Por sua causa escrita por Elie


Capítulo 9
Tainá


Notas iniciais do capítulo

Quando eu reconheci a ausência.



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Acordei mais cedo que o usual para pode fazer algumas orações. É um costume que me ajuda a colocar minha cabeça no lugar quando fico estressada. Nem a hora a menos de sono me desanimava, pois todos os meus problemas pareciam menores quando eu conversava com o Espírito Santo. Também era o momento em que eu agradecia por todas as coisas pelo que sou grata.

— Tainá! Está na hora! — minha mãe sempre me chamava para tomar café da manhã antes de ir para aula.

— Já estou indo!

Peguei minha mochila em cima da escrivaninha, joguei-a no sofá e fui tomar café da manhã na cozinha. Meu pai estava lendo alguns papeis que pareciam ser um manual de instruções das gerigonças que só ele conseguia decifrar. Minha mãe estava falando com alguém no celular, ocupada como sempre. Sentei-me e me servi com iogurte, cereal e algumas frutas. Não conversamos nada até eu terminar meu prato, mesmo depois de mamãe acabar seu telefonema. Acredito que meu pai resolveu ligar a televisão quando percebeu o silêncio que ninguém estava disposto a quebrar.

A previsão do tempo para hoje é de céu nublado com trinta por cento de chance de chuva. Não esqueçam o guarda-chuva em casa! — a moça do tempo avisou.

— O dia está lindo. Eles sempre erram — papai comentou, quando tirou os olhos de seus papeis por um segundo.

— Verdade — mamãe comentou.

Ainda faltavam dez minutos para o horário em que saíamos de casa. Como meu pai trabalhava na oficina que montou na garagem, era ele quem me levava para o colégio. As manhãs costumavam ser mais alegres quando Tereza estava entre nós, mas eu não podia dizer que éramos tristes. Ainda assim, eu sabia que nunca mais seria como antes. Sorte a minha que meus pais tinham o aconselhamento de casais disponível na igreja, responsável por manter o casamento deles intacto mesmo depois de tanta dor. Éramos um trio inabalável.

Nossos estoques de bolsa de sangue estão extremamente reduzidos. Precisamos urgentemente de doadores de todos os tipos sanguíneos... — um homem falava no jornal. Mesmo comigo prestando atenção na notícia, mamãe desligou a televisão abruptamente.

Tereza precisou de sangue algumas vezes, mas para a nossa sorte a ajuda de nossos amigos foi suficiente nesses momentos. Acredito que meu pai reclamaria em outra situação, mas acho que a reportagem também o lembrou do tempo em que passávamos muito tempo no hospital. O incômodo no rosto da minha mãe era óbvio. Percebi que ela voltou a falar no celular só para disfarçar, mas todos nós entendemos a razão daquela atitude.

— Vamos, pai? — eu o chamei.

— Vamos, querida — ele me respondeu enquanto já pegava as chaves do carro.

Peguei minha bolsa no sofá e me dirigi ao carro. A escola ficava a cerca de trinta minutos da minha casa, mas metade da viagem se passou sem que ninguém falasse nada. Resolvi olhar minhas mensagens no celular.

Setembro Amarelo. Porque Jesus deu a vida dele por você.

O suicídio vai na contramão de tudo que o Senhor deseja. A alma que vai para o outro lado de tal maneira tenderá ao sofrimento se não houver arrependimento. Caso algum pensamento negativo passe pela sua cabeça, vá até a igreja conversar com o pastor. Acreditamos na fé, no perdão e no amor. Seja parte dessa corrente do bem.

 

Assim que li essa mensagem num dos grupos da igreja, cada fio do meu corpo ficou arrepiado. Lembrei-me do garoto que tinha se suicidado no mesmo ano em que Tereza faleceu. Fiquei triste por ele e rezei para que tivesse alcançado a paz. Fiz uma promessa mental para orar por ele novamente assim que tivesse a oportunidade. O garoto parecia ser muito calado e reservado, assim como Cecília. Pessoas assim me preocupam, pois não dá para imaginar o que se passa em suas cabeças.

— Filha? — papai pareceu se lembrar de algo.

— Oi, pai.

— Gostaria de falar sobre aquela sua amiga... — era a conversa que eu já estava esperando. Demorou mais do que pensei.

— Cecília? — pergunta retórica.

— Sim. Ela está bem? Parecia meio perdida naquele dia — imagino quantas outras coisas se passaram na cabeça dele.

— É o jeito dela, pai. Cecília gosta de agir daquele jeito, de ser diferente, mas é uma boa pessoa.

— Pode ser, mas tenha cuidado. Não deixe que as companhias te mudem. Onde estão as outras garotas? Nunca mais trouxe Bia e Elisa para almoçar conosco.

— Estão ocupadas, pai. Elisa está trabalhando com internet e Bia está focada no vestibular. E você sabe que é um trabalho de redação e Ceci é minha dupla.

— Eu sei, Tainá. Só estou falando para você ter cuidado.

Contemplei a paisagem da janela, tentando desviar dos comentários de meu pai. Entendi a preocupação dele, mas ele não conhecia Cecília o suficiente para falar aquelas coisas. Além do mais, eu sabia me defender muito bem, apesar das pessoas duvidarem disso. Um pouco chateada, agradeci a Deus quando a viagem terminou.

Enquanto eu andava em direção à sala de aula, um jovem casal se despedia de uma garotinha chorosa. Eles estavam de mãos dadas e riam da reação da menina quando eles se afastaram. Pareciam aquelas famílias que têm sempre algo a compartilhar, que mal podem esperar para realizar os planos que fizeram quando se conheceram. A cena foi uma recordação de que minha família já tinha sido assim um dia.

***

Confesso que desde o primeiro momento em que conversei com a Cecília, não me senti confortável. Por mais que eu tenha aprendido a nunca atirar pedras, pois eu sei que também tenho meus pecados, uma parte de mim queria aconselhá-la. Só que minha ajuda era tudo o que ela menos queria e acreditava. Pelo contrário, ela achava que minha fé era antiquada. Tenho sorte de ter tido experiências suficientes para garantir que não havia nada mais constante que a minha fé, que se fortaleceu através do que eu vivi e aprendi, e, muito mais que atual, transcenderá todas as épocas.

Sei exatamente de tudo que passei de cor. O fundo do poço não foi nem quando a Tereza se foi, mas alguns dias depois, quando eu reconheci a ausência. Tive medo de me esquecer dela, das formas do rosto, do timbre da voz e até das manias irritantes de pegar as minhas coisas sem pedir permissão. Só que um dia percebi que a inexistência de Tereza é impossível. Sempre haverá uma parte da história em que tive a sorte de tê-la como irmã caçula. Impossível como a inexistência de Deus.

— Imagina que até hoje você só enxerga em preto e branco. Você não sabe o que é azul ou vermelho, verde ou amarelo. Como você poderia ter certeza de que não existem as cores? — questionei.

— Certo — Cecília parecia entediada e não quis nem discutir. Em outro momento provavelmente rebateria com veemência. — Entendi seu ponto de vista, mas eu estou com fome. Vamos almoçar.

Estávamos caminhando do ponto de ônibus até a casa dela. Era minha vez de escrever algo sobre Cecília, até ali tudo tinha sido sobre mim. Fiquei imaginando que os pais delas eram hippies que deixavam os filhos escolher seus nomes e roupas assim que começam a falar. Imaginei-os vestindo roupas tingidas em tiedye, cerceados por vários incensos, pedras e cristais. Ri comigo mesma só de imaginá-los fazendo uma meditação estranha.

— Prepare-se. Meus pais vão querer fazer hipnose em você — ela avisou.

Fiz o sinal da cruz institivamente. Meu pai falaria para sair correndo dali. Ironicamente, quando viu minha reação, quase chorando de nervoso, Cecília deu uma gargalhada. A atitude dela me deixou irritada, mas a apreensão era maior que a irritação.

— Estou brincando. Eles são chatos como todos os pais — ela admitiu. Acho que teve um pouco de remorso quando me viu tão preocupada.

Não ri nenhum pouco dessa piada e passei o resto do caminho reclamando. Quando finalmente entrei na casa dela, tive uma surpresa boa. Era um ambiente cheio de luz, artesanato e plantas. Parecia uma dessas casas que são expostas em revistas de arquitetura. Dois cachorros vira-latas vieram em nossa direção assim que abrimos a porta. Um gato tricolor bebia água perto dali.

— Esses são o Demo e o Lúcifer. Aquela é Lilith — ela falou com naturalidade.

Arregalei os olhos, fazendo-a gargalhar novamente. Ceci falava tantas coisas sem sentido que eu já nem sabia quando deveria acreditar nela. Acho que era divertido para ela me ver tão deslocada.

— Estou brincando, Tainá. Essa é a Maria Joana e esse é o Cannabis. Eles são uns amorzinhos, pode confiar.

— Engraçadinha — falei sarcasticamente e fui brincar com os animais. — Maria Joana e Cannabis? É isso? — perguntei.

— Exato — ela confirmou, ainda rindo de mim.

Minha colega pediu licença para esquentar o almoço e avisou que seus pais saíram antes do previsto, pois precisaram resolver algum problema. Enquanto isso, continuei ali brincando com os bichinhos, esperando a comida ficar pronta.

— Vem cá, menina. Maria Joana, dá a patinha — enquanto eu brincava, ouvi a porta abrindo, mas me ocupei com o outro cachorro mordendo a patinha traseira da fêmea. — Cannabis, pare com isso! Você está machucando a Maria Joana!

Meio perdida, escutei quando alguém deu uma risada alta, fazendo-me levar um susto leve.

— Oi. Boa tarde. Meu nome é Tainá, sou colega da Ceci — eu me apresentei.

— Boa tarde, Tainá. Fique à vontade. Meu nome é Caetano, irmão mais velho da Cecília — ele continuou sorrindo.

Quando me arrumei um pouco para cumprimentar Caetano, quase tive um engasgo. Não só ele era diferente de Cecília, como era o extremo oposto: camisa de manga longa engomada, calça social, sapato brilhando, maleta de couro, óculos arredondados de grau e cabelo penteadinho sem um fio fora do lugar. Isso sem aparentar ter mais de 25 anos. “Agora não sei se eles têm pais hippies”, pensei.

— Como você acabou de chamar esses cachorros? — ele perguntou, sem tirar o sorrisinho do rosto.

— Maria Joana e Cannabis, não é isso? — falei.

Ele deu outra gargalhada alta. Logo imaginei por quê.

— Não me diga que Ceci está tirando sarro de mim de novo — eu não sabia se estava vermelha de raiva ou de vergonha.

— Essa é a Marley, esse é o Charlie. O gato se chama Frederico. Minha mãe não nos deixaria colocar nome de maconha nos cachorros, mesmo a Cecília tendo um adesivo escrito “Legalize Já” no guarda-roupa.

— Como assim? Maconha? — quase não acreditei no que ouvi.

—  Olha no Google — ele respondeu, ainda dando risada, antes de entrar em casa.

Achei que Cannabis tinha haver com cão ou canil. E que Maria Joana era só um nome. Peguei o celular e pesquisei, então aprendi que Cannabis é o nome científico e Maria Joana é um nome popular para maconha (como Marijuana). Basicamente, eu tinha passado a maior vergonha em frente ao irmão educado e arrumado da Cecília. Antes eu os tivesse chamado de demo e lúcifer.

Devido ao vexame, fiquei espiando até me certificar de ver Caetano entrando em seu quarto. Assim que pude, fui conversar com Cecília.

— Poxa, Ceci. Acabei de passar uma grande vergonha. Muito obrigada — fiquei aborrecida.

— Que pena que eu não vi isso. Mas não se preocupa, meu irmão também acha que a política antidrogas proibicionista não funciona — ela riu.

“Pelo jeito eles só são diferentes por fora”, pensei.

Almoçamos e conversamos sobre coisas corriqueiras, como um filme que estava passando na televisão. A lasanha estava uma delícia. Surpreendi-me ao descobrir que Cecília havia preparado tudo sozinha. Apesar de discordarmos em muita coisa, estar com ela era bem divertido.

— Tainá, eu vou ter que ir no banco ali na esquina depositar um dinheiro. Volto em 20 minutos, tudo bem? — vi que a mãe dela havia deixado um recado na geladeira pedido para Cecília fazer aquele favor.

— Sem problemas — respondi.

— Pode ficar assistindo televisão. Fique à vontade.

Ela saiu com uma pasta nas mãos e me deixou sentada no sofá. Estava passando um programa de moda que não era muito a minha cara, então fiquei cinco minutos procurando outra coisa para assistir. Tentei permanecer ali, mas comecei a ficar entediada, então passeei um pouco pela casa para admirar um pouco mais a decoração artesanal e minimalista. Tudo era muito bonito, da mesa de madeira aos lustres de palha. As coisas não se repetiam, mas tudo se combinava de um jeito cheio de personalidade.

No corredor, observei fotos da família penduradas do chão ao teto. Os pais deles não eram hippies, não tinham tatuagens como as de Cecília, nem pareciam com o jeito engomadinho de Caetano. Havia também um terceiro filho, o mais velho de todos, que parecia com Cecília e já havia se casado com uma moça muito bonita. Vi fotos de praia, de natal, de casamento e de festa junina, quando Cecília era uma criança e sua pele ainda era limpa. Antes de ver as fotos, eu ficava imaginando que os pais dela eram rebeldes como ela ou então eram o extremo oposto e reprimiam tudo o que ela fazia, mas a verdade é que os pais dela pareciam com os meus e aquilo me surpreendeu mais do que todo resto.

Ao fim das fotos, encontrei uma porta branca em que estava escrito “Espaço da artista desta casa. Bata antes de entrar!”. Bati de leve para checar se havia alguém ali e fui abrindo a porta aos poucos, para não fazer barulho. Ao contrário de tudo que eu tinha achado sobre a casa, aquele quarto era a cara de Cecília, ao ponto de destoar de todo o resto. Era cheio de contraste, com uma parede cor de quadro negro cheia de desenhos, artes espalhadas por todo lugar, luzes em cima da cama, cadernos de arte empilhados, fotos grudadas no guarda-roupa (ao lado do adesivo “Legalize Já”), um mapa mundi dourado cheio de alfinetes, cactos e suculentas, um cabideiro com chapéus e colares de pérola, um cavalete no canto com alguma arte abstrata incompleta cheirando à tinta fresca e uma penteadeira de madeira escura. Na parede branca, frases escritas à mão com caneta hidrográfica, incluindo passagens de livros e citações famosas.

— Nossa — falei alto.

Não havia nenhum outro lugar no mundo que fosse mais “Cecília” do que aquele cômodo. Era pessoal, trazia todas as coisas que ela tentava esconder. E era lindo.

Folheei alguns cadernos de desenho e fiquei ainda mais impressionada. Ceci era uma artista incrível e ninguém no colégio sabia disso. Manter aquilo tudo escondido chegava a me incomodar. De vez em quando, eu dava uma olhada no corredor para ver se Cecília tinha chegado. No fundo, eu sabia que ela não ficaria confortável se descobrisse que eu estava fuçando as coisas dela, mas eu tinha a desculpa da biografia e as minhas intenções eram boas.

— Não diga a ela que eu disse isso, mas ela é extremamente talentosa, não é? — Caetano entrou de surpresa e falou, fazendo-me levar um susto. Felizmente, ele me acompanhou na bisbilhotada.

— Isso aqui é uma galeria de arte! Eu imaginei que ela gostasse de desenhar pelo jeito como ela nunca larga aquele caderno, mas isso aqui é outro nível! — eu estava muito entusiasmada. Era como entrar num universo novo feito pela Ceci.

— Tinha que ter algum artista nessa família. Meus pais são escritores, eu sou advogado, meu irmão é engenheiro. Sobrou para ela... — ele parou por um segundo, como se tivesse lembrado de algo de relance. — Espere aí! Vou te mostrar uma coisa especial, mas é segredo. Não diga a ela que eu te contei.

— Tem a minha palavra — garanti.

Caetano mexeu por alguns segundos nos cadernos e pegou um mais antigo, depois me entregou. Folheei por uns minutos e fiquei me perguntando de onde eu reconhecia aqueles desenhos. Todas as figuras pareciam familiares.

— Maravilhosos — comentei. — É impressionante o modo como ela se expressa através dos desenhos, como se estivesse colocando toda a personalidade dela em cada um deles. Olha esse alce! Parece que está saindo da página!

— Todos aqui em casa somos fãs.

— Ela acabou de ganhar mais uma fã — sorri. — Engraçado... Tenho a impressão de que já vi alguns desses desenhos. São todos originais, não são? Ela já publicou?

— Não reconhece? — Caetano ergueu as sobrancelhas.

Franzi a testa, tentando lembrar onde eu tinha visto aquelas artes.

— São tão lindos, acho que me lembraria — murmurei.

Ele sorriu e apontou para uma flor meio murcha, em seguida apontou para o seu antebraço. Depois folheou algumas páginas e apontou para uma figura que parecia uma ampulheta cheia de fios emaranhados, em seguida apontou para a batata da perna esquerda.

— Ah! — fiquei boquiaberta, chocada.

— Isso mesmo — ele fez que sim com a cabeça. Foi quando descobri onde eu tinha visto aqueles desenhos: tatuados em Cecília.

— Todas são desenho dela? — perguntei.

— Todas. Ela quer fazer um curso para poder fazer isso em outras pessoas — Caetano respondeu, demonstrando ter muito orgulho de sua irmã.

Enquanto conversávamos, tirei algumas poucas fotos com o meu celular. Tudo o que eu queria era uma recordação daquele momento. As pessoas no colégio também ficariam chocadas com a notícia. Aposto que Ceci faria muito sucesso se publicasse as artes em alguma rede social.

— Vê se esconde essas fotos e, por favor, não me dedure, ela não gosta que saibam que desenhou as próprias tatuagens, o que acho que é bobagem, mas a escolha é dela. No fundo, acho que minha irmã tem esse jeito marrento, mas é muito insegura — ele me confidenciou.

— Nossa. Você também tem alguma tatuagem? — fiquei curiosa.

— Não tive coragem ainda. É muito permanente, sabe? E tem a questão do meu trabalho, mas quem sabe um dia. Você tem alguma? — ele devolveu a pergunta.

— Não, não — ele realmente não sabia nada sobre mim.

— Mas são lindas, não são?

— São sim — respondi, meio sem jeito.

Ouvimos o barulho da garagem abrindo nesta hora, então arrumamos tudo rapidamente e saímos dali correndo para Ceci não notar que mexemos em suas coisas. Deu tempo de sentar no sofá, mas ainda lutei para esconder minha respiração ofegante.

— Tudo certo? — ela perguntou.

— Tudo. Seu irmão é bem legal. Ele me mostrou as fotos do corredor — omiti o resto.

— Que bom, adiantou um pouco o trabalho.

Ela foi guardar os papéis em seu quarto e, pelo jeito, não desconfiou que eu estive lá, depois voltou para conversarmos.

— Vamos lá. O que você quer saber sobre mim? — ela perguntou.

— Primeira coisa: Como são seus pais? Qual a profissão deles? Você se dá bem com eles?

— Meu pai é escritor, formado em letras. Minha mãe é psicanalista. Eles coescrevem livros toscos de autoajuda há vários anos. Estão dando uma palestra neste exato momento. Nós nos damos bem na maioria das vezes. Aqui em casa tivemos liberdade para descobrir nossos caminhos, mas eles sempre aplicam a psicologia deles em mim, então pode ser chato às vezes.

Ela foi até a estante e pegou dois livros para me mostrar. O primeiro se intitulava “A importância da tristeza para ser feliz” e o segundo se intitulava “Que seja!” e era sobre ansiedade e a importância de não se preocupar tanto. Abri a orelha do livro e vi a foto dos pais dela, os dois muito sorridentes.

— Pode ficar com eles, se quiser. Deve ter uns trinta exemplares espalhados pela casa, mas já vou logo avisando que é tudo chato.

— Eu amei! Obrigada! — fiquei bem contente com o presente, então dei um abraço nela. Não sei quando foi que passei a tratá-la do mesmo jeito que trato a Bia ou a Elisa, mas a verdade é que eu estava começando a apreciar nossas conversas. No entanto, tive a impressão de que ela se sentiu meio desconfortável com a minha reação.

— E como é sua relação com os seus irmãos? — continuei.

— O Celso trabalha em alguma indústria no interior e já é casado, então eu o vejo pouco agora, mas como ele é bem mais velho sempre foi mais fácil conviver com ele. Já o Caetano... Bem, você já o conheceu. Ele é o orgulho dos meus pais, futuro juiz, todo certinho, simpático e blá blá blá. Basicamente, ele é tudo que eu não sou. Ele bem que podia passar num concurso bem longe para parar de me encher o saco.

— Você tem sorte de tê-lo por aqui — falei, com a voz meio falhada.

— Verdade — ela continuou e olhou para baixo. — Ele é okay.

— Hum... E quais são suas perspectivas para depois do colégio?

— Acho que vou fazer algum curso de artes plásticas, talvez design, mas ainda não sei bem. A única certeza que tenho é a de que continuarei fazendo arte.

— Você gosta bastante, não é? — tentei puxar o assunto para que ela se abrisse um pouco mais.

— Sim — ela foi evasiva.

— Pode me mostrar alguma coisa que você tenha feito? Por favor... — implorei.

— Minha arte não é o tipo de coisa que você vá gostar — ela respondeu.

— Mas eu só vou saber disso se eu puder ver — mal sabia ela como estava errada.

Ceci pensou um pouco e se levantou. Tentei segui-la, mas ela pediu para que eu a esperasse ali. Voltou para a sala segurando um envelope.

— Para você — ela falou.

Meus olhos marejaram quando eu abri o envelope. Dava para perceber o traço inconfundível de Ceci. Perguntei-me como eu não tinha notado que ela era tão talentosa antes. Num papel grosso, em caneta nanquim, havia a imagem de um canguru, abrindo seu marsúpio, triste por perceber o vazio ali.

— Eu não sei o que falar — fiquei paralisada.

Então Cecília tirou uma pequena dobradura de canguru do bolso e entregou em minhas mãos. Soube na hora o que aquilo representava.

— Não que você precise, mas é uma lembrança da parte que está faltando no desenho — Ceci explicou.

Eu não aguentei e não pude segurar minhas emoções quando ela disse isso. Fiquei ali, feito uma criança, soluçando. Cecília estava sem reação, acho que não imaginou que aquilo me afetaria tanto. Tereza tinha falecido há anos e até eu achei que estava imune ao reconhecimento da ausência àquela altura, mas eu não estava. E por mais que eu tivesse certeza de que eu nunca esqueceria minha irmã, foi bom guardar aquele pequeno canguru perto de mim.

— Desculpa. Sinto muito se eu te deixei triste — Ceci disse.

— Pelo contrário — respondi, ainda com algumas lágrimas. — Eu nunca vou ter como pagar isso. Obrigada. — Mais uma vez, dei um abraço nela. Dessa vez, ela devolveu o afago.

Guardei o desenho e o origami de canguru com muito cuidado em minha mochila. Depois que me recompus, terminei de fazer minhas perguntas. Eu não tinha a intenção de fazer nenhuma tatuagem, pelos meus princípios religiosos. Não posso dizer com toda certeza que Deus vá punir as pessoas tatuadas, mas posso dizer que é uma escolha minha não marcar minha pele.

Independentemente das nossas diferenças, esse gesto de carinho deixou uma tatuagem no meu espírito, e eu não falei para Ceci, porque acho que ela acharia bobagem (para o azar dela), mas poucas vezes eu me senti tão perto de Deus por estar perto de alguém.


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Notas finais do capítulo

I've been strong
And I've been broken within a moment
I've been faithful
And I've been reckless at every bend
https://youtu.be/V0eXYR65Z2w



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