Black Desert escrita por Kallin


Capítulo 110
Amor




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Meus olhos se arregalaram por um instante sem que eu soubesse como responder àquilo! Engasgando com o meu próprio silêncio, no que subitamente tudo o que eu estivera me esforçando para tentar aceitar começou a se desmanchar diante daquela única coisa. Aquela única coisa que eu podia afirmar com afinco -não tinha nada a ver comigo! Esse sentimento, não tem nada a ver comigo!

— "N-não, você não tem como estar certo sobre isso!"
— "?"
— "De todos os sentimentos possíveis, ESSE é o que menos tem qualquer coisa a ver com a minha vida! Eu não tenho como estar-...!"
— "Carregando o sentimento do amor? E por qual razão você acha que eu então posso estar querendo enganá-lo, Yura?"

Ebraín me questionou levantando uma de suas sobrancelhas em um tom de seriedade. No que a sua mão alisou o seu bigode algumas vezes, antes dele firmar a sua postura contra o meu campo de visão e insistir ainda mais em uma silenciosa indagação que me fez -assustado- afundar naquele sofá, sem saber como o responder!

— "Eu entendo que você possa ter dificuldades em querer aceitar a real identidade daquilo que está dentro de você, especialmente porque isso significa que você acaba também influenciando os outros ao seu redor, mas-..."
— "Influenciando? Espera, do que você está falando?"
— "!? Você-...? Yura, não me diga que você não sabe sobre a presença dos Vessels?"
— "Presença?"
— "Haah, entendo. Você ainda não havia ouvido falar sobre isso... Yura, todos os Vessels possuem uma coisa chamada 'presença de Vessel'. E ela nada mais é do que a manifestação da essência do sentimento que existe dentro de você. Uma presença que emana sem controle de todos os Vessels afetando aqueles que estiverem ao seu redor."
— "Espera, se isso é verdade então como que eu mesmo nunca percebi!? Quero dizer, não era para isso estar me afetando também!?"
— "Não, na realidade é normal que você nunca a tenha percebido, porque os Vessels por outro lado são imunes à essa mesma presença. O corpo de vocês já nasce com uma espécie de imunidade -uma ignorância- à energia direta de Grivah, afinal senão o contato direto com essa intensa essência poderia muito facilmente desgastá-los até o ponto de seus corpos não suportarem mais."
— "Então... isso quer dizer que eu não posso ser afetado também pelos outros Vessels?"
— "Exatamente, e muito provavelmente é por isso que você continua sendo o único desta sala que não está conseguindo entender tão facilmente assim tudo que eu estou lhe contando -afinal você é o único aqui que não teria como ter tido qualquer experiência envolvendo outro Vessel."
— "!!"

Meus olhos confusos então se voltaram no mesmo momento para Gale e Damian, buscando neles qualquer tipo de opinião contrária àquela afirmação! Ao que eles por sua vez continuaram se mantendo quietos, da forma mais evasiva e séria possível até que enfim Gale me balançou sutilmente a sua cabeça em uma desconfortável confirmação que no mesmo instante me quebrou por dentro! Me quebrou, e me fez voltar assim minha atenção de uma forma conturbada para Ebraín! Ainda mais atônito agora, já que por consentimento da maioria eu não me via com qualquer credibilidade para conseguir questioná-lo! Cedendo com isso toda a liberdade para ele poder prosseguir com o assunto, sem novas interrupções.

— "Eu entendo como ouvir sobre isso tão de repente pode acabar lhe soando fantasioso Yura. Especialmente porque você nunca terá a experiência de sentir o que os outros sentem quando estão ao seu redor. Mas você entende por outro lado que estamos falando de uma essência muito poderosa, não? Poderosa o suficiente para se tornar onipresente dentro de cada um de nós, e ainda mais poderosa quando então o seu corpo tenta sem sucesso conter toda ela dentro dele."
— "E você está tentando me dizer o quê com isso, que por esse motivo essa energia acaba transbordando para fora de mim ou algo assim?"
— "Exatamente como um jarro transbordando sua água. Você acaba transbordando o sentimento do amor para todos nós que -em maioria- não fomos feitos para conseguir resistir à essa presença mais pura e direta -assim como os próprios Skreas que não foram feitos para igualmente resistir à presença dos nossos sentimentos."
— "..."

Meus olhos foram caindo lentamente até o chão no que Ebraín foi falando... Desacreditados com a realidade desse fardo que eu nunca percebi estar carregando. E que por isso eu não sabia como iria daqui em diante conseguir continuar a carregar.
Quero dizer, o que isso irá significar para mim então à partir de agora? E a minha relação com os outros? Como eu devo passar a interpretar agora cada situação!? Será que há algo que eu precise fazer sobre esse poder!? Ou-...
"Ou saber sobre isso não importa em nada, porque tudo está fora demais do meu controle...?"

Eu fechei então os meus olhos sem querer pensar que eu pudesse até agora ter estado manipulando tanta gente assim sem sequer imaginar! Forçando elas a agirem de uma forma que nunca quiseram agir. E me constrangendo por finalmente perceber aquilo! No que aos poucos uma sombra começou a passar por sobre toda a minha vida, me incapacitando de saber dizer até onde as atitudes das pessoas ao meu redor foram movidas de fato por escolhas delas, ou pela falta de escolha que a minha própria presença lhes impôs!
"Não, e-eu... Eu não posso. Eu não deveria! Eu não quero poder controlar as pessoas dessa maneira!!"

Meu corpo então se acuou desesperado naquele sofá! Intimidado, assustado pela ideia de que o mínimo de afeto que eu experienciei até hoje pudesse jamais ter sido de fato uma escolha daquelas próprias pessoas! Que o pouco do amor que eu na prática conheci, jamais fora verdadeiro! E que as escolhas que muitos tomaram a meu respeito, jamais partiram de fato delas... Não, esse pensamento é perigoso demais! Insuportável demais!
Com isso eu inclinei o meu corpo para frente em uma reação completamente impensada! Deixando que a frustração e o medo me dominassem, e as palavras que eu tanto tentei segurar dentro de mim enfim saíssem abstidas de tudo senão um único desejo! O desejo de me proteger -a qualquer custo- contra aqueles terríveis pensamentos!

— "Não... Não, você está errado sobre isso!! Se eu realmente estivesse influenciando todas as pessoas dessa maneira, então não teria como haver gente me odiando, tentando me manipular, querendo me matar!!"
— "Haah... Yura, eu entendo o que você está tentando fazer, mas você não vai conseguir. Porque os nossos sentimentos não são tão simples assim, e você sabe disso."
— "Talvez não seja, mas você mesmo disse que isso não se trata de um sentimento pessoal de cada um! E sim um sentimento único que eu transmito para todos!"
— "Um sentimento que você transmite, mas que ainda sim depende das outras pessoas para ser interpretado da forma delas."
— "Do que você está falando?"
— "Estou falando que sim, você transmite o sentimento do amor. Mas isso não significa que as pessoas responderão a isso todas da mesma forma. Cada uma decidirá como irá reagir, à quem irá direcionar, por quais caminhos este sentimento irá percorrer dentro delas, e quais outros sentimentos serão interligados a ele. Yura, um Vessel nada mais faz do que apenas ativar um gatilho, causar uma inclinação sentimental dentro de nós. Mas a forma como cada um irá daí em diante responder a isso, vai depender muito mais da natureza de cada pessoa do que da origem real do sentimento que a atingiu."
— "Tsc..."
— "Porém admito que seria muito mais fácil se as coisas ocorressem realmente dessa forma que você imaginou. Assim, eu não teria que então me preocupar com a sua segurança ao lhe deixar andando sozinho (ou acompanhado, como hoje) por essa cidade. Mas realmente não é assim que as coisas funcionam... ou pelo menos, não será sempre assim que elas irão funcionar para você."
— "Do que você está falando?"
— "De algo que você muito provavelmente já deva ter pensado também, assim como eu pensei quando você finalmente me confidenciou todo o seu passado uma vez. Naquele dia você usou muito a palavra 'sorte' para explicar como que por diversas vezes a sua vida fora salva, mas... acredito eu que 'sorte' não era a descrição correta."
— "!?"
— "Tente repensar por exemplo, em qual fora REALMENTE a razão para você ter conseguido sobreviver aos extermínios assim que nasceu."
— "A-a minha mãe! Foi porque a minha mãe mentiu para todos dizendo que eu era uma menina, e-...!"
— "Esta é a versão que ela lhe contou, mas você realmente consegue ser convencido só por isso? Você consegue de fato acreditar que uma Humana sozinha teria sido capaz de convencer vários Skreas de que ela tinha em seus braços uma menina, ao ponto deles escolherem não procurar confirmar as suas palavras?"
— "E você vai dizer então o quê? Que na verdade eles só me permitiram viver porque eles quiseram? Porque eu, nos braços da minha mãe, os influenciei a isso!? E que mesmo sendo Skreas, eles próprios não conseguiram perceber que estavam sendo controlados por um Vess-...!?"
— "Isso não é tão difícil de acontecer quanto você poderia imaginar Yura, afinal, eu já mencionei que não haviam Oráculos entre eles. E os Oráculos são os únicos tipos de Skrea capazes de identificar imediatamente entre um sentimento gerado por um Humano, e um gerado por um Vessel. Mas se você mesmo assim quiser duvidar, pergunte então para o seu convidado ali no canto se ele conseguiu perceber a sua real identidade desde a primeira vez que o viu? Pois eu pessoalmente já imagino qual irá ser a resposta."
— "..."

Minha boca então se fechou em um silêncio acusatório. Sequer eu precisava de fato fazer aquela pergunta, ou até mesmo olhar para Damian em busca de uma respota porque eu sabia bem até demais quando foi que ele passou a saber que eu era de fato um Vessel. Aquela briga entre nós dois ainda estava muito fresca nas minhas lembranças, assim como a certeza que eu tive da sua surpresa no momento em que ele tentou me contar sobre tudo aquilo.
E ao que eu me abstive então de respondê-lo, Ebraín apenas prosseguiu com as suas palavras como se igualmente menosprezando a idéia de precisar envolver Damian novamente naquele nosso diálogo.

— "Mas é claro que se você quiser, eu posso também citar a questão dos traficantes de escravos que não o abandonaram nos desertos para morrer assim que descobriram que você era na realidade um menino. Ou V., que o comprou deles sem pensar duas vezes, decidiu educá-lo com mais liberdade do que qualquer outra pessoa teria nas mãos dela, e não questionou quando enfim foi a hora de deixá-lo partir comigo para a Citadela. Todas estas inesperadas demonstrações de compaixão que essas pessoas tiveram com você Yura, todas as pequenas coisas que conduziram a sua vida até aqui, eu acredito que foram na realidade afetadas pelo sentimento que você está carregando consigo."
— "Tsc, mesmo que você diga isso, essas coisas todas podem ainda sim terem sido mera sort-..."
— "Mera sorte? E que tal o sentimento de amor que faz eu e Sal lhe tratarmos como um filho? Ou o sentimento que faz todas as meninas da Clínica facilmente lhe admirarem como se você fosse um irmão mais velho para elas? Yura, você é mesmo capaz de dizer que é apenas sorte o que lhe garante conseguir trabalhar naquela Cidade Baixa? Ou você vai também começar a dizer que não passou de sorte, o motivo para Sáshia ter decidido trocar a própria vida para poder protegê-lo durante a guerra!? Você tem certeza de que quer chamar de sorte a razão para ter cruzado tantas vezes o caminho da Black Hole, e mesmo assim estar aqui bem diante do líder deles ainda VIVO!? E você também vai dizer que é por sorte, o fato de ainda ter um Skrea parado no canto dessa sala dizendo querer protegê-lo mesmo após ter escutado toda essa nossa conversa!?"

Aquelas palavras me pisotearam contínuamente até quando por fim Ebraín me citou Damian! Fazendo os meus olhos se abrirem em uma consternação que eu não soube mais disfarçar diante de sua rigorosa expressão, e que roubou o meu desejo de fala desde o momento em que ele começou com as suas várias citações -citações essas que não pareciam querer tentar me convencer, mais do que queriam tentar me intimidar a parar de tentar fugir do óbvio!
Só que antes que eu pudesse dizer ou fazer qualquer coisa a respeito daquilo, quase como se ele não quisesse muito me dar essa oportunidade, Ebraín simplesmente cortou a tensão que se formou entre nós dois com um exauto suspiro, retornando calmamente com a sua fala.

— "De fato ser um Vessel o torna incapaz de ser afetado diretamente pela presença de Grivah, mas você continua sendo um Humano. Você continua sendo capaz de sentir por conta própria. E eu sei que você é capaz de reconhecer por isso os sentimentos de amor que as outras pessoas tem também por você -você apenas não o quer admitir."
— "..."
— "Mas Yura, você não está mais na fase de poder negar tudo isso só porque sente medo. Eu sei que você apenas está assustado em ver as coisas da forma que elas realmente são, porque isso significa aceitar também as consequências que existem por trás disso. Mas eu lhe digo uma coisa, você aceitar ou não não tornará a verdade menos real, ou a consequência menos brutal. Pelo contrário, eu não sou tolo de acreditar que você continua sem perceber que a consequência de você entender que é um Vessel não o fará perder ainda mais o controle da sua vida. Mas sim, o ajudará a retomar esse controle que você andou perdendo ultimamente. E isso é aquilo que você mais está querendo reconquistar agora, não estou certo?"
— "..."

Eu encarei Ebraín assolado, humilhado pela mistura de sua gentileza e brutalidade ao revelar sem qualquer pudor bem ali diante de Gale e Damian, o que claramente ele sabia esse tempo todo estar se passando dentro de mim. Me deixando sem nenhuma reação para respondê-lo, no que todas as velhas barreiras que eu até então estive tentando levantar naquela conversa para poder me proteger foram igualmente derrubadas de uma única vez por sua confiante afirmação que claramente não dependia da minha opinião para poder existir.

"Mas... ele não está errado... em nada. Ele não está errado em dizer tudo isso que ele disse, eu-... eu é que estou, em querer fingir que essa verdade e eu não estamos conectados, só porque eu estou com medo dela."
E com isso a minha cabeça se abaixou, sendo apoiada pelas minhas mãos no que eu usei meus dedos para esconder o meu rosto da vista dos outros. O meu rosto, a minha falta de coragem, ao saber que eles iriam conseguir ver a confirmação de toda aquela humilhante verdade sendo exposta em minha prolongada falta de reação.

Sim, a verdade de que eu estava assustado. De que eu não era tão forte assim o tempo todo, ou de que eu era incapaz de sempre enfrentar tudo de forma tão impessoal. A verdade que me humilhava, mas que ao mesmo tempo me incentivava a não ignorá-la mais porque eu precisava aprender a me proteger contra a Oráculo. Contra aquela Skrea que não iria me deixar em paz por mera sorte, já que a minha sorte em ser o Vessel que eu era não iria me salvar dessa vez do perigo. Pelo contrário, se eu não tivesse cuidado, seria isso que iria acabar me matando finalmente. Porque ela não ia se deixar afetar por esse amor que afetou tantos outros antes dela, o mesmo amor que impediu aqueles Skreas de me matarem quando eu nasci, que provavelmente me ajudou a lidar com alguns Skreas na Boate, e que igualmente também fez Damian-...!!

Subitamente os meus olhos então se abriram em realização e eu encarei Damian do outro lado daquela sala sem acreditar no que eu quase disse para mim mesmo! Mas que àquela altura, eu não tive como igualmente impedir de ser automaticamente compreendido pelo meu coração! Aquela dúvida que não precisava existir, que eu não queria permitir existir mas, que agora parecia ter rachado o meu peito com uma venenosa incerteza.
— "Espera, será que o que Damian também sente por mim, ele só sente porque-...?"
Eu não seria tolo em me surpreender agora com a ideia de que os sentimentos que ele sentia por mim não partiam dele mas, por outro lado, será que ele estava sequer sendo influenciado pelos meus próprios sentimentos? Ou será que ele só estava também sendo vítima da minha presença de Vessel? Isso-...

Minhas palavras engasgaram dentro de mim, e eu na mesma hora senti o desejo de me levantar e ir até ele para tentar tirar tudo aquilo a limpo! No que por outro lado um aperto no meu peito de arrependimento em o tentar fazer me acovardou, e meus olhos acabaram recuando novamente para o outro lado da sala. Sentindo um temor imenso em fazer aquilo, e acabar me desapontando ao descobrir qual era de fato a real identidade daquela nossa incomum e já questionável relação. Amargando em um silêncio, até que o próprio Ebraín decidiu que ele mesmo não estava tendo mais interesse em me observar naquele estado claramente abatido.

— "Bem, acho que isso tudo acabou sendo muita informação para você de uma só vez, não foi?... É melhor pararmos por aqui, e mais tarde retornarmos a esse assunto caso você queira. Agora tome um tempo para respirar e descansar a cabeça -você claramente está precisando."

Ebraín me falou aquilo quase que mediante à minha catatônica reação. Balançando sua cabeça como resposta ao meu contínuo silêncio, e pegando enfim aquela bandeja mais uma vez com o bule e as xícaras sujas, antes de se dirigir até a cozinha em uma tentativa de me deixar sozinho com os meus próprios problemas.
E eu honestamente sequer percebi o tempo passar entre suas ações para considerar pará-lo em uma tentativa de recobrar a minha consciência. Não, eu me segurei com vontade sobre aquela poltrona, e apenas fiquei encarando o vazio com o olhar mais abatido que eu era capaz de fazer para a lareira ao meu lado...
Eu era um Vessel. O Vessel do amor. Eu fui a causa para os extermínios nos Desertos Profundos. E eu fui assombrado por esse sentimento minha vida toda, sem nunca ter notado... até que essa Oráculo enfim cruzou o meu caminho. Será que a partir de agora será bem mais fácil para mim viver a minha vida sabendo disso -como ele afirmou? Ou será que eu vou em algum momento acabar me arrependendo com todas as minhas forças desse péssimo dia ter enfim acontecido?


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