Por sua causa escrita por Elie


Capítulo 10
Janaína


Notas iniciais do capítulo

Você também tem que fazer as coisas por você.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/701207/chapter/10

GRUPO – 4Beatles

Renan (17:41) – Aquela banda cover dos The Kllers vai tocar amanhã. Animam?

Janaína (17:44) – Eu topo

Felipe (18:03) – Nem posso. Vou trabalhar amanhã.

Janaína (18:07) – Vamos @Vera?

Vera (06:20) – Não dá, gente

Renan (07:16) – Fica para a próxima, então

 

Apesar das minhas tentativas de seguir como se nada tivesse acontecido, meus pensamentos estavam uma confusão só. Por um lado, eu queria ignorar Silas para sempre, mas por outro lado, eu sabia que ele era uma boa pessoa e me senti mal por ter sido grossa. O problema era que se o segredo que guardei comigo durante todo o ensino médio estivesse nas mãos do Silas, eu provavelmente estava ferrada. Fiquei tão estressada que aquilo tirou meu sono por três dias seguidos.

Enquanto eu assimilava o que tinha acontecido e pensava em alternativas para manter Silas quieto, ignorei todas as mensagens com pedidos de desculpa, mas uma hora eu teria que encarar a realidade e terminar aquele trabalho. Com o tempo, fui dando um pouco menos de importância para o assunto, até que Silas me enviou uma mensagem que me deixou pensativa.

  Silas (01:24) – Olha, sinto muito se você acha que eu passei dos limites, mas agora está na hora de você ouvir umas verdades. Eu cansei. Primeiro: você não precisa se esconder. Você esconde seu cabelo nesse coque horroroso diariamente, esconde suas poesias, esconde até os seus sentimentos desse jeito. Chega! Ninguém merece isso. Se quiser alguém que seja verdadeiro contigo e te fale umas verdades quando você precisa, vamos finalizar a gravação na minha casa. Se quiser que tudo permaneça como está, continue fazendo a mesma coisa.

Silas (01:57) – Depois não diga que eu não avisei.

Silas (01:58) – Responda e pare de besteira

Jana (02:43) – Tudo bem. Até amanhã, depois da aula.

Silas (06:46) – Aleluia!

Silas (06:47) – Acho bom você trazer a poesia.

Naquela noite também não dormi muito tempo. Peguei meus cadernos velhos e escolhi um poema antigo que eu tinha escrito sem saber que um dia precisaria dele. Até ali eu estava decidida a ler, mas quando me lembrei de Silas falando sobre a importância de não me esconder, fiquei nervosa e duvidei da minha capacidade. Tudo que vinha à minha cabeça eram as possíveis piadinhas que meus colegas provavelmente fariam sobre mim.

Foi difícil admitir que eu não estava aguentando mais. Era meu limite, mas eu não queria ser a pessoa chata que atrapalha o relacionamento dos outros. O problema é que talvez eu já estivesse sendo essa pessoa desde o início, mesmo sem a intenção.

***

— Acho que recitar seu poema é uma ótima ideia. É algo pessoal e que poucas pessoas sabem sobre você — Júlia sempre era gentil e eu sempre desconfiava que ela estava apenas tentando ser legal quando dizia coisas assim.

— Por favor, Jana. Nosso trabalho vai ser o melhor se você contribuir — Silas acrescentou. Só percebi o quão perfeccionista ele era depois de conviver um dia inteiro assistindo-o orientar Júlia sobre o enquadramento ideal.

Não nos falamos no colégio nesse dia. Silas percebeu que eu estava fugindo dele e sabia muito bem por quê. Até ali, não tocamos no assunto Renan, provavelmente devido a presença de Júlia. Mesmo quando ela saia da sala, meu amigo falava de outras coisas, provavelmente com receio da minha reação. Por causa desse espaço que tive, fiquei muito mais à vontade.

— Não sei se consigo ler isso na frente de pessoas. É muito pessoal. E não quero ter que colocar o vestido de novo — choraminguei.

— Eu deixo você gravar com essa roupa— ele disse, impacientemente.

Pensei por uns dez segundos e fiz que sim com a cabeça. Uma onda de coragem me dominou naquele breve período. Jeans e camiseta eram minha zona de conforto e se eu fizesse aquilo de uma vez por todas, talvez Silas desistiria de fazer comentários embaraçosos. Isso era o que eu acreditei. No fundo, acho que eu queria ser ouvida.

— Vocês têm algum violão por aí? — perguntei.

Os irmãos comemoraram e eu fiz uma expressão como de quem pede por socorro. Quando Silas falou “Gravando!”, comecei a recitar aquelas linhas, com um dedilhado leve de violão por cima. Errei a música algumas vezes, mas ninguém me apressou. Quando me senti confortável para iniciar, falei aquelas palavras que já estavam criando pó nos meus cadernos velhos.

“Não é simples aceitar coisas difíceis de mudar.

Quando foi que eu me deixei para trás?

Amando sem raciocínio e me perdendo no fascínio,

esquecendo quem eu já fui.

Eu me perdi no teu silêncio.

Fui covarde, tive medo

e agora me pergunto: para onde vou?

Construindo meu destino,

solitária ou contigo,

sei que eu serei o meu

                                       primeiro amor”.

Minha garganta ficou seca e tive a sensação de que minha voz falhou em algumas palavras. Não sei se foi impressão ou se fiquei nauseada de verdade. Os segundos entre o barulho do botão da câmera e o tempo em que eles esboçaram alguma reação pareceram intermináveis. Poucas vezes me expressei de forma tão transparente, então não entendo como pude me sentir tão ridícula cantarolando aquelas palavras.

— Janaína do céu, isso precisa ser compartilhado com o mundo — Silas ficou ainda mais animado em me expor. Quase saí correndo.

— Como se o mundo quisesse ouvir mais adolescentes rejeitadas — ironizei.

— Não precisa ter vergonha, Jana. Você escreve muito bem. E rejeição é um tema universal. Quem nunca levou um pé na bunda ou teve um amor não correspondido? — Júlia acrescentou. Ela era três anos mais nova que eu e muito mais madura que eu era quando tinha a idade dela.

Não falei para Júlia, mas, na realidade, eu nunca tinha levado um pé na bunda, afinal de contas até ali eu nunca tinha exposto meus sentimentos para ninguém. Não sei como, mas isso fez eu me sentir menos pior.

— Isso vende, meu amor. Isso vende! — ele brincou.

— Bom saber. Eu tenho uns boletos para pagar — brinquei.

Combinamos de dar uma olhada no material antes de gravar a parte dele da entrevista, então fomos até um quarto que Silas havia transformado num escritório. Fiquei surpresa com os muitos discos de rap, certificados de olimpíadas de química, troféus de campeonatos de vôlei e um unicórnio de pelúcia no meio disso tudo. Júlia me disse que não gostava de ir até aquele cômodo porque era área proibida para irmãs caçulas, o que denunciou que Silas era realmente dono do unicórnio colorido.

— Colecionando os caras gatos da copa? — perguntei, quando vi dois álbuns de figurinha de copas passadas completamente preenchidos.

Ele respirou fundo, revirou os olhos e bufou, sem olhar na minha direção, demonstrando sua irritação comigo enquanto mexia nos arquivos. Parei de mexer nas coisas dele assim que percebi sua chateação.

— Não está mais aqui quem falou — respondi. Achei que ele riria comigo, já que sempre fazia piadinhas sobre cuecas volumosas.

— Desculpa, não foi nada. Dia difícil — ele explicou.

Lembrei-me de que os meninos fizeram piadas a respeito da jaqueta customizada no intervalo das aulas, mas Silas sempre ria dessas brincadeiras. Ele tinha um ar de quem não se importava com opiniões alheias. Silas era o tipo de pessoa que tinha confiança o suficiente para pintar o Abaporu nas costas e sair desfilando pelo mundo. Eu queria ser mais como ele e, portanto, não conseguia perceber quando algo o atingia.

— Não sabia que unicórnios tinham dias difíceis — brinquei, falando com a pelúcia, tentando deixar o ar da conversa mais leve. — Foi algo que aconteceu no colégio?

— Besteira — Silas tentou encerrar o assunto. Depois de tudo que ele tinha dito para mim em todos aqueles dias, eu não ficaria calada.

— Você sabia que o objetivo deste trabalho é conhecer as pessoas melhor?

— Juro que não é nada — ele continuou sendo evasivo, mas eu não permiti.

Cruzei os braços e bati os pés no chão, sinalizando que eu queria uma resposta.

— Estou esperando, senhor unicórnio — continuei brincando.

— É que eu realmente amo futebol. Não é segredo para ninguém que eu tenho atração por alguns jogadores, mas eu não gosto de futebol por causa disso. Eu gosto de como o time se junta por um objetivo só, acho que driblar é uma arte e eu amo como um monte de gente diferente se junta com uma torcida em comum — ele engoliu seco após me dizer isso. Não me lembro de ter visto o Silas tão sério antes. Deixei a pelúcia de lado assim que notei que meu amigo estava realmente aborrecido.

— Entendo — eu disse isso enquanto mexia nos álbuns. A maioria dos CDs eram de rap antigo.

— Sabe, é  futebol. Nem tudo tem que ser sobre a minha sexualidade.

Sorri para ele, tentando ser um pouco mais empática. Nem perguntei nada sobre música, eu já havia presumido que ter atração por homens não tinha nada a ver com gostar de Celine Dion ou Jay Z. Na verdade, se me perguntassem, eu diria que sempre soube disso, mas muitas vezes nossas atitudes só seguem pressuposições superficiais.

Silas não era o cara simpático das jaquetas extravagantes e sapatos coloridos, pelo menos ele não era só isso. Silas era o cara simpático das jaquetas extravagantes e sapatos coloridos que também tinha dias difíceis, era fã de futebol e de moda, gostava de ouvir rap antigo, ganhou vários troféus de vôlei, foi campeão de olimpíadas de química e fazia piadas todas as horas. Ele era tudo isso e mais um monte de coisas. Isso estava claro para quem quisesse ver, mas a maioria das pessoas só consegue ver as letras mais chamativas nas embalagens, em fontes garrafais e que são feitas para vender o produto. No caso dele, era o que o fazia ser aceito.

— Você tem razão. É difícil desapegar de estereótipos. E... Não fica com raiva, mas eu acho que é você quem passa essa imagem — expliquei.

— Hoje foi um dia difícil porque pegaram minha jaqueta. Não por causa da jaqueta, mas porque eu tinha ido lá falar do pênalti marcado injustamente no clássico de quarta-feira, que eu assisto toda semana com meu pai. É difícil não ser meio termo e eu não quero ter que mudar o jeito que me visto por causa disso. Eu gosto de falar sobre as tendências de maquiagem e eu gosto de discutir sobre futebol. É como se eu não pudesse ser completo em nenhum lado. Não vejo a hora da escola acabar para conhecer gente diferente, que goste de mim desse jeito. Isso é um saco.

— Poxa... Não imaginava que você se sentia assim. Só posso dizer que eu gosto de você exatamente do jeito que é, até depois de me abusar por horas seguidas. Só que eu não sei absolutamente nada sobre futebol, então acho que vai ter que arrumar outra pessoa para conversar sobre o jogo — tentei mostrar que eu estava disposta a escutá-lo.

— Valeu — ele sorriu. — Deixa isso para lá. Todo mundo tem seus altos e baixos. Agora é hora desta estrela aqui brilhar no nosso talk show — ele finalizou, piscando para mim.

Dessa vez, sugeri que ele me emprestasse um smoking ou terno, para que eu pudesse ser a próxima Ellen Degeneres. Silas amou a ideia e conseguiu algum terno velho do pai dele, que por acaso estava cheirando à poeira. Prendi meu cabelo num coque baixo e escrevi algumas perguntas novas no meu cartão. Quando tudo estava preparado, chamamos Júlia para nos ajudar novamente.

— Boa noite, pessoal. Bem-vindos ao “Tudo o que você gostaria de saber”. Quem rufem os tambores — disse isso enquanto batuquei na mesa. — Recebam o incrível, o extraordinário, o talentosíssimo Silas Joaquim Barros. Uma salva de palmas!

Júlia aplaudiu enquanto seu irmão caminhava todo cheio de pose em direção à cadeira ao lado da minha.

— Seja bem-vindo, Silas. E vocês? Ansiosos para saber tudo que queremos saber sobre o Silas? — visualizei uma plateia imaginária.

— Obrigada, Janaína. É um prazer estar aqui hoje.

— Preparado?

— Preparadíssimo!

— Primeira pergunta, então! Soube de uma coisa que pode surpreender nossa audiência. É verdade que você já foi um grande campeão de vôlei?

— Sim, é verdade. Ganhei alguns campeonatos escolares, mas eu já me aposentei dessa carreira.

— Muito interessante. Temos um campeão aqui, pessoal. E já que descobrimos que você não vai mais seguir carreira no esporte, quais os próximos passos para o futuro?

— Bem... Definitivamente não tem nada a ver com vôlei. Eu estou querendo investir em grandes indústrias e ser um engenheiro químico.

— Olha, que surpresa. Acho que é uma novidade até para os seus fãs mais antenados. E falando em antenados, fale um pouco sobre a sua relação com a moda.

— Eu sempre gostei de moda, é algo que me relaxa. Gosto de ler sobre o assunto quando estou estressado. E ajudar os meus amigos também é demais. O que eu acho sobre a moda é que deve ser algo divertido e não uma prisão. As roupas e os acessórios devem te fazer sentir bem, valorizar seu rosto, seu corpo, mostrar sua personalidade... Não deveria ser sobre quem pode pagar mil reais num cinto.

— Que interessante. Estão vendo, pessoal? Façam como o Silas e sigam suas paixões antes de tudo. Poderíamos continuar com as perguntas, mas agora tenho que interromper o quadro para avisar que teremos uma convidada especial conosco. Júlia Barros, pode vir!

Júlia e Silas enrugaram a testa, sem entender por que eu havia inventado aquilo sem avisá-los. Ela fez que não com a cabeça, mas continuei insistindo para que ela trocasse de lugar com Silas.

— Tudo bem. Até que vou gostar de falar os podres dele — ela falou.

— Para que chamar ela? Isso aqui é sobre mim — ele reclamou.

— Exatamente — respondi. — Agora vá para trás da câmera. Eu li um poema extremamente pessoal hoje, é o mínimo que você pode fazer. Nosso trabalho vai ser o melhor se você contribuir — repeti o que ele me disse antes.

Contrariado, ele foi para o lugar dela e Júlia fez uma expressão maquiavélica e engraçada.

— Bem-vinda, Júlia. Para quem não sabe, ela é a irmã caçula do Silas. Hoje o programa será um pouco diferente e a pergunta dos fãs vai ser respondida por ela.

— Estou muito feliz por estar aqui — ela falou olhando diretamente para ele. — Ontem Silas comeu o último pedaço do bolo de chocolate que minha avó mandou para mim, então só falarei verdades.

— Hum! Bom saber — eu ri. — A pergunta selecionada pela produção foi a seguinte: qual foi o momento mais embaraçoso do Silas?

— Fácil. Uma palavra: Tony — ela respondeu.

— Ah, não. Eu vou parar de gravar isso. Ninguém precisa saber dessas besteiras — ele interrompeu.

Cruzei os braços e fiz uma expressão séria para ele, esperando-o parar de falar e voltar para o lugar dele.  Júlia adorou a situação.

— Foi há uns cinco anos atrás. Silas começou com uma história de que havia uma menina chamada Antônia na sala dele, que ele gostava — ela continuou, mas já não se aguentava mais de rir.

— Quer dizer que ele já gostou de uma menina? — perguntei, admirada.

— Minha mãe descobriu que não tinha nenhuma Antônia na escola dele, mas o melhor amigo do Silas se chamava Tony. Tony, apelido de An-tô-nio!

Tentei me segurar, mas comecei a rir junto.

— Acho que acabamos por aqui. Claro que esta história vai ser cortada — ele chiou, já desligando a câmera.

— Só mais uma pergunta! — implorei.

— Tudo bem, mas dessa vez é sério — ele disse, olhando nos olhos da irmã.

Silas ligou a câmera novamente e levantou o polegar para informar que tudo estava certo. Júlia já estava vermelha de tanto rir.

— Pode mandar uma mensagem para o seu irmão, Júlia?

— Oi, Silas — ela falou, olhando nos olhos dele, meio escondidos por trás da câmera. — Eu não queria dizer que você é incrível, porque você se acharia demais... Só que a verdade é essa: você é incrível. Eu sei que você passou por alguns momentos difíceis sozinho, porque às vezes precisamos enfrentar algumas coisas sozinhos, mas você tira isso de letra. Você é uma das pessoas mais fortes que conheço... E você não deixa ninguém na mão. Você é meu irmão favorito, apesar de ser o único — ela gargalhou. — Detesto admitir isso, mas não te trocaria por nenhum outro irmão no mundo. O mundo precisa de mais Silas — ela concluiu.

Dito isso, Silas saiu de trás da câmera e foi abraçar a irmã, comovido com o que ela tinha dito.

— Não ache que eu vou te perdoar por ter contado a história do Tony, porque vai ter volta — ele brincou.

— Eu sei disso — Júlia aceitou.

— Bem, nessas horas eu acho um saco ser filha única — falei.

Júlia me puxou pelo braço e me incluiu no abraço de Silas.

— Essa parte pode deixar nas filmagens — ele comentou, fazendo-nos rir.

Continuamos as gravações e, como sempre, foi bem divertido. Descobri coisas sobre ele que eu não imaginava, além do que eu já havia descoberto. Silas era surpreendente. Ele ama animais e gosta de ler livros do Sherlock Holmes. Sua série favorita de todos os tempos é Breaking Dead. Ele adora mocassins desde criança e acha que foi alfaiate em outras vidas, porque ele acredita em vidas passadas, como também acredita em extraterrestres e universos paralelos.

Arrumamos tudo quando terminamos o trabalho. Acho que eu já tinha material suficiente, mas eu não queria que acabasse ali. Eu havia me divertido tanto que tinha perdido a noção de tempo e até esquecido a “questão Renan”. Por mim, poderia gravar aquele talk show por muito mais tempo e até fiquei meio triste enquanto desmontava os cenários.

— Vai ficar demais — Silas deixou o pensamento escapar.

Júlia havia saído, pois tinha curso de inglês, então ficamos mais à vontade para conversar.

— Vai sim. E obrigada por respeitar o meu espaço — falei, quando lembrei que ele não havia tocado no famigerado assunto.

Ele olhou para mim e sorriu, logo entendeu sobre o que eu estava falando. Soube na hora que ele não concordava comigo, mas Silas sempre aceitou minhas decisões, ao mesmo tempo em que nunca omitiu suas opiniões sobre elas.

— Só estou esperando a coragem chegar — expliquei.

— Vai por mim... Coragem não chega sozinha, é você que tem que querer.

— Certo — respirei fundo. — Vou falar em algum momento mais adequado.

— Espero que sim. E você tem que fazer isso por você.

— Sei disso. Você está certo, mais uma vez. Eu preciso ouvir isso.

— Bem, estarei aqui quando precisar desabafar.

— Acho que agora eu tenho meu melhor amigo gay — brinquei.

Ele se voltou para mim com o rosto sério e meio desapontado. Eu já tinha entendido tudo só pela sua expressão e já ia pedir desculpas por tratá-lo como um acessório.

— Agora você tem um amigo, Janaína — ele respondeu, rindo com o canto da boca, mas mantendo o ar de bronca.

E foi ali que entendi que só aquelas palavras eram suficientes e que muitas vezes adjetivos podem ser desnecessários. A vida é tão maravilhosa que nos permite existir nas mais variadas formas e preferências. Em vez de colocar todos em caixinhas com etiquetas, é sempre mais divertido ir descobrindo aos poucos.

— Sim. Eu ganhei um amigo — sorri.

***

Eu podia dizer que Felipe era meu amigo, mas a verdade é que nunca havíamos conversado sozinhos em muito tempo. A presença dele me deixava confortável quando estávamos em grupo, por motivos óbvios, e aquilo era suficiente para me fazer gostar da sua companhia. Nesse dia, entretanto, Vera havia faltado e Renan tinha ido comprar algo na cantina. Como Beatriz tinha se distanciado um pouco do Felipe, acabou que ficamos conversando sozinhos.

— A Vera me disse que ia para a casa da avó dela, no interior — ele explicou.

— Está tudo certo com ela? — indaguei.

— Na medida do possível. É que um dia desses foi aniversário do Marcelo e ela ficou bem chateada.

— Poxa. Espero que esteja tudo bem de verdade.

Eu a conhecia. Havia algo errado com ela. Vera não era de faltar, ainda mais no último semestre. Ela estava mal e aquela era provavelmente a pior hora para bagunçar as coisas. Talvez eu devesse manter meu silêncio e esperar o colégio acabar para nunca mais ter que me preocupar com aquela história. O inconveniente é que dessa forma eu também nunca saberia o que aconteceria se eu falasse a verdade.

— O Renan está sabendo de alguma coisa? — perguntei.

— Tanto quanto nós.

— Isso é uma droga. Ela sempre faz tudo para ajudar quando alguém está precisando. Talvez seja hora de fazermos alguma coisa.

Nessa hora, Beatriz passou por nós e não falou nada. A frustração de Felipe era tão óbvia como seu encanto pela garota.

— Problemas na “perfeitolândia”? — perguntei.

— Essa é boa. Ela não tem nada de perfeita. E nem eu.

Por um momento achei que ele estivesse falando mal de Beatriz, mas era o contrário. Ele falou aquilo com admiração. Aposto que Felipe gostava até dos defeitos dela.

— Vai falar com ela — aconselhei. — Está na cara que você também gosta da “imperfeitolândia”.

Eu sabia disso porque eu também gostava das imperfeições do Renan. Do jeito até meio infantil como ele conseguia discutir sobre qualquer assunto, desde histórias em quadrinho até teorias existenciais. Eu o conhecia tão bem que até entendia por que ele ficava diferente na presença da Vera, do mesmo jeito que eu ficava diferente perto dele.

—  Falar é sempre o melhor remédio, não é? — ele indagou.

Fiz que sim com a cabeça. Quando olhei para Felipe, parecia que ele estava esperando uma reação minha, como se fosse uma indireta. Pensei que eu provavelmente estava enlouquecendo com toda aquela história.

 

***

Fiquei sozinha por alguns minutos quando Renan e Felipe foram ao banheiro. Vera faltara mais uma vez nesse dia e essa era uma daquelas situações chatas quando eu não tinha mais ninguém com quem conversar. Logo lembrei de Silas, afinal eu já me sentia confortável perto dele, apesar de ter que conviver com Nina e Rafaela coladas no meu amigo. Elas não eram insuportáveis, mas eram bem diferentes de mim. Resolvi arriscar.

— Oi, gente — falei, interrompendo a conversa.

— Oi — eles falaram, surpresos com a minha chegada.

Acho que eles também não tinham nada contra mim, mas não esperavam que eu me incluísse no grupo. Eram pessoas legais, mas senti como se o Silas não estivesse sendo ele mesmo, como se estivesse mudando um pouco para se encaixar melhor ali.

— Quarta-feira vai ter festa no Refúgio. Trinta e cinco reais, vodka liberada. Vai ser legal, vamos? — Rafaela convidou.

— Aquele lugar não é meio hipster demais? — Nina perguntou.

— Vai ser a noite do funk. Vai ser incrível! Vamos lá, eu sei que vocês amam descer até o chão — ela explicou.

Sei que ela não estava falando comigo, porque funk carioca definitivamente não é o meu estilo, mas eu fiquei surpresa em saber que o Silas concordaria. Dias antes ele havia me dito que odiava lugares apertados e lotados de gente.

— Vamos colocar esse lugar para baixo então — ele comentou.

— Se ele vai, eu vou — Nina topou.

— Jana? — Rafaela foi apenas educada ao me incluir.

— Obrigada gente. Tenho compromisso com a Netflix na quarta-feira.

— Deixa de ser chata, Janaína — Silas tentou ser brincalhão, mas não achei graça.

Olhei para ele e ergui apenas uma sobrancelha, como quem diz “Quem não te conhece que te compre”. Durante os trinta minutos que passamos ali só conversamos sobre aquela festa, sobre como Rafaela tinha ficado incrível com a bota nova e sobre garotos com quem Nina havia ficado. Nada sobre esportes ou música que Silas gostava de verdade ou em como ele tinha se destacado na aula de química ou em qualquer outro assunto que ele falava quando estávamos a sós.

Quando o sinal tocou, foi quase como se eu tivesse comemorado por ter que voltar às aulas. As meninas foram ao banheiro antes de ir para sala.

— Vou acrescentar no meu trabalho que você ama funk carioca — zombei.

— Você sabe que não é meu programa favorito, mas é o que temos para quarta-feira.

— Pensei que fosse dia de assistir ao clássico com seu pai.

Ele começou a andar mais rápido, mas eu sabia que só estava fugindo. Quando entramos na sala, por ironia do destino, os meninos estavam marcando de se encontrar na casa do Daniel para assistir ao jogo. Não era um jogo qualquer, era um desses jogos entre times rivais que decidem o campeonato.

— Amei o laço no pescoço — era Flávio tentando ser engraçado. Novamente, sem sucesso.

Silas deu um sorrisinho sem graça e se dirigiu a sua carteira sem olhar para trás. Mesmo não sendo caminho para o meu lugar, passei lá antes de me sentar.

— Você também tem que fazer as coisas por você — falei e fui direto para o meu lugar. Foi minha vez de nem olhar para trás.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

I sing for love, I sing for me
I shout it out like a bird set free
https://youtu.be/KrT_0J6m6y8



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Por sua causa" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.