Por sua causa escrita por Elie


Capítulo 8
Felipe


Notas iniciais do capítulo

Duas vezes covarde.



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Acordei às dez da manhã com três batidas fortes na porta. Provavelmente era um dos meus pais incomodados com minha preguiça. E eu não trancava a porta para dormir, mas eles respeitavam minha privacidade, só que não descansavam enquanto eu estava deitado. De qualquer jeito, voltei a dormir um pouco depois daquilo.

— Acorda, Felipe! Já são onze horas! É sábado, vá aproveitar o dia — era minha mãe, não me dando alternativas a não ser acordar.

Olhei para o relógio e bufei ao descobrir que ainda eram oito horas da manhã. Tinham muitos outras pensamentos escondidos naquele “vá aproveitar o dia”. Minha mãe queria que eu aproveitasse mais minha vida e, por esta razão, a visita de Beatriz a deixou com alguma esperança. Tudo que eu ouvia era sobre como a Bia era educada e bonita e inteligente, como se eu já não soubesse disso. E isso se somava ao fato de que ficar com Beatriz era uma razão para não viajar para tão longe.

— Seu primo Miguel conseguiu um estágio ótimo naquela fábrica de biscoitos que abriu ano passado. Você tem certeza que não quer tentar uma universidade pública? Acho que podem surgir oportunidades como essa — minha mãe fazia essa pergunta quase diariamente, nos momentos mais aleatórios possíveis. Ela não conseguia nem esperar eu despertar de verdade.

— Talvez quando eu voltar, mãe. Preciso pensar um pouco nas minhas opções. A senhora entende?

         Minha mãe beijou-me na testa, mas continuou com aquela expressão de preocupação. Ela não precisava verbalizar para eu perceber seu medo de me deixar ir sozinho para o outro lado do planeta, só que ela não queria me privar de algo que eu lutei tanto para conseguir. Foram treze alunos de reforço, vários dias ajudando o pai do Renan no lava-jato, dois trabalhos temporários como garçom e zero férias em muito tempo. Isso me tirou a chance de ir para algumas festas e eventos pelo meio do caminho, mas acho que valeu a pena.

         — O papagaio está subindo — Fernando avisou, após atender ao telefone sem nenhuma empolgação.

         O papagaio era meu amigo tagarela, Renan. Como morávamos perto, às vezes nos reuníamos para jogar videogame. Fernando o achava inconveniente e estava com razão, mas meus pais gostavam de Renan porque era uma prova de que eu não era tão sozinho no colégio. E como minha mãe o atraía com tortas e docinhos, sua presença em minha casa não era incomum.

         — Oi, baixinho! — Renan estendeu a mão para que Fernando pudesse cumprimentá-lo, mas foi completamente ignorado e meu irmão foi direto para o seu quarto, o que me fez rir alto. — Seu irmão está cada dia pior — ele reclamou.

         — Não culpe a criança, papagaio — falei de um jeito dramático.

         — O quê? — ele não entendeu.

         Ouvi quando Fernando deu uma gargalhada do quarto dele e também ri. Renan foi direto para cozinha cumprimentar minha mãe e roubar algum doce, mesmo estando a poucas horas do almoço. Fomos para o meu quarto um pouco depois. Para variar, Vera foi o primeiro assunto que ele trouxe à tona.

— Você tem que tomar uma atitude. Todo mundo sabe que você gosta dela desde o ensino fundamental e o seu tempo está acabando — eu já estava cansado de sempre falar as mesmas coisas. 

Sempre acabávamos no mesmo assunto. Eu já não aguentava mais aquela história, ainda mais sabendo que cada dia que se passava era uma nova chance de Janaína sair magoada. Tinha vezes que eu queria falar isso para o Renan, mas sabia que não tinha o direito de expor Jana, ainda mais quando não tinha como ter certeza se era verdade.

— Você está diferente depois que pegou a Bia, em? — ele caçoou.

— Eu não estou pegando ninguém. Já estou procurando passagem para a Espanha, brother. Daqui para frente, só espanholas.

Fiquei com vergonha de mim mesmo por dizer isso. Era só uma desculpa por não ter coragem de admitir que sim, Beatriz mexia comigo. E era algo recente. Ela sempre foi bonita e tinha um corpo que tirava minha concentração, mas até conversar melhor com ela eu achava que era uma patricinha neurótica.

— Quem diria que um magricela do cabelo bagunçado como você teria chance com a terceira garota mais gostosa da sala — Renan sabia ser babaca.

— Terceira? — ergui uma sobrancelha, curioso para saber quem eram as outras.

— Bruna em segundo lugar e Vera em primeiro, é claro — meu amigo era bem convencido.

Só fiz um gesto negativo com a cabeça e o ignorei. Claro que eu tinha minhas preferências físicas quando pensava em mulheres, mas gostar de alguém muda sua perspectiva. Aquela atriz gostosa que roubava seu pensamento aos quinze anos de idade se torna só uma fantasia e tudo que você quer é ficar sozinho com aquela garota que é misteriosa, divertida, interessante e muito mais que uma imagem numa tela. Daí em diante, só isso é capaz de te deixar louco de verdade.

— Espero que ela esteja te fazendo bem, cara — ele disse, espontaneamente, mas de um jeito sério, enquanto escolhíamos nosso time no console.

Apesar de ter que ouvir tantas bobagens, Renan era divertido. E ele era bom jogando Fifa, um adversário à minha altura no videogame. Ele sabia quando eu não estava num dos meus melhores momentos, sempre perguntava se eu estava precisando de alguma coisa, mas nunca era intrometido.

— Estou ótimo — respondi, justamente quando fiz um gol, pouco tempo depois da partida começar.

— Que droga! — ele retrucou.

— Você está falando com o novo craque do Barcelona — me gabei.

Disfarcei um pouco, mas eu notei que Renan se preocupava de verdade comigo. Tenho dificuldades para cuidar de mim. Pensei em desistir do colégio duas vezes durante o ensino médio. Eu tirava boas notas, recebia elogios, ganhava prêmios, mas nada me fazia verdadeiramente feliz. Tudo o que eu queria era pegar uma mochila e viajar pelo mundo para descobrir culturas diferentes. Meus pais, professores e amigos sempre me perguntavam o que eu faria depois, mas nunca tive resposta. Não era como se eu estivesse deprimido como o Marcelo, mas eu ainda não sabia qual era meu lugar no mundo.

Eu tentava ser como os outros, mas não conseguia. Nunca me encaixava nas poucas festas que eu ia. Multidões eram sinônimo de ataques de pânico. Nenhum curso me interessava. Ainda não tinha planos para o futuro. Minha única certeza era minha vontade de viajar e a Espanha seria a primeira parada. Seria um dia de cada vez. Talvez um dia eu me tornasse centrado e decidido como minha dupla de redação, a garota que estava me inspirando a ser mais resiliente.

Beatriz tem sua parcela de estresse e ansiedade, mas ela não é superficial como eu pensava. Ela se preocupava com as pessoas em sua volta, até pessoas que nem conhecia bem. Tinha uma delicadeza e achava que a escondia, mas para mim era tão óbvia quanto alguém tentando se esconder atrás de um vidro transparente. O jeito como ela fez questão de ajudar a minha mãe e ainda teve paciência com o meu irmão me deixou pensando ainda mais nela. Mesmo com aquele jeito estressado dela, eu conseguia esquecer qualquer preocupação quando a gente conversava.

O problema é que ela era instável. Às vezes, se incomodava com brincadeiras que suas amigas faziam em relação a nós. Uma vez a escutei dizendo que eu não era seu tipo, que ela preferia caras com mais atitude. Na hora, quis dizer a ela que eu estava ali, mas ela tinha razão. Eu prefiro ficar na minha, fico analisando demais qualquer passo e acabo congelando. Além disso, minha prioridade era minha viagem.

***

— Você sabe que ele gosta de você — nesse dia, aproveitei que Janaína havia faltado e que Renan estava na cantina.

— Nem vem que não quero ouvir essa história. E agora que você nos trocou pela Beatriz, não posso abandonar a Jana — Vera não pareceu animada.

— A Janaína já é bem grandinha e ela pode conversar comigo, o Silas ou qualquer outra pessoa. O Renan vai me matar se sonhar que eu te falei isso, mas eu duvido que alguém se importe mais contigo que ele. 

— Você tem razão. Não sei como eu sobreviveria sem vocês, mas eu não sei se ele gosta tanto de mim como vocês falam. Ele nunca falou nada disso comigo. Se ele gostasse mesmo, falaria comigo. E se ele não está disposto a falar, será que vale a pena?

— Confie em mim. Nem sempre as pessoas falam o que estão sentindo. Algumas pessoas pensam demais na probabilidade do não e acabam perdendo o sim.

Após dizer isso, percebi o quanto eu estava sendo hipócrita. Fiquei perdido nos meus próprios pensamentos e não percebi que um silêncio estranho tinha tomado conta da conversa. Quando recobrei minha atenção, notei que a Vera foi tomada por uma enorme tristeza. 

— Aconteceu alguma coisa? — preocupado, coloquei minha mão em seu ombro.

— É que... Ontem... — Ela quase não conseguia falar.

— Calma. Respira. Eu estou aqui.

— É que ontem foi aniversário... — ela olhou para baixo, triste. — Você sabe do que estou falando.

Queria ser o tipo de pessoa que sabe o que dizer nessas horas. Perder alguém já é difícil, imagino como é complicado perder alguém para o suicídio.

— Como você está? — perguntei.

— Lembrei disso e enterrei em algum lugar no meu subconsciente. Eu podia jurar que estava bem, mas a verdade é que às vezes eu acho que nunca vou ficar bem. Ficar bem quando ele não está mais aqui parece injusto.

— Não é assim. Se ele estivesse aqui, gostaria de te ver bem. Avise se precisar de qualquer coisa — não acho que eu era a pessoa mais indicada para ajudá-la, mas eu faria tudo ao meu alcance.

Ela ficou pensativa por um bom tempo antes de responder. Era como se tivesse muitas coisas passando na cabeça de uma vez só.

— Na verdade, eu preciso de uma coisa sim. Você pode me acompanhar hoje depois da aula?

 — Claro — respondi, sem nem ao menos perguntar aonde iríamos.

De surpresa, Renan interrompeu a conversa. Naquele segundo, percebi que a quedinha dele era a coisa menos importante do momento.

— E aí, do que vocês estão falando? — ele perguntou, claramente preocupado com o que eu poderia dizer.

— "Para variar", estamos discordando de alguma coisa. Agora a pergunta é qual o melhor Beatles. Eu claramente acho que é o Paul McCartney, afinal ele é o melhor compositor e ajudou a escrever a melhor música dos Beatles de todos os tempos, In despite of all the danger, é claro. O Felipe acha que é o John Lennon só porque ele era o líder e tinha aquele "estilo". O que você acha? — Vera inventou aquilo na hora.

Enruguei minha sobrancelha devido à mudança brusca de assunto. Adorávamos conversar sobre os Beatles, mas até eu fiquei surpreso.

— Você está bem, Vera? — ele perguntou, ao notar o rosto avermelhado e a coriza.

— Estou sim, é só a porcaria da rinite — ela mentiu.

— Mas, e aí?  — perguntei a ele para desviar a atenção da emoção dela.

— Vocês sabem que Beatles não é muito a minha praia, mas voto no Paul McCartney.

Sem ele perceber, pisquei para ela, que me devolveu um sorriso escondido no canto da boca. O engraçado é que eu sabia que ele preferia o John Lennon.

 

***

Compramos margaridas amarelas e fomos até a lápide sob a qual Marcelo foi enterrado. Vera se ajoelhou e começou a limpar os pedaços de capim que cresciam por ali. Não haviam mais flores no lugar. Comparar aquilo com o túmulo ao lado era de partir o coração.

— Acho que ninguém vem aqui há meses — ela falou, misturando tristeza com reprovação.

Ajoelhei-me para ajudá-la e em poucos minutos demos uma melhor aparência ao local. Levantei-me e limpei minhas mãos sujas de terra no meu jeans. O Fiquei em silêncio porque não sabia o que dizer.

— Ele não conhecia o pai. A mãe não aceita suicídio. Família pequena e complicada — ela explicou.

— É uma pena — falei.

— Se alguém tivesse matado ele por sufocamento, ele seria um anjo. Como ele se matou por estar sufocado, o tratam como um nada. Talvez se eu fosse uma amiga mais presente, ele não tivesse feito isso — a raiva foi tomando conta dela aos poucos.

— Não fala isso. Não se culpe. Têm muitas outras variáveis envolvidas no que aconteceu. Um fio só não segura uma pessoa por muito tempo — essa última frase era uma coisa que minha mãe sempre me dizia.

Ficamos em silêncio, observando a foto na lápide por alguns minutos. Duas datas separadas por dezessete anos, período tão breve diante do somatório de todas as outras datas. Fiquei pensando em como a vida é uma coisa frágil e que devemos aproveitá-la ao máximo. Todo mundo sabe disso, mas todo mundo precisa se lembrar. Era um exercício diário e difícil para mim.

— Eu queria saber tantas coisas sobre ele, sabia? Eu não sei nem o que ele queria fazer depois do colégio, se é que um dia ele já quis fazer algo. As pessoas acham que eu era a pessoa mais próxima dele porque o Marcelo tinha poucos amigos. E quer saber? No fundo eu o achava incrível. Ele tinha uma alma de anarquista que ia de encontro a tudo e todos. Foi ele que me apresentou os Beatles de verdade, ele que me mostrou “In despite of all the danger”. E o mais triste de tudo é que me faltou coragem para conhecê-lo melhor porque eu tinha medo do que as pessoas falariam de mim. Tudo que eu queira era ser querida. Agora as pessoas dizem que gostam de mim e eu nem me importo porque a única pessoa de quem eu queria ouvir isso agora não pode mais. É o que covardes merecem.

— Não fala isso... — repeti.

— Mas eu fui covarde mesmo. Não tenho problema nenhum em admitir. Pior que ser covarde é negar sua covardia. É como você disse... A gente perde um sim com medo do não. A carapuça serviu muito bem, mas não vai servir mais.

Fiquei em silêncio, afinal eu também precisava ouvir aquilo. O incômodo nela estava me incomodando também.

— Vamos? — ela falou, após longos minutos em silêncio.

— Vamos.

— Obrigada por vir comigo — ela deu um beijo em meu rosto e limpou suas mãos sujas batendo-as no ar.

Não vou mentir, ainda não tinha prestado atenção naquela música dos Beatles, então fui ouvir quando cheguei em casa. Logo entendi porque era a preferida dela. Coloquei para repetir e acho que ouvi a canção umas dez vezes. Aquilo me fez refletir sobre como as pessoas têm influência umas sobre as outras. Por causa do Marcelo, a Vera começou a amar os Beatles, o que me fez amar os Beatles, o que fez a Bia ouvir “Hey, Jude”. Se até as músicas passam entre as pessoas como mágica, imagino como as gentilezas, os traumas, os sonhos, as perdas, os amores e os desamores soam de coração para coração, exercendo um efeito dominó que jamais poderá ser calculado.

 

***

— Bom dia! — Bia estava animada. — Adivinha quem conseguiu um horário livre na agenda de Emília Nogueira?

— Bom dia. Que animação é essa? E quem é Emília Nogueira?

— Minha mãe — ela explicou.

— Ah, sim — ri de leve, mas na realidade estava ficando nervoso.

— Quinta-feira, às seis. Prepare sua pesquisa. E cuidado.

— Certo — fui pego de surpresa e não soube nem o que dizer. — Mas cuidado com o quê?

— Este relacionamento está indo rápido demais, não acha? — ela brincou.

Beatriz falou isso, deu uma piscadela e foi para o seu lugar. De vez em quando, eu olhava para ela para me certificar de que aquilo realmente tinha acontecido.

 

***

Fiquei pronto às cinco. Cheguei no prédio às cinco e meia. Rodei o quarteirão por quinze minutos para não aparecer muito cedo. Quando o porteiro liberou o portão, subi no elevador. Ela me recebeu com um abraço e disse para eu ficar à vontade. Estava com um macacão amarelo que não era muito a cara dela, mas era bonito. Sentamos no sofá da sala e uma senhora nos serviu sanduíches e suco

— Obrigada, Jô — ela agradeceu. — Sua filha gostou dos livros que enviei? Tem alguns rabiscos que fiz quando eu estava estudando, mas são livros que me ajudaram muito no vestibular.

— Ela amou. Muito obrigada pelos livros. Se Deus quiser minha Gigi vai ser igual a você.

— Não foi nada, Jô. Se ela quiser posso dar umas aulas, é só mandar uma mensagem.

A mulher fez que sim e deu um beijo na cabeça da Bia.

— Obrigado pelo suco — agradeci.

Como eu desconfiava, Beatriz tinha esse costume de iluminar as pessoas ao seu redor. Cuidar das pessoas era algo que visivelmente lhe fazia bem. Olhei para ela e penso que deixei escapar alguma reação que eu preferia esconder, então procurei mensagens no meu celular para disfarçar.

Quando a senhora saiu, Bia olhou para mim por uns segundos e não falou nada. Também não falei nada, apenas sorri de leve. Ao contrário do que eu esperaria, não era constrangedor, pelo contrário, era confortável. Lembrei do que a Vera havia dito, mas também lembrei da minha viagem para a Espanha. Estava adiando a compra da passagem e eu sabia por quê.  Colocá-la na minha vida agora seria auto sabotagem.

— Belo apartamento — elogiei.

— Obrigada. Minha mãe gosta de arte, então fica tudo parecendo uma galeria. Ela sempre traz algo quando viaja.

— Eu gostei. Aquelas peças de vidro são de Burano? — apontei para os cavalos coloridos em cima do aparador.

— Sim. Conhece o local?

— Conheço a arte, vou conhecer o lugar um dia.

— Vai sim — ela sorriu.

— E sua mãe?

— Está saindo do plantão. É que você chegou um pouco antes do previsto...

— Desculpa — sempre gostei de ser pontual, mas eu estava nervoso demais nesse dia e acho que exagerei.  E poderia ser pior, porque enrolei ali perto antes de interfonar.

— Besteira. Quer ver minhas fotos enquanto ela não chega?

Fiz que sim com a cabeça. Bia saiu e voltou depois de alguns minutos com um baú enorme. Tentei ajudá-la, mas ela não achou necessário.

— Uau — brinquei.

— Coisa de mãe — ela explicou, dando de ombros.

Dentro do baú havia fotos de tudo que é tipo. Polaroids, ensaios fotográficos, álbuns de qualquer evento imaginável.

— Posso ficar com essa? — perguntei, apontando para uma foto da Bia na infância visitando a Sagrada Família.

Ela sorriu.

— É... Vou tirar uma cópia... Para o trabalho — justifiquei.

Nunca devolvi aquela foto.

— Claro — ela respondeu enquanto tirava a foto do álbum. — Você gosta mesmo da Espanha, em?

— Eu gosto da Espanha sim, mas o que eu gostei mesmo foi da sua cara na foto. É uma das fotos em que você está mais feliz.

Ela sorriu e contou a história por trás da foto.

— Verdade. Meu pai ainda não tinha sofrido o derrame. Aconteceu um ano depois dessa viagem. Ele ficou cheio de sequelas aqui em casa por uns três anos, depois faleceu.

— Sinto muito. Deve ter sido muito difícil para você.

— Não tem problema. Isso acontece com mais famílias do que eu imaginava. E esse trabalho pode ser uma oportunidade para falar mais sobre meu pai com Dra. Emília.

— Vocês não falam muito sobre isso? — fiquei intrigado.

— Ela é muito ocupada... — aquele assunto sempre deixava Bia triste.

— É uma pena — fiquei desconcertado.

— Não se preocupe. As partes tristes também fazem parte da nossa biografia, não é mesmo? — ela falou aquilo para me tranquilizar quando me viu suando frio.

Esses eram os momentos, quando ela falava coisas que não tinham nada a ver com química, biologia ou matemática, em que eu a achava mais inteligente. Nossa conversa era tão boa que nem percebi que duas horas haviam se passado e a mãe dela não havia chegado.

— Vamos jantar. Minha mãe não está respondendo as mensagens e acho que ela pode demorar mais um pouco — o humor de Beatriz estava mudando.

Como a senhora que cuidava do apartamento já tinha ido embora, arrumamos a mesa. Beatriz deixou tudo bonito, mais elegante do que eu estava acostumado. Jantamos um risoto de carne seca delicioso. Tinha tudo para ser um jantar incrível, mas ela tinha sido tomada por uma aflição repentina e olhava no celular a cada dois minutos.

— Desculpa por isso — ela afirmou. — Às vezes, minha mãe tem que ficar no plantão. Deve ter acontecido alguma coisa.

— Não tem problema. Essas coisas acontecem.

Terminamos o jantar e fomos para a sala. Fiquei ainda mais fascinado pelas obras de arte que a mãe dela tinha colecionado. Acho que só aquelas obras de arte poderiam comprar meu apartamento inteiro.

— Sinceramente? Acho que as artes e a medicina viraram a vida dela depois que meu pai foi embora e ela ficou sozinha — Bia desabafou.

— Ela não ficou sozinha, ela tem você — lembrei.

— Verdade, mas não muda o fato de que ela me criou sozinha. E ainda conseguiu se consagrar na profissão. Ela é incrível.

— Você admira muito a sua mãe, não é?

— Demais — Bia respondeu e desbloqueou a tela de seu celular mais uma vez, ficando desapontada quando não encontrou nenhuma notificação de mensagem.

Ali, admirado pela beleza das obras de arte e daquela garota que parecia ser muito mais forte que eu, finalmente tive um pouco mais de coragem para dizer em voz alta o que eu estava sentindo.

— Beatriz Nogueira, 17 anos, filha de uma médica, quer ser médica, extremamente inteligente, teimosa, não tem irmãos, já viajou para a Espanha, se tivesse um superpoder seria teletransporte, prefere cachorros a gatos... Eu acho que já te conheço um pouco — falei, meio nervoso, do nada, sem saber onde aquilo ia dar.

— Impressionante — ela disse, de um jeito meio sarcástico. 

— Tem também as coisas que você não sabe que é. Coisas que só dá para perceber quando a gente encontra as pessoas que te conhecem bem. Quer ouvir?

Ela fez que sim com a cabeça.

— Você é do tipo de pessoa que tem tudo que precisa, mas entende que nem todo mundo vive essa mesma realidade e faz coisas para mudar isso. E você ajuda as pessoas que ama mesmo quando isso te prejudica. Você não tem irmãos biológicos, mas trata seus amigos como irmãos e você...

Ela estava do meu lado do sofá, tão tensa quanto eu, olhando diretamente nos meus olhos, quando o celular tocou. Meio desnorteada, pediu licença e foi atender na cozinha. Deu para ouvir algumas partes da conversa.

— Sério mãe? Justo hoje? Ele está aqui há horas e eu estou morta de vergonha. Foi só o que eu te pedi...

Ela voltou com uma expressão desolada, sem conseguir nem me encarar diretamente.

— Desculpa, Felipe, mas ela não poderá vir. Depois a gente remarca — avisou.

— Não tem problema, teremos outras oportunidades — tentei mostrar que estava tudo bem. Eu só estava feliz em poder conhecê-la melhor, independentemente da ausência da mãe dela.

— Doutora Emília Nogueira está ocupada demais hoje — Bia estava frustrada. Acho que criou expectativas das histórias que sua mãe contaria para nós. Ela também queria fazer perguntas para a mãe, era só uma estratégia.

— Tudo bem. De qualquer forma, já está tarde. Acho melhor eu ir — preferi dar algum espaço para ela. Pensei que uma pessoa como eu não ajudaria muito. Beatriz já tinha seus próprios problemas e eu só sabia remoer os meus. Ela merecia mais do que isso, merecia alguém que soubesse o que falar em momentos difíceis.

 — Certo — nem parecia ela mesma falando, estava cabisbaixa e pensativa.

Beatriz me deu um abraço rápido e me levou até o elevador. Como aprendi com a Vera, covarde que não admite isso é duas vezes covarde. Então eu admito. Admito que eu queria dizer outras coisas. Queria dizer muitas outras coisas sobre a Beatriz, olhar nos olhos dela e falar: você é o tipo de pessoa que me faz mudar de ideia, me faz ter mais coragem, me faz querer ficar. 


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Notas finais do capítulo

I don't mind spendin' everyday
Out on your corner in the pourin' rain
Look for the girl with the broken smile
Ask her if she wants to stay awhile
https://youtu.be/nIjVuRTm-dc



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