Entre dois mundos escrita por Vicky18


Capítulo 71
O sacrifício




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O som do alarme de emergência ecoou em todos pontos do laboratório.As luzes enrubesceram e os gritos vieram logo em seguida.

Cebola ainda não estava nem perto da Ala médica quando viu uma onda de funcionários saírem de todas as portas e corredores possíveis.Se aglomerando como formigas, tentando escapar de alguém que destruira o seu formigueiro.

A expressão de pânico na face daquelas pessoas se igualavam a pinturas expressionistas de tão aterrorizantes.Cebola poderia sentir o medo delas só pelo olhar.

Ele não sabia ao certo o que estava acontecendo,mas em poucos segundos tentando não ser pisoteado pela multidão,descobriu que a polícia tinha encontrado o local.

Mesmo que quisesse comemorar,sabia que teria que continuar nadando contra a corrente até chegar á sua amiga.Mas infelizmente, não conseguiu chegar nem perto da rampa que o levaria para a próxima ala quando o pegaram desprevenido.

—ME SOLTEM!-Cebola se debatia enquanto tentava procurar ou reconhecer o rosto daquele ou daqueles que estavam o levando para longe dali.

Eram tantas faces, tantos gritos, que o garoto se sentia dentro de um pesadelo(se é que já não estava vivendo um antes).Ele poderia sentir os gritos se atropelarem em sua garganta,o pavor tomando conta de cada centímetro do seu corpo,o medo correndo em sua veias.

Ele podia ver quem eram todas aquelas pessoas a sua frente, mas não conseguira reconhecer quem estava lhe puxando a força para cada vez mais longe da ala médica.

Seus olhos procuravam desesperadamente uma saída, mas seu corpo não conseguiu mais lutar contra a força daqueles que o carregavam.

—ONDE ELA ESTÁ?!-Aquele foi o último grito que Cebola conseguiu dar antes que sua voz falhasse.As palavras eram rapidamente substituídas por soluços e grunhidos.Não existia dor maior naquele momento do que deixar Magali pra trás.

—Você vai encontrá-la lá fora.-Até a voz do desconhecido que lhe respondeu,soava ofegante.Todos ali dentro eram cobaias.Todos estavam lutando para não serem pegos e outros para sobreviverem.

Mesmo com a resposta,Cebola continuou lutando desesperadamente para escapar.Ele só queria encontrar sua amiga e falar a polícia sobre tudo o que tinha acontecido com eles e com a sua família.(da qual ele não teve notícias depois que soube que foram capturados)

Aquela era sua última chance,mas seu desespero e seu desgaste físico não permitiam que ele corresse pra longe ou se liberta-se daquelas amarras.Ele não fazia ideia para onde estava sendo levado ou por quem,mas se permitiria levar pra qualquer lugar desde que Magali estivesse lá.

Quando finalmente saíram para fora do laboratório,Cebola se assustou ao ver o céu estrelado daquela madrugada.Ele tinha passado tanto tempo no subsolo que não sabia mais como eram as estrelas e muito menos o sol.Estava tão acostumado com os corredores sem vida e as cores pálidas daquele lugar,que ver o brilho de um pequeno ponto no céu ou até a o verde escuro das copas das árvores lhe fazia se dividir entre fascínio e espanto.

Ao longe ele poderia escutar o som das sirenes, e um pouco mais perto a orquestra do farfalhar das copas das árvores se mexendo violentamente por conta da hélice do helicóptero que o esperava para embarcar .Poderia sentir as seus pés se arrastando em uma trilha estreita e longínqua de terra,deixando um rastro por onde passava.

Também conseguia escutar os passos apressados daqueles desconhecidos que o carregavam.Era possível farejar o medo deles naquele instante,suas respirações falhas e ofegantes,mostrando visível cansaço.

Poucos passos depois o farfalhar das folhas não era mais o suficiente para esconder o som das sirenes e as copas das árvores não eram tão densas para esconder aquelas luzes vermelha e azul piscando incessantemente.Cebola não conseguia mais sentir suas pernas quando aquelas luzes iluminaram a sua face.

Seu corpo caiu pra trás quando os homens lhe soltaram para fugir da polícia.Mas, por mais que corressem, era tarde demais pra eles.

A partir daí tudo aconteceu muito rápido, tão rápido que Cebola não conseguiu processar tudo aquilo.Em um momento estava tentando se levantar do chão,no outro estava sendo atendido por um policial e quando piscou os olhos mais uma vez,estava na frente da beira da estrada. Aquela mesma estrada da qual pegou junto ao Doutor para procurar o paradeiro de sua amiga.

Pobre homem,se ao menos tivesse sobrevivido para contar a história,certamente,aquela trilha enlameada não teria sido seu fim.

A estrada estava repleta de viaturas e policiais que vinham de todas as partes para entrar dentro daquele laboratório clandestino.O caminhão da encomenda estava com a carga cheia...de policiais.Praticamente,um cavalo de troia moderno.

—Garoto!Você está bem?-O delegado correu na direção de Cebola assim que o avistou saindo daquela floresta.

—A-a minha amiga….

—Nós já estamos verificando,não se preocupe.-O agente conduziu o garoto até uma das viaturas.-Aqui dentro vai ficar seguro.

—Senhor,nós não encontramos a garota no helicóptero,apenas os dois fugitivos e o piloto.- Um policial veio as pressas informar o seu superior sobre as "novidades".

—Como assim não encontraram?

—Nenhum rastro,senhor.

—Procurem pelos arredores,ela não deve ter ido pra muito longe...EI!O QUE PENSA QUE ESTÁ FAZENDO,GAROTO?!-Cebola ainda não tinha entrado na viatura quando ouviu aquela conversa.Ele sabia que não adiantaria procurar a sua amiga pelos arredores,já que ela não tinha ido a lugar algum.

Agora que todos os funcionários estavam saindo esvaziando o laboratório,seria muito mais fácil entrar lá e pegar sua amiga de volta.Cebola estava agindo pelo impulso,mesmo que não fosse o recomendado voltar para aquele lugar que tanto lutou pra fugir.Ele sabia que poderia estar correndo riscos,mas também sabia que não poderia deixá-la.

…..Enquanto isso-Na realidade paralela….

—De quem a gente tá fugindo afinal?-Magali tentava afivelar o cinto de segurança enquanto Cebola pisava com tudo no acelerador.

—Do doutor Licurgo…-Cebola não tirava os olhos do espelho retrovisor,temendo que aquele mesmo homem que estava os observando de dentro daquela festa,agora estivesse colado na traseira do seu carro.

—Do Licurgo?Mas porquê?Ele não iria nos ajudar?!

—Não mais.

—Cê, do que está falando?!O que ele quer com a gente?!

—É uma longa história.

—Eu tenho todo tempo do mundo pra escu…

—MAS EU NÃO TENHO.- Magali congelou no mesmo instante,se assustando com aquela reação,mas pronta para responder no mesmo nível.-Me- me desculpa… eu estou tentando…

—Tentando o quê?Me tratar como um brutamontes?!

—Me desculpe,eu não deveria ter gritado com você...Eu só..merda.-Magali não conseguia interpretar aquela montanha russa de emoções que estava presenciando naquele momento.A poucos segundos atrás, Cebola ficou exaltado de repente e logo depois sua voz ficou baixa enquanto lágrimas se acumulavam em seus olhos.-...Eu só estou tentando encontrar um lugar...um lugar melhor pra isso.

—Cebola,você tá me assustando…

—Calma,vai dar tudo certo.

—Eu achei que a gente tinha tempo.

—Eu também achei.-Cebola estacionou na frente de um posto de gasolina desativado,deixando Magali cada vez mais convencida de que as coisas talvez não iriam dar tão certo quanto o seu amigo afirmava.- Vamos, aqui é perfeito.

— Ele não estava atrás da gente?

— Eu achei que ele fosse nos seguir...Mas não deixa de ser uma possibilidade.-Os dois desceram do carro e entraram naquele local nada convidativo.

O barulho quebradiço dos cascos de vidro abaixo dos sapatos de Magali era o único som que ali ecoava.
O silêncio perturbador do lugar parecia ensurdecer a garota,que ainda assustada,segurava a mão do rapaz,desejando que tudo aquilo acabasse.

—Agora você pode me explicar direito o que tá acontecendo?!- Magali soltou a mão do rapaz assim que entraram dentro de uma das salas abandonadas do estabelecimento.

Cebola só respondeu positivamente com um movimento afirmativo com a cabeça e em seguida retirou do seu paletó uma espécie de adaga. Depositando-a nas mãos, já trêmulas de Magali.

—O que é isso?!- A mesma quase jogou a arma no chão,sem entender o que estava acontecendo.

— Escute…-O rapaz assegurou que Magali ainda mantivesse, logo depois juntou suas mãos com as dela em volta do objeto,olhando fixamente em seus olhos.-...Eu não sou real e eu quero que saiba disso.

—Do que está falando? Claro que você é real!Eu posso te ver e te tocar…

—O futuro é mais palpável que o presente.

—Como assim?

—Você cria inúmeras versões de si mesma enquanto está viva, versões boas e ruins que a sua imaginação pode te proporcionar,cada uma delas tem um pouco da sua essência...E com o Cebola é a mesma coisa. Eu sou uma das inúmeras versões que ele criou de si mesmo na própria mente, sou a versão que ele considera mais perfeita e almejada, já que sou tudo aquilo que ele quer ser algum dia e tenho tudo o que ele quer ter no futuro.- Cebola fez uma pausa para respirar fundo e manter a atenção de Magali em seu olhar.- Por mais que eu tenha a essência dele,por mais real que eu pareça ser...eu não sou ele e jamais vou ser.

Magali sentiu um nó se formar em sua garganta só de sentir a tristeza que aquele olhar tão intenso lhe transmitia.A voz do rapaz que segurava suas mãos soava melancólica, como se ele não gostasse de ser apenas mais uma versão de si mesmo.
—Ce-cebola... você é real...pra mim.

—Maga...Eu sou apenas uma ilusão que o Cebola criou pra viver os sonhos mais ambiciosos dele. Mas o problema é que eu acabei ganhando muita força na mente dele, ganhei meu próprio espaço no meio das outras versões e até o meu próprio universo,nisso ganhei mais liberdade para pensar de outra forma e ter livre-arbítrio.

       -E qual é o problema nisso?

—O problema é que só existe um corpo para uma personalidade,se eu ganhar mais espaço, consequentemente a personalidade verdadeira pode se perder e eu posso tomar o controle,ou seja,o Cebola pode enlouquecer,esquecer de tudo o que viveu até agora e viver num mundo de fantasias que ele mesmo criou...eu não posso permitir que isso aconteça, eu não deveria ter ganhado tanta força quanto ganhei agora e preciso consertar isso o mais rápido possível, na verdade, preciso que você me ajude a consertar.

—O-o que eu tenho que fazer?- A garota mal conseguia falar, tamanho fora o baque que levou depois daquela informação. Magali até gostaria de negar tudo o que lhe foi dito, mas sabia que era verdade e que o risco era real.


       -Me mate.—As palavras pareceram cortar os tímpanos de Magali.


    -  Eu não posso fazer isso!!-A mesma tentou se desvencilhar da adaga em suas mãos,mas Cebola a puxou novamente,impedindo-a de fugir.

— Você não pode, você deve!

— Tem que haver outra forma de salvar ele!Eu não quero matar ninguém,muito menos você!!- As primeiras lágrimas escorriam ainda quentes pelo rosto carregado de maquiagem da garota.

— Você precisa fazer isso, não tem outra forma! É tarde demais para fazer escolhas Magali, não temos mais nenhuma!- O rapaz aumentava o tom de voz sem tirar os olhos da mulher a sua frente e sem soltar a sua mão.- Por favor!Escuta! Não tem mais o que fazer, já tentamos de tudo...Mas o experimento foi longe demais e infelizmente não vamos ter outra alternativa.

— Eu não quero matar você!!Eu não posso!!

— Porque não pode?!O que te impede?Eu já arranjei o local perfeito e já entreguei a arma na sua mão... só falta a sua atitude.

— VOCÊ NÃO ENTENDE?!Por mais que você diga que não é real e que só é mais uma versão do Cebola, pra mim, você vai continuar sendo o meu amigo, vou continuar gostando de você do mesmo jeito e eu não vou ser capaz de fazer isso, independente da versão que você for!

Aquelas palavras calaram o rapaz, que por sua vez soltou as mãos de sua amiga e as pousou em seus ombros.

— É inacreditável…- O mesmo suavizou sua expressão e sua voz,um brilho surgiu em seu olhar e um sorriso se desenhou levemente em seu rosto.- ...Todas as suas versões que eu conheci me trataram da mesma forma, todas me compreenderam, todas me aceitaram do jeito que eu sou e quando achei que a verdadeira me rejeitaria, ela também me aceitou….Por mais versões que você tenha, Maga, você permanece imutável na sua essência e eu admiro isso. Infelizmente, não sei se as outras versões do Cebola reconhecem o seu valor, mas eu sou uma exceção...como tenho livre-arbítrio não sou mais controlado pelo Cebola e por isso posso sentir o que quiser,por quem eu quiser...e por mais absurdo que pareça, eu escolhi amar você.

 No momento em que aquelas palavras ecoaram, Magali sentiu seu coração disparar pela primeira vez por aquele que ela nunca imaginou que o faria disparar algum dia. Havia algo naquele olhar e naquelas palavras que afirmavam tudo o que ele dizia.

Era difícil identificar se eram falsas declarações, pois a verdade parecia transbordar em cada letra pronunciada.

— Por mais que você não lembre das suas outras versões, quero que saiba que eu sou grato por todas elas terem amado o meu pior e despertado o melhor em mim. Tenho certeza que sou muito diferente das minhas outras versões em relação a isso, tanto que eu estou prestes a fazer algo que nenhuma das versões do Cebola jamais faria…- O rapaz puxou Magali para perto até que seus corpos colassem um no outro e pousou os seus lábios com os dela,selando um beijo.

O beijo fora longo e demorado, um misto de sensações e emoções pareciam se colidir umas com as outras, como se inúmeros Big Bangs estivessem acontecendo ao mesmo tempo. Se aquele rapaz era somente uma ilusão, então Magali desejava ser louca para poder senti-lo daquela forma novamente.

Aquela versão mesmo que não passasse de uma cópia atualizada do seu amigo de infância, ainda sim tinha uma essência própria que o fazia ser único em todos os sentidos.

Alguma coisa naquele rapaz era diferente de tudo que Magali conhecia do verdadeiro Cebola.Ele parecia ser um pouco mais emotivo e bem resolvido, além de não se comportar como um adolescente imaturo, aquele homem sabia o que queria e aceitava todas as consequências dos seus atos.

Ele não merecia ser somente uma versão,mas uma base para todas as outras.
    Enquanto Magali dava o último Adeus, torcia tanto para que o verdadeiro Cebola se tornasse aquela versão quando se tornasse um adulto, obviamente ele não iria amá-la daquela forma,mas seria uma pessoa muito melhor do que era agora.

Por mais que quisesse negar, Magali sabia a resposta para as suas dúvidas, sabia que precisaria matar aquele amigo de uma vez por todas para salvar a sua verdadeira versão. Mesmo tendo consciência  de que continuaria a ter um Cebola cheio de problemas e imaturo, aceitando de que somente o que se fazia no presente poderia afetar o futuro, e não o contrário. Se o verdadeiro Cebola criou todas aquelas versões e a melhor delas permaneceu, isso significava que ele estava no caminho certo de sua evolução e que teria oportunidade de evitar grandes problemas e , consequentemente, se tornar uma pessoa melhor ou se tornar a melhor versão de si mesmo.

Mesmo assim,ela não tinha coragem o suficiente para ir tão longe.

— Cê?

Mas Cebola teve.

Com os olhos ainda cerrados, Magali, ainda pôde escutar um gemido de dor até sentir o corpo do rapaz caindo aos seus pés, literalmente.

Ela não queria acreditar que aquilo tinha acontecido, não queria acreditar que ele havia cravado aquela adaga em si mesmo. O movimento foi tão rápido e brusco que a garota não conseguiu impedi-lo.

E quando ousou abrir seus olhos novamente, a única cena que pôde ver foi Cebola sentado no chão, apoiando a sua cabeça em uma parede mofada enquanto seus olhos lentamente se direcionavam à Magali.

Seus lábios brancos entreabertos mal conseguiam se mover quando disse suas últimas palavras:

—  Pode ir embora agora.

— NÃO!POR FAVOR!...CÊ!- Magali segurava o rapaz em seus braços enquanto gritava aos prantos,implorando á morte que não o levasse.

—Pegue…- As mãos trêmulas do rapaz retiraram aquele pequeno papel e entregaram- no a garota.- ...Agora vá...por favor, vá embora antes que ele te ache.

—Cebola...eu-eu não posso...te deixar aqui.-Magali mal conseguia falar.No fundo ela sabia que tinha que deixá-lo,mas se recusava.

O olhar do rapaz parecia implorar pra que a amiga fosse embora.Aquele pedido silencioso não poderia passar despercebido aos olhos de Magali,que marejados de lágrimas se despediam do seu amigo.

Depois de juntar o pouco de coragem que ainda lhe restava, Magali, saiu de lá sem olhar pra trás, arrastando seu vestido ensanguentado para o mais longe possível daquele lugar.


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