ALMARA: Ameaça na Ilha de Xibalba escrita por Xarkz


Capítulo 2
CAPÍTULO 1 | Uma História Antiga


Notas iniciais do capítulo

O início da jornada onde a elfa Eril começa a reunir os membros do time, que irá adentrar no lugar mais terrível de toda Almara. O que a levaria a tomar essa decisão? Para tal, o time deve ser formado apenas com os mais poderosos do mundo e é isso que ela busca em sua empreitada.



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O mundo de Almara é regido por uma energia chamada Mahou. Esta energia está presente em todos os seres vivos e, em alguns casos, até em objetos. O Mahou é utilizado para diversos tipos de magia, desde curas à magias ofensivas, mas também pode ser utilizada para nutrir o corpo, fazendo que se torne mais forte, rápido e resistente.

Nossa história começa em uma cidade movimentada, apesar de rústica. Casas de madeira, na sua maioria de dois andares, algumas ruas de terra batida e outras pavimentadas com pedras mais para o centro, formam a cidade.

Próximo à uma praça alguns garotos, entre oito e dez anos, vestidos como guerreiros, treinam lutando uns contra os outros, um deles parece ter terminado seu treinamento, e então corre para longe dali, após se despedir dos demais.

O garoto chega até uma praça onde um senhor com um capuz está sentado em um banco, não se pode ver o seu rosto mas percebe-se logo que se trata de um idoso.

— Olá, mestre! —  saúda o garoto, dirigindo-se à figura de capuz.

— Olá! Como foi o treinamento hoje? Está se esforçando? — responde o idoso.

— Foi difícil, eu tento acompanhar os outros, mas acho que sou um dos piores. Acho que não tenho talento pra isso.

— Quando o oponente é mais forte e mais rápido, você precisa preencher a diferença entre suas habilidades com seu espírito.

— Você já disse isso, mas não é fácil. — retruca o garoto, abatido.

— Ninguém disse que seria.

— Eu sei. Mas não vim aqui falar do meu treino, vim porque você me disse que ia contar aquela história. Você vem dizendo isso à meses, mas nunca conta.

— Ha, ha, ha. Tudo bem, acho que temos bastante tempo hoje. Venha, eu te conto no caminho para casa. — diz enquanto levanta-se do banco da praça.

— Sua casa é do outro lado da cidade. A história é tão longa assim?

— Você quer ouvir a história ou não? — descontente com a petulância do garoto.

— Desculpa, pode contar.

— Essa história começa à cerca de oitenta anos atrás. — inicia a figura encapuzada. — Uma jovem elfa, aparentando não mais do que vinte e cinco anos humanos, não muito alta, com seus olhos de uma cor azul esverdeada, uma pele levemente escurecida e cabelos dourados, caminha pelas montanhas. Ela possui duas mechas de franja, que começam no centro da testa e percorrem as laterais de seu rosto, os cabelos longos terminam na altura dos joelhos e, próximo às pontas, é preso por um laço, de forma que não voem facilmente com o vento.

O clima é levemente frio e a paisagem muito bonita apesar de árida, com o solo rochoso e uma pequena estrada de pedras, por onde a garota caminha. Ao fundo, pela inclinação do Sol, pode-se dizer que passa das dezesseis horas.

Solitária, ela carrega apenas uma espécie de bolsa presa ao lado direto de sua cintura e um pequeno cetro de cerca de um metro e meio. A garota está usando um vestido branco e azul, que termina um pouco abaixo dos joelhos e botas que vão até metade da canela. Ela avista um monastério e então cessa sua caminhada para olhar seu mapa.

— Encontrei. — indaga a elfa, com uma expressão de contentamento no rosto.

Dentro do monastério, alguns monges estão se exercitando enquanto outros lutam entre si. Um monge com uma longa barba branca observa, tudo indica ser o mestre.

No momento em que a garota adentra no monastério, um dos monges é golpeado e lançado acidentalmente de encontro à elfa. O mestre se coloca em posição de luta e uma espécie de clone seu surge próximo à garota, o clone é transparente, criado apenas com o ar em movimento e, inicialmente, imita os movimentos do original. O clone salta e chuta o monge que iria se chocar contra a visitante, fazendo-o cair ao lado dela. O clone de vento, então, se desfaz no ar.

— Tenham mais cuidado, temos uma visita. — ordena o mestre, enquanto se aproxima da visitante. — O que deseja em nosso monastério, mocinha?

— Eu sou Eril e estou a procura de um monge chamado Shonin.

Ao ouvir o nome, todos os monges param o que estão fazendo e olham para Eril.

— Hum! Não sei qual seu objetivo, mas ele já não está mais neste monastério. — informa o mestre.

— E onde eu posso encontrá-lo?

— Shonin saiu para sua jornada e talvez nunca mais retorne. Ele não quer ser encontrado, então não posso ajudar você.

— Eu estou reunindo os mais poderosos guerreiros para uma missão. Um dos guerreiros da lista é o Shonin. Preciso que ele me acompanhe. — explica Eril.

— Como eu disse, não posso…

Antes que o mestre possa terminar sua frase, dois monges entram pela janela, engalfinhados, lutando um contra o outro. Eles caem no meio do salão e continuam a lutar.

Observando a cena, o mestre parece ter uma ideia.

— É certo que não existe ninguém como Shonin, mas posso lhe oferecer a ajuda dos monges mais fortes daqui. — informa o mestre, enquanto olha para os dois monges que entraram pela janela.

— Esses dois? — estranha Eril, com uma expressão de descontentamento.

Um dos monges tem o cabelo preto comprido, preso por um elástico, formando um rabo de cavalo, uma franja comprida de três mechas e olhos verdes. O outro possui olhos pretos, o cabelo castanho, curto e bagunçado. Ambos utilizando vestes típicas dos monges daquela região, uma calça marrom e robe cinza, com uma faixa preta na cintura, prendendo o robe ao corpo. Nos pés sapatilhas com meias que vão até metade da canela por cima da calça e com faixas amarradas em forma de xis por cima das meias.

— O que está com o cabelo preso é Kore, muito técnico e racional em batalha, o outro é Farkas, muito ágil e instintivo. São os mais fortes daqui. — informa o mestre.

— Posso ver uma demonstração?

— Acho que você iria acabar vendo de qualquer forma. KORE! FARKAS! — os monges se voltam para seu mestre, respondendo seu chamado. — Esta é Eril, veio à procura de um guerreiro poderoso para ajudá-la em uma missão. Como Shonin não está mais entre nós, indiquei vocês dois.

Os guerreiros se entreolham sem precisar dizer nada. Ambos acharam uma boa oportunidade, ainda mais com a companhia de uma bela elfa.

— Só irei levar um de vocês. — informou Eril. — Aquele que vencer essa luta que vocês já começaram.

Kore e Farkas não dizem nenhuma palavra, apenas se voltam um para o outro e tornam a se colocar em posição de luta.

Os monges trocam socos e chutes, Kore defende mais do que ataca, já Farkas, é mais agressivo.

A luta está parelha, até que Kore parece perder a concentração e é atingido, à partir daí a balança pende para Farkas, que golpeia Kore com socos e chutes por várias vezes, até que Kore cai de joelhos. Farkas avança para o golpe final.

— JÁ BASTA! — interrompe o mestre. — É o suficiente. Farkas é o vencedor.

Eril apenas observa, enquanto Farkas se aproxima dela.

— Será uma honra ajudar em sua missão, senhorita Eril. — diz Farkas, fazendo uma reverência.

— Eu sinto muito, mas não posso levar você na missão. — responde a garota.

— O QUE? Mas eu venci a luta! — reluta o monge, com indignação.

— Eu sei, mas tanto você quanto o outro não são fortes o suficiente.

— MAS EU POSSO ME TORNAR MAIS FORTE, PROMETO QUE AJUDAREI! — insiste, elevando seu tom de voz.

— Sinto muito, só estou recrutando os melhores entre os melhores e vocês estão bem longe disso.

Eril se volta para o mestre, que apenas observa a situação.

— Desculpe tomar seu tempo. Já estou indo.

Antes que ela possa cruzar a porta, Kore se levanta.

— Eu conheço uma pessoa forte como você precisa, tão forte quanto Shonin, talvez mais. — revela o monge que foi derrotado.

Kore ganha a atenção da garota, que se volta para ele.

— Ela mora do outro lado destas montanhas. Posso te levar lá, se quiser.

— Quem é esta pessoa? — interroga Eril, com um certo ar de desconfiança.

— Ela me ensinou a usar o Mahou e é com ela que irei treinar assim que concluir minha estada nesse monastério.

— Me leve até ela, por favor. Talvez essa viagem não tenha sido um total desperdício.

Kore olha para o mestre, que apenas acena com a cabeça, dando seu consentimento.

— Eu irei também. — interrompe Farkas. — Meu treinamento aqui está praticamente concluído, acho que está na hora de me aventurar e lapidar minhas habilidades.

— Você pode acompanhar, se quiser, mas não fará parte do grupo. Nem você, Kore. — informa a elfa, esnobando os dois monges.

Os três partem do monastério, após se despedirem de seus companheiros e de seu mestre.

Os monges levam apenas alguns poucos mantimentos em uma sacola que carregam no ombro, segurando por uma corda que serve tanto como alça quanto para fechar a sacola ao ser puxada. Enquanto caminham, eles trocam apresentações.

— E então, qual é exatamente essa missão? — pergunta Farkas, curioso.

— Envolve uma viagem à Xibalba. — responde à elfa.

— Xibalba? Está querendo morrer?

— É por isso que preciso dos mais fortes, vocês não durariam cinco minutos naquele lugar.

— Então você vai gostar de saber que a pessoa que vou lhe apresentar nasceu em XIbalba. — informa Kore, surpreendendo a elfa.

— Isso é sério?

— Completamente. Ela é a pessoa mais forte que eu conheço.

— Qual é a classe dela?

— Classe? Agora que você perguntou.... não sei dizer.

— Como assim? Você luta usando seu corpo como arma, um artista marcial, então você é um monge. Se você usa uma armadura e uma espada, um cavaleiro. Perito em arco e flecha,  um arqueiro. Não é tão difícil assim de saber.

— Que forma simplista de pensar. — discorda Farkas. — Não é exatamente assim que funciona.

— Foi só um exemplo.

— Mas é verdade. — prossegue Kore. — Não sei qual a classe dela. Já a sua, acho que posso deduzir que é um tipo de maga, certo? Elemental, cura... qual tipo?

— Maga elemental, perita no elemento fogo, mas também posso usar outros elementos. E vocês, quais elementos sabem usar?

Os monges se entreolham, um tanto sem jeito.

— O que? — indaga a elfa, indignada. — Vão dizer que não sabem usar nenhum elemento? Por acaso já liberaram o segundo selo de Mahou ou nem mesmo isso?

Novamente a dupla fica sem jeito.

— Como vocês eram os mais fortes do monastério?

— Somos de uma turma mais nova. — responde Farkas, rindo sem jeito e tentando uma desculpa. — Não tem nenhum monge com muita experiência atualmente, além do mestre.

— E vocês queriam vir para a missão? — desdenha decepcionada. — Acho que seu mestre estava era tentando se livrar de vocês dois.

Neste momento, saindo de trás de um rochedo, próximo ao grupo, surge uma criatura humanóide com de cerca de três metros de altura, desajeitada e de porte físico entroncado, portando uma enorme clava de madeira. Um Ogro.

A criatura brutal parte para cima do trio, sem um motivo aparente, levado apenas por seu instinto agressivo.

— Essa é a chance perfeita pra mostrar que somos fortes. — sussurra Farkas para seu amigo monge.

— Vamos dar uma surra nesse bicho. — concorda Kore, também sussurrando.

A dupla se coloca em posição de luta e partem para cima do monstro. Eles golpeiam diversas vezes com chutes e socos, enquanto o ogro tenta atingí-los com sua clava.

— Não está dando certo. — reclama Farkas. — Nossos golpes não são fortes o suficiente.

— Então vamos bater mais forte. — responde, de maneira simplista.

A dupla ataca novamente, desta vez o ogro parece sentir os golpes, porém, Kore é atingido pela clava e em seguida Farkas também. Ambos são lançados longe com o golpe.

— Droga. — pragueja Kore. — Pra usar mais força acabamos sendo mais lentos.

— Vou distrair ele e você o derruba.

Farkas avança para cima do ogro, desviando da clava e lançando diversos ataques rápidos. O ogro parece nem sentir os golpes, mas isso chama sua atenção. O ogro se vira para atacá-lo, enquanto isso, Kore golpeia o lado da perna do gigante, que perde o equilíbrio, então é derrubado por um forte soco de Farkas.

Enquanto o ogro está deitado, os monges saltam, Kore desfere um golpe com o calcanhar, de cima para baixo, mirando o lado da cabeça do monstro, enquanto Farkas ataca com um soco no lado do pescoço da criatura. A cabeça do monstros é atingida pelos fortes ataques e é pressionada contra o chão, abrindo um pequeno buraco no solo pelo impacto. O ogro é derrotado.

Apesar de ofegantes, a dupla sorri enquanto olham para Eril, que olha sem uma expressão definida para eles.

— O que achou? — questiona Farkas, convicto de ter feito um bom trabalho.

— Não somos tão fracos assim, certo? — continua Kore, buscando a aprovação da elfa.

Calmamente, Eril aponta para algo atrás deles, com seu cetro. Quando a dupla se vira, avistam um segundo ogro.

— Droga, outro? — reclama Kore.

— Vamos dar um jeito nele também.

Antes que pudessem fazer qualquer coisa, algo surge no céu, Kore e Farkas olham com um certo espanto. Parece uma espécie de vórtice de fogo, logo acima do ogro, à cerca de cinco metros do chão.

Do centro do vórtice é lançado uma bola de fogo quase do tamanho da criatura, que a atinge em cheio, explodindo no momento do contato. O ogro, totalmente carbonizado, cai no chão, derrotado.

Os monges ficam impressionados. Ao olhar para trás, avistam Eril, ainda apontando para a direção do vórtice com seu cetro.

— Você fez isso? — pergunta Kore, impressionado.

— Eu disse que sou uma maga elemental e perita no elemento fogo, não disse? — responde, irônica.

— Você é… muito forte. — completa Farkas.

— Não, não sou. Vocês é que são muito fracos. Vamos continuar, por favor.

Os dois monges ficam abatidos por perceberem suas limitações e continuam a viagem.

O grupo caminha por pouco mais de quarenta minutos, chegam ao topo da colina e então descem do lado oposto, sempre seguindo por uma trilha de pedras. A temperatura, aos poucos, vai subindo, amenizando o frio das montanhas e o ambiente rochoso dá lugar à um campo verdejante. Após mais alguns minutos de caminhada eles avistam uma pequena e solitária cabana feita de madeira, muito bem trabalhada em seus detalhes.

— Chegamos!

— Sua mestra mora no meio do nada? — questiona Farkas

— Ela tem alguns costumes estranhos, não consegue morar em cidades sem arranjar confusão, então preferiu morar aqui.

Kore se aproxima da entrada, se preparando para bater na porta mas, antes que o faça, a porta se abre e surge uma mulher alta, olhos amarelos brilhantes com pupilas em forma de fendas, um de seus caninos escapa para fora da boca, mesmo quando ela está fechada, cabelo cinza, suas orelhas se assemelham às dos elfos mas voltadas para baixo e um tanto caídas, pele escura, um corpo voluptuoso que contrasta com suas mãos, com apenas quatro dedos e estes mais grossos do que os dos humanos. Seus pés são desproporcionalmente grandes, com apenas três dedos e semelhante aos pés de coelhos. Ela veste um top e uma saia aberta do lado, que pouco cobrem seu corpo. Suas feições sugerem que ela teria por volta de trinta e cinco anos humanos. Sua expressão é de alegria e ela abraça Kore com força, erguendo-o do chão.

Enquanto o monge se contorce se podem ouvir seus ossos estalando.

— Você veio, finalmente! — exclama a mulher, ainda segurando seu pupilo no ar e apertando-o cada vez mais. — Você cresceu, está bonito como sempre.

— Minhas… costelas… — balbucia de forma quase incompreensível, por causa da dor.

Farkas e Eril ficam surpresos, sem reação. A mulher então percebe que seu pupilo trouxe companhia e o solta.

— Pessoal. Esta é Lisica, minha mestra. — apresenta, ainda dolorido.

— Kore, eu sei que sempre disse que gosto muito de você, não fique com ciúmes... — Diz Lisica, olhando fixamente para a dupla, que está parada à alguns poucos metros. — Mas essa pessoa ali… acho que estou apaixonada.

Farkas fica ruborizado, disfarçando o olhar por um instante, mas vence a timidez e olha de volta para Lisica.

— Eu sei que é repentino, mas eu sinto a mesma coisa. — diz o monge, em resposta ao comentário da mulher dos olhos de gato.

Neste momento, Lisica corre em sua direção, com os braços abertos e Farkas, apesar de receoso no início, faz o mesmo, partindo em sua direção, porém, ao chegar próximo, Lisica o golpeia com a parte de trás da mão, lançando o monge para longe e então abraça Eril, apertando-a com força, como fez com seu pupilo à pouco.

A elfa empurra a cabeça de Lisica com as mãos, tentando se soltar e olha para Kore, procurando por ajuda.

— Você é muito fofinha. — ainda esmagando a elfa com o abraço.

— Calma, daqui a pouco ela te solta. — informa Kore. — E não se sinta especial, ela faz isso com todo mundo.

Todo mundo o caramba. — pensa Farkas, enquanto se levanta, com seu orgulho mais ferido do que o seu corpo.

Apresentações feitas, o grupo se reúne ao redor de uma mesa, na sala de entrada da casa de Lisica. O interior da casa é bem simples, mas bonito, com algumas poucas decorações de muito bom gosto.

Sentados de um lado da mesa estão Kore e Lisica e do outro Farkas e Eril. No centro da mesa está um prato com alguns aperitivos, salgados espetados com palitos. Lisica sorri o tempo todo de uma forma quase infantil.

— Obrigado por nos receber, senhorita Lisica. — inicia a maga elemental. — O assunto que tenho à tratar é muito importante. Estou em uma missão para recrutar os melhores e mais poderosos guerreiros que puder encontrar, para formar um time. Eu estava à procura do monge Shonin, mas não pude encontrá-lo. Então Kore me indicou você. Disse que é realmente forte.

— Hum, sou bem forte sim. — responde Lisica, de forma bem simples. — Mais forte do que aquele monge bonitão. Mas para quê você precisa de um time tão forte?

— Minha intensão é invadir a maior de todas as crateras que, segundo Kore me disse, é onde você nasceu.

— Xibalba. — completa a mestra de Kore, que continua após respirar fundo e mudar para uma expressão um pouco mais séria. — Vai ter de procurar por outra pessoa, pois eu não irei.

— Por favor, reconsidere. É importante.

— Não, eu já pensei muito sobre o assunto. Não quero. — repete, irredutível.

— Mas eu acabei de contar o motivo da viagem, você nem parou para pensar direito. Pense no assunto mais um pouco e talvez…

— Não, não quero. — continua Lisica, com uma teimosia infantil.

— Senhorita Lisica, isso é realmente…

— LÁ, LÁ, LÁ, LÁ. — cantarola, enquanto coloca os dedos indicadores nos ouvidos. — NÃO ESTOU OUVINDO, LÁ, LÁ, LÁ..

Eril fica pasma em como a personalidade infantil daquela mulher contrasta com sua aparência madura e pensa se ela seria mesmo tão forte quanto se diz.

— Não tem jeito! — exclama Farkas. — Vai ter que me levar com você.

Com uma expressão de ira, Eril o fulmina com o olhar, enquanto o monge se encolhe de medo.

— Bom, está decidido. — interrompe Kore. — Já que você não vai ir com ela, vou aproveitar para começar meu treinamento com você.

— Hã? Porque eu te treinaria? — questiona a mulher de personalidade infantil.

— O QUE? Você mesmo disse isso à quatro anos atrás, lembra? Prometeu para meus pais.

— Não lembro de nada disso.

— ORA, MAS VOCÊ…

— Ok, ok. Não estou fazendo nada mesmo. Mas antes de te treinar, quero ver uma demonstração de como estão suas habilidades em uma luta.

— Certo. Farkas, se importa de me ajudar com isso?

— Quer tomar outra surra? Aí sim que ela não vai querer te treinar.

— Você teve sorte da última vez. Agora vamos lutar a sério.

— Ok, você quem pediu.

Os dois monges se levantam e dirigem-se para a rua, seguidos pelas duas garotas. A dupla se coloca à alguns metros da casa, cerca de cinco metros separam os dois monges, que se encaram enquanto entram em posição de luta.

O vento da montanha sopra de forma suave, fazendo voar a grama solta. Ao fundo, o Sol se prepara para o crepúsculo vespertino. Em contraste com a seriedade dos monges, Eril parece triste, pensando no total desperdício de sua vinda para aquelas montanhas.

— Preparado? — indaga Kore.

— Quando você quiser. — responde, pronto para atacar.

Os monges disparam um na direção do outro, trocando chutes e socos novamente. Desta vez, os golpes de ambos parecem mais fortes do que em sua luta no monastério.

Apesar da situação tensa, nenhum ataque atinge em cheio o adversário, que se desvia ou defende. Os monges ficam cada vez mais focados, ao perceberem que a luta é séria. Kore acaba recebendo um chute no ombro e em seguida um soco passa raspando no seu rosto, deixando-o marcado.

Não sabia que ele era tão forte. — pensa Kore. — Seus golpes são muito rápidos, mal consigo desviar, é difícil até mesmo de bloquear.

A balança começa a pender para Farkas novamente. Kore consegue atingir um soco em cheio no rosto de Farkas, que suporta sem demonstrar dor. Kore atinge novamente, desta vez um chute do lado direito, em cheio nas costelas, novamente parece não surtir efeito.

A expressão de Kore muda claramente. Seus golpes não estariam surtindo efeito?

Percebendo a confusão de Kore, seu adversário o golpeia com um forte soco no rosto e um segundo no corpo. O monge atingido, salta para trás, tentando escapar, mas é seguido pelo oponente, que o chuta de baixo para cima, atingindo o maxilar. Kore cai no chão, mas se levanta em seguida.

Farkas o golpeia com chutes e socos incessantemente, Kore é atingido por praticamente todos os golpes, suas pernas tremem e ele mal consegue ficar em pé. Após uma cotovelada no estômago, Kore se curva para frente, no que é atingido por um chute no rosto, sendo arremessado para trás e cai no chão, derrotado.

— Essa é a minha verdadeira força, Kore. — adverte Farkas, ainda sério. — Sinto muito que isso tenha acontecido na frente da sua mestra.

Eril olha para Lisica, que está séria, observando atentamente a luta.

Que olhar é esse? — pensa a maga. — O que será que essa raposa está pensando?

Farkas ajuda seu amigo derrotado à se levantar.

— Droga! — pragueja, inconsolado. — Você é habilidoso, não consigo acompanhar seus movimentos.

— Kore! — clama a mestra. — Seu treinamento vai começar dentro de quinze dias e, ao final desses quinze dias, vamos marcar uma luta entre vocês novamente. Então você vai derrotar seu amigo Farkas.

— Está brincando? — contesta Farkas. — Está dizendo que em quinze dias vai treinar ele pra me derrotar? Eu sei que você tem fama de ser uma ótima mestra, mas não acho que isso seja possível.

— Você é surdo? — replica Lisica, descontente. — Eu disse que o treinamento vai começar em quinze dias, só depois da luta de vocês.

— Como assim? — indaga Kore, confuso. — Não vai me treinar ainda mas eu vou ter que derrotar ele em quinze dias?

— Foi o que eu disse.

Eril começa a ficar interessada, apesar da desconfiança. Ou aquela mulher era maluca ou tinha algum truque na manga.

— Não que isso seja da minha conta. — interfere a elfa. — Mas porque acha que Kore pode vencer em quinze dias sem ter seu treinamento?

— Você estava olhando pra onde, durante a luta? — responde Lisica, com outra pergunta.

— Eu prestei atenção. Kore foi derrotado facilmente. Ele nem consegue enxergar os golpes do Farkas.

— Acho que não estávamos assistindo a mesma luta, então.

Eril fica ainda mais confusa com a resposta.

— Kore, certamente, vai vencer, dentro de quinze dias.

Apesar de confusa, a elfa decide não contestar a afirmação da mestra.

Algum tempo se passa, o Sol já está se pondo e Eril decide pernoitar na casa de Lisica, ao invés de ir embora imediatamente, apesar de seu objetivo ter sido frustrado.

Farkas decidiu partir para a cidade, próxima ao pé da montanha, começando sua caminhada à noite, mesmo com os avisos de Kore.

— Os perigos da montanha não me assustam. — zomba o monge. — Se eu não puder sobreviver à isso, não serei um homem de verdade.

— Você é quem sabe. — responde o amigo. — Mas à noite vai ficar difícil prever uma emboscada ou perceber um ataque de ogros.

— Que venham, só irá me tornar mais forte, depois que eu derrotá-los.

Farkas parte ao pôr do Sol.

A noite cai, o frio aumenta e, após uma boa refeição, todos vão dormir.

Kore dorme no chão da sala, sobre algumas cobertas, Eril no quarto de hóspedes e Lisica em seu próprio quarto.




Pela manhã, Eril é acordada por um feixe de luz do Sol, que entra pela janela, atingindo-lhe os olhos. A pequena elfa se levanta e segue para a sala, onde encontra Lisica, que também acabara de sair de seu quarto. As garotas olham para o chão da sala mas não avistam Kore. Eril caminha até a porta da frente e percebe uma movimentação do lado de fora.

Kore está treinando, chutando e socando o ar, simulando uma luta.

— Acordou cedo, garotinho. — saúda Lisica.

— Costume do monastério. — responde. — E não sou mais um garotinho, tenho dezesseis anos.

— Eu tenho cento e dezoito, então “sim”, você um garotinho.

— Cento e dezoito? — indaga Eril, espantada. — Quantos anos vivem os tulku?

— Mais do que os elfos, se é isso que quer saber. — responde, para então se voltar para Kore. — E então, “garotinho crescido”, que bom que está aquecido, pois tenho um teste pra você.

Kore cessa seu treinamento e se aproxima de sua mestra.

— Que tipo de teste seria?

— Eu não treino qualquer um, então você precisa passar em dois testes primeiro.

Lisica volta para dentro da casa, deixando o monge e a maga aguardando, curiosos.

— Achei que você iria embora, já que não conseguiu o que queria. — comenta Kore, tentando quebrar o gelo.

— Está me expulsando?

— Nã… não, claro que não.

— Eu ainda tenho esperança de convencer a Lisica à vir comigo. Se bem que ainda não sei o quão forte ela é.

— Boa sorte.

Nisso a garota Tulku retorna, trazendo consigo uma ampulheta de pouco mais de um metro, presa em seu braço por uma alça e duas cumbucas arredondadas, ambas com cerca de trinta centímetros de diâmetro. As cumbucas possuem uma tampa para fechá-las hermeticamente e uma alça para carregar. Lisica entrega as cumbucas vazias para Kore.

— Na cidade, ao pé da montanha, tem um mercado chamado “Macaco de Chapéu” que me fornece algumas plantas medicinais e suprimentos, quero que vá até lá e me traga essas duas cumbucas cheias. É só dizer que eu lhe mandei e entregar as cumbucas, ele vai saber do que se trata.

— Certo. — Confirma o monge, que pega as cumbucas e estende a mão, esperando pelo dinheiro.

As cumbucas pesam mais do que o normal, mas nada que Kore não possa lidar.

— O dinheiro está dentro das cumbucas.

— Ah, ok então. Acho que devo chegar lá no fim do dia. Amanhã à noite estarei de volta.

Neste momento, Lisica coloca a ampulheta no chão.

— A areia desta ampulheta demora oito horas para finalizar sua passagem. Este é o tempo que você tem para ir até lá e voltar.

— TA DE BRINCADEIRA? — contesta Kore. — É muito longe para ir correndo e correr montanha acima, na volta, é impossível. Sem falar nos  contratempos que posso encontrar no caminho.

Indiferente ao protesto do monge, Lisica vira a ampulheta, dando início à contagem do tempo.

Kore observa, espantado e incrédulo, por um instante.

— Mas que droga! — pragueja, enquanto se põe à descer montanha à baixo.

Lisica sorri vendo seu pupilo correr, enquanto se apóia com um dos pés em cima da ampulheta.

— Você falou sério? — pergunta Eril, desconfiada. — Isso é mesmo um teste?

— É claro, mas eu já sei que ele vai falhar.

— Então porque disse pra ele fazer isso?

— Estou preparando o garoto. Do jeito que ele está agora não vai aguentar meu treinamento. Mas não diga isso à ele.

— Hã… então tá. Não direi.

— A propósito, porque você ainda está aqui?

— Não perdi a esperança de recrutar você. Se bem que ainda não sei o quão forte você é.

— Quer testar minha força, baixinha? — pergunta Lisica, mudando ligeiramente sua expressão, para uma um pouco mais séria.

— É claro que sim. — responde, já se preparando para uma luta. — Me diga, qual exatamente é sua classe?

— Sou uma druída.

— Então acho que você terá problemas. — afirma, enquanto cria uma pequena bola de fogo em sua mão. — Minha especialidade é o elemento fogo, um elemento difícil de se enfrentar, quando você é um druída.

— Não se preocupe comigo, bonitinha. — replica Lisica, novamente sorrindo. — Suas chamas não irão me tocar.

Enquanto isso, o monge corre montanha à baixo, enquanto carrega as duas cumbucas, uma em cada mão. O monge utiliza da pequena estrada de pedras, que leva até  cidade, porém, logo percebe a sinuosidade do caminho. Se seguir pela pela estrada levará mais tempo, pensa ele, e então resolve seguir em linha reta, visando a cidade ao pé da montanha.

O solo disforme e pedregoso, cheio de grandes rochas em seu caminho, faz com que o monge precise se movimentar o tempo todo, ora desviando de rochas e árvores, ora saltando de pedra em pedra, e até mesmo tendo de realizar um grande salto para cruzar um pequeno riacho.

As horas passam e, mesmo com o físico treinado de Kore, seu fôlego começa a se esgotar.

Quantas horas se passaram? É a pergunta que passa o tempo todo na mente do garoto.

Após algum tempo, ele finalmente avista a cidade e aumenta a velocidade de sua marcha.

A pequena cidade, na verdade, não passa de um vilarejo, com seu solo de terra batida e umas poucas casas de madeira que, apesar da simplicidade do vilarejo, são muito bem trabalhadas em seus acabamentos. No centro do vilarejo há uma bonita fonte com a estátua de um homem com asas, portando uma lança e em posição de sentido, como se montasse vigília, cuidando do local.

A cidade parece se moldar ao redor da fonte e, logo na entrada, vindo da montanha, Kore localiza o que parece ser um mercado. Não há nome, apenas uma imagem talhada na madeira de um macaco com uma cicatriz abaixo do olho direito e usando um chapéu de palha, enquanto faz o sinal de positivo com o dedão em riste e um largo sorriso no rosto.

— Encontrei. — se alegra Kore, já sem fôlego mas contente de ter achado o local combinado tão rápido.

O monge se aproxima do balcão, e um senhor humano, aparentando uma idade bem avançada, prontamente se aproxima.

— Pois não?

Kore respira fundo, antes de tentar proferir qualquer palavra.

— Bom dia! Lisica me mandou aqui, para buscar alguns suprimentos, disse que o senhor saberia do que se trata.

— Ah, a senhorita Lisica. Ela não veio? — Diz o senhor, abrindo um grande sorriso e arregalando os olhos, enquanto olha para os lados, procurando algo.

— Não, apenas eu vim. — responde, enquanto entrega as cumbucas. — Ela disse que o dinheiro está dentro das cumbucas.

— Mas que pena, faz tempo que não a vejo. Seria um colírio para estes olhos velhos. Pode deixar comigo, sei bem os pedidos da senhorita Lisica, irei colher agora mesmo. Peço que aguarde quinze minutos, por favor.

Kore sinaliza com a cabeça, em afirmação, caminha até um banco, em frente ao estabelecimento e senta-se para descansar, tentando recuperar o fôlego respirando profundamente.

Enquanto descansa e observa o vilarejo, Kore pensa que poderia economizar esses quinze minutos se o senhor do mercado já estivesse com a encomenda pronta.

Algumas pessoas passam e o observam o monge, sentado no banco da praça. Obviamente, em um vilarejo tão pequeno, todos percebem que ele não é dali mas, apesar da curiosidade, as pessoas não parecem incomodadas com sua presença, mostrando ser um povo pacífico, composto de elfos, anões, halflings e, em sua maioria, humanos.

A recuperação do monge é rápida e, ao anunciar do mercador, Kore prontamente corre em direção à ele, pegando as cumbucas.

— Obrigado, agora tenho que ir.

— Diga à senhorita Lisica que mandei lembranças.

Kore já estava longe e mal pode ouvir o que o vendedor dizia.

A corrida montanha acima seria muito mais difícil do que a descida. Apesar das ervas e suprimentos não pesarem tanto, fazia diferença para uma corrida tão longa e o peso extra certamente iria dificultar um pouco.

O Sol já estava alto e, diferente do clima ameno do alto da montanha, o calor se tornava mais um empecilho em sua empreitada.

Já nos primeiros vinte minutos de subida, é emboscado por quatro goblins, pequenas criaturas humanóides monstruosas com pouco mais de um metro de altura. Um deles portando uma lança, dois deles com facas e um quarto utilizando uma espécie de rede, que arremessa contra o monge. Kore para bruscamente e então rola para o lado, desviando-se da rede, nisso, os dois goblins, armados com facas o atacam pelos lados. Kore simplesmente dispara em carga para frente, escapando e correndo na direção do goblin com a lança, que investe em sua direção.

Kore salta e, ainda no ar, chuta a lança do goblin para o lado e em seguida pisa em sua cabeça, passando por cima do pequeno ladrão.

Aterrisando um pouco à frente, próximo ao quarto goblin, o que havia lhe atirado a rede, este retira do cinto uma faca, mas antes que pudesse tentar qualquer investida, o monge chuta o pequenino no lado da cabeça, lançando-o em cima do goblin que portava a lança, derrubando ambos.

— Não tenho tempo à perder com vocês.

Os pequeninos, atordoados, desistem do ataque, ao perceberem a força do adversário. Kore continua correndo montanha acima, em linha reta.

A vista do topo da montanha é desmotivadora, pois sequer é possível avistar a linha de chegada.




As horas passam, a inclinação do Sol indica que o dia está na parte da tarde. Lisica está sentada em cima da ampulheta, quando finalmente Kore chega, exausto, se sentando no chão próximo à mestra, assim que termina o percurso. O suor escorre pelo rosto do monge, ofegante, ele larga as cumbucas no chão enquanto olha para Lisica e então para a ampulheta, vazia.

— A areia esvaiu à quase uma hora. — informa a mestra. — Você falhou.

— Droga! — exclama o monge, socando o chão.

— Não se preocupe, amanhã você poderá tentar novamente.

— Eu podia ter corrido mais, tentei poupar meu fôlego. Se tivesse tentado, teria conseguido.

— Você está exausto, mesmo tendo poupado fôlego.

— Eu sei, mas não estou no meu limite. Amanhã, com certeza, vou conseguir.

— Se você diz. — confirma, enquanto se levanta da ampulheta e a coloca nas costas, carregando pela alça. — Agora vá tomar um banho, está fedendo.

Kore sinaliza com a cabeça e entra na casa. Ao passar pela sala, ele vê Eril dormindo no sofá e então percebe que ela está com algumas escoriações e ferimentos, além de estar com o braço esquerdo enfaixado.

— O que aconteceu com ela?

— Isso? Bem, ela quis me testar e eu acabei exagerando um pouquinho. Mas não é nada grave.

Kore olha para Lisica e percebe que ela não possui sequer um arranhão, tudo indica que a luta foi de um lado só. O monge da de ombros e vai para o banho.

Enquanto isso, Lisica se dirige para a cozinha carregando o conteúdo das cumbucas e começa a cozinhar algo.

Kore sai do banho, já usando um calção e uma camiseta sem mangas, que parecem bem velhas, usadas apenas para dormir. Enquanto está secando os cabelos com uma toalha, ele ouve a voz da elfa, que acabara de acordar.

— Ela é um monstro!

O monge olha para a garota, mas continua secando os cabelos.

— Eu sei. Eu lhe disse que ela é forte.

— Eu já esperava que fosse, visto que ela nasceu em Xibalba, mas não imaginei que a diferença entre nós fosse tamanha. Ela acabou me ferindo mesmo tentando se conter. Preciso que ela venha comigo.

— Perde seu tempo, aquela raposa velha só faz o que quer e se ela disse que não quer ir, nada vai fazer ela mudar de ideia.

— De qualquer forma, preciso tentar. É muito importante.

Nisso, Lisica surge, com uma grande panela de comida e a coloca sobre à mesa da sala.

— Hora de comer. Principalmente você, Kore. Sua única refeição hoje foi o café da manhã, então coma bem, vai precisar recuperar suas forças para amanhã.

— Ah, ótimo, estou morrendo de fome.

O trio faz sua refeição, enquanto conversam. Lisica conta histórias de quando Kore era criança e mostra algumas fotos constrangedoras, como uma dele bebê correndo pelado. Lisica conta que, naquela situação, ele mesmo tirou a própria fralda e correu nu pela rua, enquanto seus pais tentavam pegá-lo.

As garotas riem, enquanto Kore continua comendo de cabeça baixa, envergonhado e bravo por estar sendo exposto daquela maneira.

Após comerem, Lisica leva o monge e a maga para conhecerem os arredores. Atrás da casa, subindo um pouco mais a montanha, há um campo florido e um lago, cuja água brota de rochas em uma das laterais, formando um mini cachoeira, suficiente apenas para ser usada como chuveiro. Mais à frente, um mirante, onde se pode ter uma belíssima vista de outras cidades vizinhas, florestas e uma segunda montanha, mais à frente. Lisica aponta para a outra montanha, ganhando a atenção dos seus hóspedes.

— Naquela montanha vive Baruc, um dos quatro imortais. Talvez isso seja relevante para você, Eril.

— Baruc? Sim, ele também está na minha lista. Depois de convencer você, ele será o próximo.

— Ha, ha, ha, ha, ha… Ainda acha que vai me convencer?

— Não me dou por vencida tão facilmente. Alias, você sequer quis saber o motivo de eu querer invadir Xibalba.

— O fato é que não me interessa o motivo, não vou voltar pra lá. E não é por me trazer más lembranças, é simplesmente porque não tenho vontade de sair daqui, seja para onde for.

— Não tem nada que você queira muito, que eu possa lhe oferecer?

— Eu tenho tudo o que eu preciso aqui. Não estou à venda.

— Pelo menos ouça o que eu tenho à dizer.

Novamente Lisica tapa os ouvidos e ignora a elfa, deixando-a irritada. Eril admirava a força da druída a sua frente, mas ao mesmo tempo a odiava por suas atitudes infantis. Deveria haver uma forma de convencê-la.

Nisso, Kore avista uma movimentação ao longe no horizonte, à muitos dias de caminhada.

— O que é aquilo?

— Parecem ser soldados do Império Mundial. — responde Eril, prontamente. — Posso ver seus emblemas.

— Espero que não seja problema.

— Incrível! A visão dos elfos sempre me espanta. — elogia Lisica. — Mal vejo os soldados daqui e você consegue ver até seus emblemas.

O trio fita o horizonte por algum tempo e enquanto Eril ficava pensativa, Lisica quebra o silêncio.

— Se quer tanto alguém forte, posso lhe indicar uma pessoa. Mas tem uma condição.

Prontamente ganha a atenção de Eril, que se volta para Lisica, prestando atenção.

— Quem seria?

— Se eu disser agora você vai ir embora sem cumprir com a condição. A condição é que você me ajude com o teste do Kore, então, após os quinze dias, eu lhe apresento a pessoa.

— É justo. O que precisa que eu faça?

Lisica pega Eril, segurando em sua roupa na parte das costas e a suspende no ar, com apenas uma mão. Enquanto Eril se debate um pouco, Lisica observa por um instante, como se tentasse calcular algo.

— Hum. Você é bem levinha. Vai servir.

— Hã? Vou servir pra que? Me coloca no chão!

— Vai entender amanhã. — informa Lisica, enquanto a coloca de volta no chão.

O Sol se põe, dando lugar à lua, e novamente o grupo adormece.




Ao raiar do dia o trio já está de pé, do lado de fora da casa. Kore se aquece, se preparando para o teste. A ampulheta já está no chão e as cumbucas são entregues ao monge.

— Desta vez eu vou conseguir, com certeza. — afirma, confiante.

— Mas, desta vez, você vai levar um peso extra.

— Peso extra? O que seria?

Lisica coloca as mãos nos ombros de Eril, suspendendo-a e então a coloca em sua frente. Deixando tanto a elfa quanto o humano sem entenderem nada.

— Você vai fazer o mesmo percurso, desta vez com ela em suas costas. — informa Lisica, sorridente.

— O QUÊ? Tá brincando? Como vou correr tudo isso com ela nas costas? É muito peso.

— Hei! — protesta a maga.

— Não quis dizer que você está acima do peso. — se explica o monge. — Só que é muito pra mim, são quatro horas de corrida montanha a baixo, mais quatro horas montanha acima e ainda vou estar carregando as cumbucas, que acabam pesando depois de tantas horas de corrida.

— Só o que eu ouvi foi “mi mi mi”. — caçoa Lisica, de forma debochada. — Quer se tornar um guerreiro poderoso mas reclama disso.

— Entendi. Então, na verdade, isso é o treinamento.

— ISSO NÃO É O TREINAMENTO! — grita Lisica, enquanto da um cascudo na cabeça de seu aluno.

— Ok, ok, entendi… ai!

— De qualquer forma, você reclama demais. O mundo não vai ser bonzinho, Kore, se quiser vencer vai ter que parar de reclamar e enfrentar os problemas. Parece impossível? Prove para os outros o contrário. Prove para você mesmo o contrário. Se você tentar e falhar, tente de novo, quantas vezes forem preciso. Agora, fique parado reclamando e nada vai se resolver, estamos entendidos?

Kore olha atento para Lisica e percebe que acabou de ter sua primeira aula. Nem todo treino se resume a fortalecer os músculos ou aprender novas técnicas, às vezes é preciso algo que nos faça expandir nossos horizontes, e a mente do jovem Kore acabara de se abrir.

O monge, agora com uma expressão séria, se volta para o trajeto que irá percorrer, já com as cumbucas em mãos. Ele percebe que estas são novas cumbucas, estas parecem ter o dobro do peso das anteriores, mas mesmo assim ele não reclama e olha para Eril, que ainda está hesitante.

— Ótimo, mas ninguém me perguntou o que eu quero. — reclama a elfa.

— Você concordou ontem, quando aceitou minha condição.

— Você nem me disse qual era. Mas tudo bem, trato é trato.

Eril sobe nas costas de Kore e, no momento em que Lisica vira a ampulheta, Kore dispara montanha a baixo.

Durante o percurso, Eril apenas observa o cenário por um tempo, até que decide quebrar o gelo.

— E então. Você chega lá, entregas as cumbucas, o mercador enche e você volta, certo? É só isso?

— Só isso, é bem simples.

— Alguma coisa em que eu possa ajudar?

— Você consegue perder dez quilos em quatro horas?

Mesmo não podendo ver, Kore sente o olhar assassino de Eril.

— Você não devia irritar alguém que está com os braços em volta do seu pescoço.

— Brincadeira, foi só pra descontrair. O que você pode fazer é me avisar de algum perigo à frente, com seus olhos de elfa.

— Certo, mas acho que posso ajudar um pouco mais. Fique à direita daquela rocha. — orienta, enquanto aponta para uma pedra gigante no caminho. — Se ir por ali terá menos obstáculos para saltar, no caminho.

Kore segue a instrução e realiza o trajeto por algumas horas, até que chega no vilarejo. Eril desce de suas costas e, enquanto Kore entrega as cumbucas.

A garota vai até a fonte do centro do vilarejo e pega um pouco de água, usando uma folha grande de uma árvore próxima, improvisando um pote e enquanto o monge senta-se no banco da praça, Eril leva a água para ele.

— Beba um pouco, precisa se hidratar.

O monge está exausto e precisa respirar fundo antes de conseguir beber.

— Quanto tempo até ele devolver as cumbucas? — questiona Eril.

— Quinze minutos. Estava pensando, não vou conseguir de novo, então acho que vou pedir para ele já deixar preparado os suprimentos para amanhã. São quinze minutos que terei de vantagem.

— Não acho uma boa ideia. — contesta a elfa. — Esse é o tempo que você precisa para se recuperar. Se voltar correndo sem parar, seu rendimento vai ser menor.

Kore apenas abaixa a cabeça.

O dono do mercado Macaco de Chapéu entrega as cumbucas cheias. Kore pega uma em cada mão, Eril torna a subir em suas costas e ele dispara montanha acima.

Por vários momentos Kore fraqueja e sua velocidade diminui drasticamente. As horas passam e obviamente, o tempo da ampulheta já expirou, visto que o pôr do Sol se aproxima.

Nos últimos metros, Kore já não tem forças para correr e o percorre caminhando. Ao chegar do lado da ampulheta, o monge cai no chão, exaurido.

Eril salta de suas costas, pouco antes da queda. Nisso, Lisica sai de dentro da casa.

— Finalmente chegaram. Tome logo um banho e coma alguma coisa, ou vai perder horas preciosas de sono.

Algum tempo depois, Kore está à mesa, com as duas garotas, que conversam animadamente, enquanto Kore apenas come, ainda cansado.

No meio da conversa, ele arrisca uma pergunta.

— Eril. Já que a raposa velha não quer ouvir sua história, me conte o motivo de você querer invadir Xibalba.

A conversa, até então animada, acaba ficando séria. Eril pensa por um instante antes de responder, e então se volta para Kore.

— Eu preciso invadir Xibalba para descobrir seus segredos, qualquer coisa que possa nos ajudar à evitar a catástrofe iminente. Pra isso preciso dos mais fortes que puder conseguir.

— De que catástrofe estamos falando? — pergunta Kore, tentando entender o assunto.

— É difícil dizer isso mas… — Eril faz uma pausa, respira fundo e aperta os punhos. — Talvez toda a vida neste mundo esteja à beira da extinção.


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Notas finais do capítulo

Comentários e críticas construtivas serão bem vindos