Black Desert escrita por Kallin


Capítulo 106
(D) Razões




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/711599/chapter/106

Ao som da primeira batida na velha e incomum porta de cedro escuro, nenhuma resposta vinda de dentro fora ouvida. Dividindo Damian e Gale um incomodado olhar antes então de Yura também imitá-los por estar preocupado com o quão exposto estavam todos bem ali naquela rua durante o tempo que Ebraín estava levando para atendê-los.
"Por quê ele está demorando tanto?"
Se perguntava Yura, sem mesmo ele perceber -por culpa de sua ansiedade- que ainda não haviam se passado sequer 3 minutos desde a sua primeira batida. Se preparando então para bater por uma segunda vez naquela porta, quando na mesma hora o som das correntes do trinco finalmente sendo movidas fizeram a sua mão recuar junto também dos seus pés, que se posicionaram entre a entrada e a figura de Damian e Gale ali parados -igualmente apreensivos, mas sem muita outra saída senão continuarem ali por conta de suas próprias razões divergentes.

— "Já estou ind-...!!"

A porta abriu em um incômodo ruído, no que antes que a figura de Ebraín pudesse sair de dentro das sombras, seu corpo congelou em um defensivo reflexo! Apreensivo e muito confuso pela cena da amistosa imagem de Yura, junto de um ameaçador Skrea carregando uma Saret inconsciente e do famigerado líder da BlackHole, Gale!
Sim, Yura poderia não ter previsto aquela possibilidade mas Ebraín na mesma hora foi capaz de identificar Gale, piorando ainda mais a sua imediata reação a eles! Ao que após tantos anos de ação como um informante infiltrado durante a sua juventude, Ebraín acabou por acumular não só muito conhecimento como também uma vasta rede de contatos e favores dentro da Ala Oeste. Sendo que se tratando de Sal então, era aí que ele não iria mesmo ter se poupado em gastar todos aqueles recursos só para poder ter ganho qualquer tipo de conhecimento acerca de Gale -como sobre sua aparência, personalidade ou modus operandi— no intuito de favorecer Sal contra todos os possíveis movimentos da BlackHole.

Assim sendo, um clima então instantâneo de animosidade surgiu automaticamente de Ebraín. No que Damian o percebeu e quase por isso quis recuar em seus passos (acreditando que o problema era com ele), se não fosse porém pela sua firmeza em estar lutando contra a chance de demonstrar qualquer tipo de insegurança na frente de tantos humanos!
Não, ele estava tão perdido emocionalmente dentro da dualidade de estar entre o forte alcance do amor emanado pela presença de Yura e do ódio sentido graças à presença de Gale, que sua única resposta àquilo para mantê-lo são foi então a de tomar a postura mais Skreana possível. Sem demonstrar fraqueza ou hesitação, para não cometer erros que pudessem mais tarde serem condenáveis pelo seu lado mais intransigente -ao que Damian constantemente temia ceder ao seu lado mais humano, e à chance de dar razões para aqueles que já o condenavam pelo mero fato dele poder cometer erros.

Aquele momento era muito delicado para a sua mente, e seu corpo estava tão tenso que ele sequer notou o quanto a sua mão começou a segurar com ainda mais força o corpo de Saret. Provando cada vez mais para Damian que haviam razões para ele constantemente evitar qualquer convívio com os Humanos, se não tivesse sido porém o fato de que ele deu a sua palavra para Yura de que ficaria por perto até garantir a segurança deles dois. Palavra essa que Skrea algum era conhecido por quebrar, e que Damian então por consequência também não iria. Se prendendo ele por fim à uma indiferença tão superficial que nem mesmo Gale conseguiu se deixar convencer por ela.
Porém, o tempo de silêncio no qual aquelas 4 pessoas ficaram se encarando em completa tensão fora então logo cortada pelo próprio alquimista que enfim conseguiu se recuperar com demasiada facilidade da sua reação inicial. Analisando ele com mais cautela o aspecto físico maltratado daquelas pessoas à sua frente, assim como também a real urgência que parecia haver no estado em que Saret estava se encontrando!

— "Tsc, entrem, entrem! Antes que alguém veja vocês!"

Ebraín exclamou, cedendo aquele voto de confiança para a decisão de Yura que os trouxe até ali enquanto chamava-os rapidamente para dentro com a sua mão. No que o seu corpo se projetou para fora da porta até que o último adentrasse, espiando enquanto isso qualquer movimentação estranha naquela rua deserta atrás deles. Procurando ter a certeza de que eles não foram vistos ou seguidos até ali, antes de então fechar a pesada porta de madeira atrás deles.
Assim, em passos rápidos ele logo ultrapassou a frente de Damian e o direcionou às pressas até um dos maiores sofás daquela aconchegante sala para Saret ser deitada, sem muito mais o Skrea ter o que fazer, senão dar alguns passos para trás e deixar o velho humano enfim examinar o corpo dela.

— "O quê aconteceu com ela?!"
— "Estávamos todos em um incêndio Ebraín, e-..."
— "Esse tanto eu já posso adivinhar só por olhar o estado de vocês. O que eu quero saber é o quê deixou ela inconsciente!"

Ebraín cortou as palavras de Yura, no que quanto mais sua mão passava pelo corpo de Saret checando seu pulso e respiração, menos ele parecia receber com paciência a falta de informações diretas sobre os fatores envolvidos na atual condição dela. Decidindo então perguntar ele mais uma vez, no que agora porém fora Gale que o respondera com os dados que ele de fato queria ouvir.

— "Os batimentos parecem fracos. Há quanto tempo ela está desacordada?"
— "Não mais do que 30 minutos. Eu a fiz inalar um composto químico chamado flunitrazepam, mas acho que a dose acabou sendo forte."
— "Mas o quê-?!..."

Seus olhos então foram até Gale com uma criticidade que fez até mesmo o próprio Yura paralisar onde estava! Em um questionamento sobre ter sido uma boa ideia ou não ter deixado nas mãos de Gale a responsabilidade de conter Saret, no que o próprio Gale porém continuou mantendo uma firmeza em seu olhar que não parecia se abalar em qualquer remorso -quase como se ele porém tivesse total segurança sobre aquilo que fizera.
E assim Ebraín continuou firmemente encarando Gale em uma tentativa de assimilar a sua resposta, antes de então seus ânimos voltarem a se conter e ele resmungar em um tom mais centrado uma afirmação sem muito o intuito de esticar ainda mais aquele irrelevante debate.

— "Humph, foi uma inalação. Você não tem como saber se a dose que entrou no corpo dela foi forte ou não, então não faça presunções amadoras."
— "..."

Ebraín e Gale se entreolharam por uma segunda vez antes de então desviarem enfim os seus olhares. Claramente demonstrando um imenso desconforto por terem que interagir entre si, já que anos dividindo territórios dentro daquela cidade acabou gerando inevitavelmente um histórico de confrontosas rivalidades entre aqueles dois alquimistas.
Talvez nunca fosse aquilo chegar aos ouvidos de Yura mas, até mesmo Ebraín estivera esse tempo todo fazendo mais do que apenas monitorar a BlackHole -sem muitos saberem-, para a proteção de Sal e da Clínica. Tendo ele chegado ao ponto de usar os seus contatos para minar a entrega de reagentes para Gale, no que ele pressionou os comerciantes a cortarem contato com a BlackHole alegando que o grupo só possuía intenções de gerar o caos dentro daquela cidade com a qual eles comercializavam.
Sendo que simultaneamente, por outro lado, Gale não tivera como responder às maquinações de Ebraín já que ele sabia que fazer qualquer coisa contra aquele velho seria o mesmo que colocar a BlackHole inteira em uma posição altamente comprometedora contra o povo da Ala Oeste -que tanto respeitava e adorava o grande Alquimista da cidade. Obrigando-o então a engolir com irritação as atitudes daquele Homem, da mesma forma como agora ele novamente o estava fazendo.

Só que apenas para Gale, que era ainda jovem, servia de algo agir através de intempéries -ou ao menos era assim que Ebraín pensava. Decidindo ele próprio não fomentar sem necessidade a secreta rivalidade entre os dois bem ali, respirando então profundamente e apenas deixando passar o seu grande desejo de gastar algumas broncas sobre a forma com a qual Gale inconsequentemente lidara com Saret já que de nada aquilo lhe iria servir agora -não, definitivamente aquilo não iria ajudá-lo a tirá-la daquele estado.
Retornando então ele o seu foco para o abatido corpo dela, sem se ater com muito mais do que indiferença ao pesado clima que ainda bradava entre os dois. Diferente de Gale por outro lado, que continuou porém preso às suas próprias desavenças enquanto remoía aquelas palavras de Ebraín que o fizeram sentir ter a sua esperteza reduzida ao mero status de "inconsequência" e "inexperiência" -o que não era uma verdade, mas que ele não podia porém tentar explicar sem acabar expondo segredos importantes demais nesse processo.

— "Bem, não importa. Eu tenho um frasco ainda com flumazenil nos fundos que vai anular esses efeitos. Yura, pegue ele para mim junto com as soluções que estão separadas para Sal na estante. Acredito que produzi alguns estabilizantes e analgésicos e ainda não os enviei. Eles vão nos servir."
— "Certo!"
— "Eu não entendo tanto de medicina quanto a Sal, mas acredito que o mais importante agora será acordá-la e reduzir as dores. Não sei como o corpo dela possa estar lidando com um benzodiazepínico tão forte, então vou tentar algumas soluções estabilizantes até ele conseguir reagir sozinho contra esse composto que você usou. É o melhor que posso fazer no momento já que vocês me pegaram desprevenido."

As palavras altamente técnicas de Ebraín soaram como uma linguagem secreta que apenas ele e Gale foram capazes de compreender. Fomentando certamente aquele ambiente de tensão e acusações indiretas entre eles, no que o próprio Damian, cansado de presenciar o pesado clima entre aqueles dois humanos se virou então incomodamente de costas para observar os seus arredores com um interesse muito mais genuíno do que qualquer um deles poderia vir a acreditar.

Faziam muitos anos desde que ele não havia visto uma estrutura de casa como aquela -feita à base de pequenas pedras arredondadas e colunas de madeira tão escura. Com várias plantas e flores espalhadas pelas pilastras, móveis e paredes, enquanto que panos bordados decoravam as mesas e tapetes belamente ornados com fios de lã protegiam os móveis mais pesados e firmes de arranharem contra o piso de taco que claramente viera de alguma floresta muito longínqua de pinheiros.
Sim, como ele não iria se sentir quase que nostálgico em meio àquela ambientação que só podia ter vindo das regiões montanhosas próximas à maior das cidades Skreanas -conhecida por Fortaleza-, se fora justamente naquele tipo de ambiente que ele nasceu e viveu por toda a sua infância com a sua mãe?
Aqueles dias que ele guardava em sua mente com preciosidade, mas ao mesmo tempo com amargor. Sentimentos que não pertenciam ao seu peito, mas que ele -em sua mente de criança- absorveu com tanta honestidade dos Humanos com o qual conviveu. Tantos sentimentos de frustração e carinho que ele não sabia que eram proibidos a um Skrea sentir, já que afinal fora uma Humana -e não uma Skrea Matriarca- que o criou até os seus 8 anos. Tornando-o por isso -por consequência- bem mais íntimo da existência natural dos sentimentos do que um Skrea deveria de ser.

E desde que ele fora trazido para essa Citadela, nunca mais Damian então teve a oportunidade de rever aquele tipo de ambiente das montanhas, no que, mesmo sendo ele incapaz de naturalmente sentir nostalgia, sua mente por outro lado não teve como se poupar do déjà vu daquelas épocas bem mais aconchegantes. Exilando-o da sutil animosidade que pairava ali dentro, e fazendo-o se fechar em si mesmo enquanto segurava fortemente em sua mão o medalhão com a foto de sua mãe -independente do quanto que sua pele ainda machucada pudesse doer em contato com a fria e dura prata.
Por todos os dias de amor que sua mãe o entregou sem que ele fosse capaz de responder à altura, ele iria passar por cima de quaisquer dores para reafirmar em sua mente o quanto aquilo lhe significava tudo. Da mesma maneira como agora também ele se sentia cada vez mais disposto a passar por cima de suas próprias convicções, só para poder tentar -quem sabe, dessa vez- conseguir retribuir à sua maneira um amor que novamente o estava sendo dado -só que agora, por Yura.

Uma atitude que para qualquer Skrea poderia ser tratada como altamente condenável, se Damian por outro lado não fosse muito mais do que apenas um Skrea. E que em meio a tanta rigidez e frieza, ele não guardasse consigo o Humano desejo de querer receber mais do que só o desprezo que até então definira as bordas de sua própria estrada.
Sim, como Híbrido, Damian não herdou a nossa capacidade inata de criar sentimentos, mas ele acabou herdando a nossa carência inata de recebê-los. De uma forma que ser destratado não conseguia atingi-lo tanto quanto a certeza de não ser quisto por pessoa alguma. E por isso que ele agia da forma que agia. Por isso que ele tomava as decisões que tomava. Para tentar agradar o seu pai, para tentar proteger os seus irmãos, para tentar não afastar Yura... porque se ao menos 1 pessoa nesse mundo todo ainda pudesse querê-lo ao seu lado, então ele iria continuar a suportar todas as consequências de suas próprias decisões -mesmo até que isso desafiasse os seus próprios interesses. Essa era a sua real diretriz. A real razão para ele não ter matado Gale ainda, ou para ele ter se dado ao trabalho de salvar Saret. A real razão para ele ter desafiado a Oráculo, se arriscado em proteger Yura até ali e perdido tanto tempo com problemas que não o diziam respeito.
E estar naquela casa agora, em um ambiente tão familiar para as suas memórias, foi o que o fez reafirmar ainda mais sua posição sobre tudo aquilo.

"É só uma questão de tempo até a poeira abaixar aqui. Quando isso acontecer, eu o deixo nessa casa em segurança com a garota e levo aquele maldito comigo para acertarmos as nossas contas. Preciso tirá-lo logo do meu caminho para poder me concentrar melhor no problema com a Oráculo."
Damian então alisou pensativamente por uma segunda vez o símbolo cravado de seu pai no cordão -presente que sua mãe recebera dele há muitos anos antes até mesmo de seus irmãos nascerem-, buscando a mesma paciência que ela sempre tentou ensiná-lo a ter para que sua tempestiva personalidade não entrasse fora de hora em seu próprio caminho e o atrapalhasse ali dentro.
Buscando assim, dentro dele, a capacidade de continuar se mantendo calmo em meio a tantos outros humanos no que sua atenção foi então mais uma vez tomada pela imagem de Yura apressadamente retornando com diversos frascos de diferentes tamanhos e conteúdos em mãos.

— "Ótimo, me dê eles."

Ebraín tomou de Yura parte dos frascos e correu com eles todos até uma de suas mesas, onde ele cuidadosamente pegou um jarro contendo água fresca e o derramou dentro de dois copos. Virando com muito cuidado a porção de cada frasco em cada um dos recipientes, antes de então balançá-los para misturar a solução e os entregar novamente nas mãos de Yura.

— "Faça-a ingerir este aqui primeiro. O analgésico teremos que esperar ela acordar para poder dar, ou ele poderá fortalecer os efeitos do flunitrazepam causando uma parada cardíaca."

Diante das suas ordens Yura então balançou a sua cabeça e voltou correndo até o lado de Saret. Quase não esperando seu corpo terminar de ajoelhar no chão para que sua mão pudesse começar a gesticular sobre aquele copo, forçando então o líquido a se mover para fora dele e guiando com muita precisão todo o composto através da boca semiaberta dela para dentro de seu corpo. Sendo que cada um daqueles seus gestos era assistido com apreensão por Gale, mas muito fascínio por Damian -ao que até ali, ele jamais havia testemunhado Yura usando aquela sua intimidadora capacidade para muito mais senão imobilizá-lo.
Encaminhando assim o tratamento dela, ao que após aquilo, nada mais poderia restar a ser feito senão aguardarem pelo seu despertar.

Gale prontamente se colocou para ficar ali monitorando Saret (sentando-se no sofá ao seu lado), no que ele não parecia desejar muito alegar que tudo estava já resolvido só para poder sair por aquela porta e encarar seus assuntos finais com Damian. Estando Ebraín por outro lado completamente alheio às razões que mantinham Gale e um Skrea em sua sala, sem ele porém se ver capaz de buscar respostas em Yura já que o próprio correu para os fundos alegando ir pegar ataduras para Saret com o intuito de também fugir do óbvio -e agora iminente- confronto que ele se culpava por precisar dessa vez permitir acontecer.
E no que Ebraín também não iria buscar repostas em Gale ou em Damian, ele decidiu então por se recolher até a cozinha com a desculpa de ir fazer um chá, acreditando que um tempo sozinho o iria ajudar a pensar melhor naquela situação sobre a qual ele ainda sabia tão pouco, mas que gradualmente queria mais e mais entender.
E por fim, à Damian, só sobrou então se recostar na madeira do batente da porta de entrada. Cruzando os seus braços sem muita pressa para igualmente tirar Gale dali, já que o desconforto por estar precisando manter sua paciência acabou sendo aplacado pela certeza de que ele não estava ao menos sendo tão hostilizado assim pelas pessoas ali dentro -o que era bem raro àquela altura de sua vida. Fazendo-o então -por uma pura sensação de acolhimento- não se importar em talvez ceder mais uns minutos extras de vida ao próprio Gale.

Aguardando quietamente, até Yura enfim surgir mais uma vez dos fundos. Carregando consigo não só algumas bandagens e frascos, como também duas toalhas maiores sob um de seus braços. Atraindo a atenção do olhar de Damian, que procurava se distrair com qualquer outra coisa que não fosse a figura daquele homem sentado no sofá mais à sua frente.
Ao que por outro lado, Gale também mantivera uma expressão baixa para evitar igualmente qualquer tipo confronto indireto com Damian dentro da casa da última pessoa que ele poderia arriscar testar a paciência sem no processo comprometer (ainda mais) com o futuro a longo prazo de sua gangue. Porém, não mais Gale conseguiu forçar a sua ocultada presença dos olhos de Damian quando então Yura se debruçou por sobre um dos sofás e o tentou entregar -muito para a sua surpresa- algumas das bandagens e frascos que estavam em sua mão.

— "!?... Eu... Eu não tão bom assim com isso. É melhor que você mesmo faça isso nela."
— "Isso não é para ela, é para você."

Yura falou com uma seriedade em seu olhar tentando ocultar grande parte do pesar em seu peito por aquela ser a última vez que ele poderia ter a chance de fazer algo pelo seu amigo. No que Gale encarou-o um tanto surpreso, antes de então engolir a sua reação e respondê-lo com um sarcasmo fora de hora que convenceu Yura, mas não os sentidos de Damian que, por outro lado, tão facilmente percebeu a forte mágoa que Gale tentou disfarçar.

— "Hehe, não tem porque gastar essas coisas comigo. Não é como se eu fosse viver até amanhã mesmo."
— "Humph. Eu não perguntei. Fique com isso e tome se quiser, vai diminuir a dor no seu braço."

Um pouco irritado, Yura então o respondeu quase arremessando os frascos sobre o seu colo e dando as costas contrariado, no que Gale não resistiu e precisou rir com deleite pela óbvia e teimosa preocupação do jovem Feiticeiro para com ele... porém ele não o fez em qualquer sentido de escárnio ou minimização.
Não, de fato eram honestos os sentimentos de afeto que Gale -sempre- admitia possuir por Yura, e não mera implicância como seu tom de voz por outro lado sempre fazia parecer ser. Mas àquela altura, onde até então suas palavras e seu jeito torto jamais o permitiram transmitir qualquer sinceridade junto aos seus avanços, ou segurança junto aos momentos onde desapontar Yura teria que vir a ser necessário, foi que então o próprio Gale acabou desistindo da árdua tarefa de convencer Yura da verdade.
De fato seus sentimentos por aquele Feiticeiro D'água jamais iriam se tornar superficiais, nem mesmo após as incontáveis rejeições de Yura aos seus avanços, já que Gale era uma pessoa que vivia uma vida rodeada por seguidores, e não por amigos.

Dizer que seus homens, ou Tessa, eram seus amigos era imensamente errôneo. Aquelas pessoas estavam ao seu lado porque ele tinha carisma, inteligência, bons planos, ideias de revolução que ressoavam com extrema facilidade em seus corações. Mas amizade? A própria Tessa, Gale sabia não estar com ele por amizade e sim por ambição. Tendo -ao contrário disso- a sua relação com Yura se tornado cada vez mais significativa para ele no que ao longo do tempo que dividiram juntos, Gale enfim passou a notar que a fidelidade de Yura não era por causa alguma, mas sim pela sua companhia e amizade. E aquilo cativou-o muito mais do que Yura sequer poderia vir um dia a imaginar. Dando àquele homem que tanto achava estar acima da ilusão de um mundo de boa fé, uma inexplicável mágoa por saber que ele jamais iria conseguir voltar atrás no tempo e recomeçar (dessa vez corretamente) aquela relação que ele comprometeu com seus desvios de conduta cedo demais.

E no que após tantos anos se culpando por se ver como uma pessoa incapaz de cuidar bem daquela rara e boa relação, Gale por fim então acabou por encontrar em sua acidental -e muito recente- amizade com Saret uma chance nova para tentar acertar. Para acertar, e compensar a decepção que sentia consigo mesmo pelos erros que cometera com Yura.
Esforçando-se por isso até o último segundo que desse para que ninguém mais afrente pudesse convencer à ela de que ele não tentou lhe ser um verdadeiro amigo, já que Gale sabia que uma vida que começou desprovida de qualquer amor e terminou movida por pura vingança estaria fadada a ser enterrada por aquele deserto e esquecida muito rapidamente por todas as pessoas.
Uma vida que terminará vazia, se não for porém por ele tentar como em um último ato garantir que haverá ao menos 1 pessoa viva ainda que deseje se lembrar dele com algum carinho. E quem sabe, até mesmo se dar ao trabalho de pedir por Grivah pela sua alma independente dos diversos erros que ele cometeu nesse mundo durante os seus curtos 24 anos de vida.

Ao que por mais que aqueles sentimentos todos de Gale fossem muito inocentes e verdadeiros, sua já deturpada fachada por outro lado continuava impedindo à todos -senão Damian- a percepção de que por trás de suas estranhas atitudes de dedicação para com Saret, houvesse na realidade uma motivação muito mais pura do que se poderia esperar dele.
Tudo que Gale queria, desde que ele se percebeu encurralado naquele prédio pelos Skreas e pelo intenso fogo, fora não ter que abrir mão da sua vida sabendo que ele não iria no fim das contas ter significado mais do que "um problema" para grande parte das pessoas daquela cidade.
Franzindo ele então suas sobrancelhas diante daquela verdade -quando Yura finalmente o deu as costas-, enquanto encarando aquela irrelevante bandagem em suas mãos até que seus olhos por fim seu fechassem contaminados pela imensa angústia que ele não sabia demonstrar diante das outras pessoas. Em uma questão maior de incapacidade do que intenção, já que para não ser mais uma vez descartado como lixo por aquele mundo no qual cresceu, Gale precisou desenvolver um complexo subterfúgio como parte essencial de sua própria natureza.

E no que ele próprio não conseguia colocar nada disso para fora, assim também fora Damian, que engoliu com rispidez sua noção dos claros sentimentos de Gale não só para com a vida, como também para com Yura. De tal modo que um grunhido fora a única coisa capaz de escapar de sua boca antes então de seu rosto se virar par o lado em rejeição à possibilidade de suas razões serem tão similares assim às do homem que ele jamais iria pretender um dia perdoar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Black Desert" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.