estranho... de todas as pessoas, logo com ela eu ainda conseguir ter um pouco de normalidade.”
Eu pensei aquilo não planejando disfarçar mais o meu sorriso, no que Saret também não pareceu se ofender com ele... acho que ela também estava precisando de algo assim para sentir que ainda havia algum chão debaixo dos seus pés -assim como eu. Voltando ela então os seus olhos para a lareira à sua frente e me fazendo igualmente imitá-la.

Talvez fosse porque estava tudo muito recente, e não tínhamos como tirar ainda a lembrança do fogo de nossas cabeças, que, mesmo apagada aquela lareira parecia conseguir arder, queimar, estalar a madeira sobre ela e fazer sons desagradáveis que eu ainda tentava assimilar. Os sons dos gritos, do tumulto das pessoas ao nosso redor, dos escombros em chamas caindo, da chuva de pedras nos acertando, da fumaça e da poeira cobrindo nossa visão... Até mesmo eu acreditei que era capaz de esquecer memórias assim enquando fui crescendo e vivendo coisas piores mas, acho que é impossível você realmente superar essas coisas quando acaba perdendo alguém tão amado no meio de um inferno. Ou pior... quando você precisa escolher perder essa pessoa porque não há nada mais a ser feito.

— "Saret, eu sei o que aconteceu lá em cima.”
— "..."
— "Eu sei o que você precisou fazer com Minka, e por quê você não falou sobre isso até agora com ninguém."
— "Eu já imaginava. Você não para de me olhar dessa forma... estranha. Como se soubesse de algo mas não quisesse dizer."
— "... Eu não queria falar sobre isso perto dos outros. Acho que se for para eles saberem o que você fez, é você que tem que decidir contar e não eu."
— "..."
— "..."
— "Eles não precisam saber...”
— "E você vai então guardar isso com você para sempre?”
— "Se ela souber eu-... eu não sei o que Sal vai pensar de mim... e-eu mesma não... não sei o que pensar de mim. Do que eu fiz com... as minhas mãos. Com os meus poderes.”

Perdida em suas próprias palavras sem sequer parecer se importar que eu a estivesse ouvindo, Saret começou a encarar as suas mãos com um imenso arrependimento em seu olhar, e uma tristeza que sequer eu fui capaz de responder com apatia. Me sentando sobre o encosto do sofá contrário ao que ela estava enquanto encarando o chão, para lhe dar algum espaço até ela respirar fundo e voltar a repousar suas mãos.
Saret e eu podíamos ser antagônicos, mas não significava que eu gostaria de ver até mesmo ela sofrendo daquela maneira... o que me fez tomar alguns minutos de coragem, antes de então me inclinar na sua direção e dizer seriamente o que precisava ser dito.

— "Saret, eu posso não ter como saber o que Sal vai pensar sobre você, mas eu posso ao menos te dizer que eu não penso que você teve culpa –ou opção- no que fez com Minka.”
— "..."
— "E mesmo que você não queira saber o que eu penso, eu quero que você saiba que respeito a coragem que você precisou ter. Eu também perdi a minha mãe em um incêndio e sei que jamais iria ter conseguido fazer o mesmo por ela... por isso, eu não acredito que você mereça carregar sozinha esse fardo. E sinto que ao menos sobre isso Sal também concordaria.”
— "!..."
— "Mas como eu disse... eu não vou tomar a decisão, de contar à ela, por você.”
— "..."

Saret me olhou fixamente, incapaz de dizer qualquer coisa além de me encarar com uma estranha perplexidade. Talvez porque eu tivesse soado um tanto zeloso com ela –o que não era exatamente o caso-, ou talvez porque ela não estava mesmo esperando ter que pensar a respeito de tudo aquilo tão cedo assim.
Mas fosse o que fosse, eu pude notar que Saret, com o pouco tempo de ponderação que ela sequer teve sobre tudo isso, conseguiu ao menos me responder da forma mais honesta possível após um minuto de reflexão.

— "Talvez você... não esteja errado. Não me alegra dizer isso mas, eu-... eu não acho que dessa vez você esteja."
— "É apenas o que eu penso."
— “Eu não... ligo para o que você pensa, mas... obrigada por dessa vez ter me dito mesmo assim."

Com Saret voltando a ficar em silêncio e se recusando a me olhar, como se desagradada pela própria sinceridade em suas palavras, eu igualmente me voltei então para o outro lado da sala não esperando que igualmente eu fosse ouvir novas palavras dela. Suspirando de forma pesada, no que eu me dei conta de que nem mesmo falar com ela conseguia agora parecer ser pior do que voltar para o tédio dos meus próprios pensamentos.

— "... Sabe, você pode ser desagradável -quase sempre- mas, eu não vejo você realmente como uma má pessoa."
— "Heh, nem eu, você. Eu acho..."

Meus olhos então voltaram para Saret mais uma vez, um pouco agradecido por ela não me abandonar àquele perturbador silêncio no que eu finalmente me dei conta de algo que até então não havia!
“Até que... para uma primeira vez conversando de verdade, nós não estarmos nos dando tão mal assim!”

— "Saret... por quê afinal sempre nos demos tão mal?"

Eu enfim não consegui segurar minha própria curiosidade, ao que quanto mais eu pensava a respeito, mais eu pude notar que jamais tive -ou tentei ter- uma resposta a respeito disso. Eu apenas me lembrava de que desde o primeiro momento nós dois nunca nos toleramos mas, não era também como se eu visse Saret como a pior pessoa que eu já encontrei em minha vida. Era um desafio sempre que nossos gênios se chocavam –o que é até estranho não estar acontecendo agora-, claro, mas... de verdade eu nunca pensei que bem lá no fundo ela era uma má pessoa realmente.

Porém se eu me sentia assim a respeito de Saret, e ela aparentemente pensava o mesmo a meu respeito, então por quê mesmo que nós dois não nos dávamos? Por quais razões toda essa nossa inimizade realmente começou? Eu até tentei por conta própria me lembrar de alguma razão mas, a irrelevância de nosso passado era tão grande que nada me era muito recordável. Me fazendo insistir naquela inocente dúvida enquanto que Saret por sua vez voltou a me olhar seriamente sem saber o que me dizer de imediato –não como se ela realmente não parecesse ter uma resposta, mas como se ela não soubesse como a dizer sem arruinar aquele momento que –mesmo artificialmente- tentava nos afastar de pensamentos muito mais complicados de se lidar.

— "Nós... nós nunca nos demos bem porque... porque eu sempre soube.”
— "Soube o quê?"
— "Que você era um Vessel. E eu não tolero Vessels."
— "S-sério...?!"

Eu a respondi, não tão surpreso pela sua motivação quanto na real pela volta daquela desconfortável sensação onde de fato eu estava sendo o último a saber de algo tão pessoal como a minha identidade! E de ter com isso, a confirmação de que mais uma vez ser um Vessel esteve afetando as minhas relações esse tempo todo sem eu sequer perceber! Merda...
“Um Vessel... Então tudo esteve mesmo sempre girando em torno de eu ser um Vessel!? Esse tempo todo!?”

Frustrado, eu fechei as minhas mãos com força ignorando a dor do meu machucado e soquei com força o encosto do sofá! Esquecendo por um segundo até mesmo da presença de Saret ali na minha frente me olhando surpresa, no que meu corpo começou a tremer de raiva e-eu... eu não sabia o que fazer sobre isso. Eu não queria ser isso. Eu não queria acreditar nisso, mas-...! Mas assim como os meus poderes, o que eu poderia fazer a respeito? O que a minha vontade realmente significava, diante das coisas que eu nunca pude escolher ser?

— "Você realmente não sabia, não é?”

Eu pude ouvir Saret me perguntar aquilo pouco admirada, enquanto pelo canto dos meus olhos eu a percebi com certo esforço tentar sentar no sofá para me questionar na mesma altura de seus olhos.

— "Não...”
— "... É estranho para mim também ter descoberto só agora que você sempre foi ignorante a respeito da sua própria presença. Mas... acho que há uma primeira vez para tudo.”
— "Você... você disse que não tolera Vessels. Por quê?”
— "Porque...”
— "...”
— "Porque uma hora ou outra vocês todos acabam sendo iguais...”
— "Do que você está falando?”
— "Estou falando da minha fa-... N-não, isso não importa mais. Eles não importam mais... eu não tenho por quê ficar pensando mais no passado.”
— "Mas Saret, se é só por isso que você não gosta de mim então quer dizer que ainda importa sim para você!”
— "Não é só por eles que eu não gosto de você! Mas você me faz pensar neles, não importa o quanto eu tente fugir, tente esquecer o que eles faziam comigo! Todos vocês... todos vocês vão ser sempre iguais!!”
— "!!”
— "Por culpa de vocês eu não consigo ser livre! Ser quem eu sei que consigo ser! Ser relevante para a minha vida e para as pessoas que eu-...!”
— "Saret..."
— "..."

Agitada, Saret cortou as suas palavras rapidamente para que não acabasse dizendo ainda mais coisas que não quisesse, respirando de uma forma pesada e olhando para baixo como se incapaz de conseguir me encarar e ao mesmo tempo se acalmar. Mas... eu não precisava que ela continuasse a dizer o que havia guardado dentro de si para começar a entender o que a perturbava tanto, e com uma voz paciente eu tentei remediar sua fúria.

— "Eu acho que você já é relevante para muita gente. Para Sal, para Ebraín, para as meninas-..."
— "Não diga isso! Eu nunca vou conseguir ser mais importante para eles do que você!! E sabe por quê?! Porque você é um Vessel, você faz eles sentirem esse sentimento de amor, de apego, e você nem precisa tentar!! Você-... você sequer precisa tentar ser bom na feitiçaria, porque ser um Vessel já o torna perfeito até mesmo nisso!!"
— "Minha... feitiçaria? O que isso tem a ver com eu ser um Vessel?"
— "Você só pode estar brincando... E o que isso não tem a ver!? Por quê você acha que possui um poder no nível de Sal sem sequer ter precisado treinar!? Por quê você acha que é um homem vindo dos desertos capaz de usar a feitiçaria d’água, e não do fogo ou da terra!? Que outra explicação você acha que haveria para tudo isso, além de você ser um Vessel e ter um pedaço imenso da energia de uma deusa, capaz de influenciar o mundo inteiro, dentro de você!?”
— "!!"

Eu olhei para Saret um tanto espantado com a convicção em sua afirmação, ela sequer hesitou ao me acusar de cada pequena coisa que por toda minha vida Sal apenas se referira como sendo “um milagre”, e nada além disso porque ela também não queria que eu entendesse... ela me acostumou a acreditar que não havia nada mais para ser entendido a respeito dos meus poderes. Mas ouvir Saret dizer isso agora, era como enfim ver sentido nas coisas que eu menos achei que precisava entender. Que eu menos precisava... mas que eu agora...
“Como...? Eu posso até negar que sou um Vessel já que eu não sinto isso dentro de mim mas, como negar porém que eu não sou um Feiticeiro que não deveria de existir? Afinal eu sinto os meus poderes, eu sei a força que eles têm, e eu percebo o medo que eles me causam. E se eu sou capaz de ser esse Feiticeiro, é porque eu de fato também sou capaz de ser esse Vessel.”

Eu apoiei a minha mão contra o meu peito, relutante em dizer aquelas coisas em voz alta mas já sabendo que eu não tinha como escondê-las de Saret... que por outro lado, ao me ver aflito com suas palavras, conseguiu finalmente se forçar a ficar mais calma e tentar me dizer algo que –do seu ponto de vista talvez- pudesse me fazer sentir um pouco melhor.

— "Eu sempre achei que a sua arrogância vinha de você saber que era um Vessel. Agora eu sei que eu estava errada, você só era um burro mesmo... "
— "O quê?”
— "Eu sempre acreditei que você desprezava tudo que eu lutei para tentar ter porque você sabia que podia, porque sabia que era um Vessel. E porque você sabia que mesmo as desprezando, sempre iria tê-las de volta quando quisesse. A atenção de Sal, o respeito das meninas, qualquer utilidade dentro da Clínica-... tudo que eu me esforcei para manter você apenas, tinha! Sem qualquer esforço... e eu nunca pude perdoar você por isso... por ser melhor, e por não levar nada disso a sério.”
— "Então no fundo, você sempre-... Saret, você tem é ciúmes por eu ser um Vessel?"
— "N-não! Eu não tenho ciúmes, eu não quero ser como você! Eu tenho é o meu orgulho, e eu quero poder me valorizar por quem eu sou sem ter sempre algum Vessel por perto menosprezando as coisas pelas quais eu também dou valor! As coisas que me fazem ser quem eu sou!"
— "...”
— "Mas agora que eu entendi que você não tinha ideia disso eu... eu não sei quão duramente ainda devo te julgar. Talvez você realmente só tenha sido... um burro esse tempo todo, que não sabia o que estava fazendo. Não que eu esteja pronta para te perdoar também, mas eu reconheço que me precipitei.”
— "Isso seria para eu me sentir melhor?"
— "Não, eu só quero mesmo deixar as coisas claras entre nós. Eu não acho que você seja tão ruim assim, mas eu também não tenho qualquer esperança de que você não vá um dia se tornar uma pessoa  perversa, manipuladora. Afinal se todos os Vessels que eu conheci são assim, o que me garante que você não vai no futuro também ser igual, agora que você finalmente sabe a verdade?”
— "Saret, eu..."
— "Não ouse me prometer nada. Porque mesmo que eu-... mesmo que eu pudesse escolher acreditar em você, eu ainda não vou ser capaz de deixar de te odiar por ser um Vessel, isso-... mudar isso está além da minha capacidade."
— "...”

Ouvindo Saret me dizer aquelas palavras com um distanciamento em seu olhar, eu não pude me forçar a dar mais resposta alguma. É claro que eu não me via como uma pessoa arrogante, ou alguém que poderia manipular e desprezar os outros só porque era fácil! Mas... Saret parecia estar tão convencida dentro dela de que todos os Vessels eram assim, ou se transformavam nisso, que eu não vi como conseguir mais usar as minhas opiniões para competir contra a sua própria certeza. Eu não teria como. E igualmente, eu não teria como também remendar nossa relação já que era impossível dizer até onde chegava a extensão dessa profunda certeza que aparentemente o passado lhe deu.

Sendo assim eu honestamente não tive outra opção senão respirar fundo e me calar, voltando a me virar para o lado contrário na tentativa de apenas deixar aquelas palavras me descerem... Me dar bem com Saret não era um desejo meu, ou sequer uma esperança que me importava em ter, mas... naquele breve momento em que eu não tinha ninguém mais com quem conversar, eu queria poder me sentir melhor do que eu agora estava conseguindo me sentir. E menos confuso quanto a, se ter alguém além de mim odiando o fato de eu ser um Vessel era para ser algo bom, ou algo ruim à essa altura...

Porém antes que eu pudesse até mesmo ter o impulso de me levantar do encosto do sofá e sair de perto dela para o bem de todos, Saret voltou a falar comigo de forma arrependida –quase como se me odiar não fosse impeditivo para ainda continuarmos nos usando como escape de outros piores pensamentos.

— "Eu... acho que acabei falando mais do que o necessário.”
— "Não, está tudo bem... Eu te perguntei também.”
— "Mas eu não tinha a obrigação de te responder... e nem sei honestamente porque eu ainda não parei de falar com você."
— "... Talvez seja porque... você não tenha nada melhor para fazer do que continuar com essa conversa, que nem eu?"
— "... E talvez porque igualmente não gostamos um do outro... para nos importarmos em continuar conversando, mesmo isso sendo uma má ideia.”
— "Hehe, é. Deve ser isso..."

De uma maneira estranha eu e Saret então trocamos novamente um sorriso, como se nem a palavra mais dura entre nós dois fosse capaz de piorar aquele momento mais do que já estava ruim. Não que isso fosse me convencer de que um dia pudéssemos ser amigos ou algo um pouco melhor do que antagônicos, afinal os motivos para tanto nos detestarmos claramente sequer estavam em nosso alcance para poder serem reparados. Mas ao mesmo tempo, talvez... de um modo estranho, talvez fosse daquela forma torta -mantendo uma distância segura de desafeto- que nós também conseguíssemos nos entender melhor. Ou talvez, nos poupar de desentendimentos piores que inevitavelmente iriam surgir caso tentássemos nos aproximar. Fosse o que fosse, enquanto eu tentava concluir qualquer coisa sobre aquela nossa estranha relação, Saret decidiu me sussurrar uma última coisa que parecia ser importante para ela dizer.

— "Obrigada, aliás.”
— "Pelo quê?”
— "Por... hoje. Você... entrou naquele prédio para tentar nos ajudar, você tentou salvar ela, e... eu não tinha ainda te agradecido por ter tentado. E também pela comida naquele outro dia... ela ficou muito feliz, dizia que queria te convidar para comer conosco na-... na próxima vez. ”
— "Saret...”
— "Eu... me irrita ver as pessoas se comportando de forma idiota quando você está por perto. Mas não é tão difícil assim de te tolerar quando estamos sozinhos."
— "..."
— "Mesmo você sendo um Vessel...”
— "..."
— "..."
— "...Saret, como aliás você soube que eu era um Vessel? Foi Sal que te contou?"

Quando eu perguntei aquilo, Saret então fechou a sua expressão me olhando com muita seriedade. Balançando a sua cabeça em negação, antes de quase abrir a sua boca repensando bem no que iria me responder. Nisso, com um pouco de receio, ela então levou com cuidado a sua mão menos machucada para dentro de seu decote como se procurando por algo, e puxando por entre seus dedos com dificuldade um cordão bem ornado, no qual em sua ponta havia uma pedra bem polida e brilhando um tanto fraca com tons que iam desde o amarelo até o rosa.

Eu jamais havia visto uma pedra como aquelas, mas voltei meu olhar curioso -e muito confuso- para Saret. Sem entender o que aquilo significava e como aquelas cores pareciam continuamente dançar sob o toque de sua mão, quase como estivessem vivas! No que ela apenas me fitou em troca com a certeza de que as respostas para minhas dúvidas estavam todas bem ali, naquele mero acessório do qual meus olhos não conseguiam desgrudar nem por um segundo.

Mas antes que Saret pudesse sequer começar a abrir a sua boca para me explicar o que exatamente era aquilo, batidas fortes na porta nos interromperam fazendo ambos pularmos assustados do sofá!

— "BAM BAM BAM!!"

A porta foi esmurrada violentamente parecendo que quase iria ser derrubada por quem quer que estivesse do seu outro lado! O que me fez recuar um passo para trás com medo, notando Saret igualmente se encolher por trás do sofá encarando por cima do encosto a porta enquanto voltando a guardar com cuidado o cordão dentro de sua roupa! E no que nós dois nos olhamos em completa incerteza do que fazer, logo eu pude notar as figuras de Gale, Ebraín e Sal virem correndo de onde estavam só para ver o que era todo aquele barulho!

Nos entreolhando todos, e depois igualmente àquela porta, apreensivos e sem muita certeza se deveríamos de abri-la ou não. Isso... até que finalmente uma voz pareceu me chamar do outro lado dela.

— "Yura, sou eu! Abra a porta logo!!"


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Black Desert" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.