Por sua causa escrita por Elie


Capítulo 6
Silas


Notas iniciais do capítulo

Eu queria ajudá-la, mas só piorei as coisas.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/701207/chapter/6

Passei horas treinando no caderno antes de riscar minha jaqueta preferida. Minha irmã me ajudou com algumas tintas acrílicas e habilidade manual um pouco melhor que a minha, mas fui eu quem fez a maior parte das coisas. Escolhi Tarsila do Amaral porque gosto de referenciar arte brasileira. Abaporu dispensa apresentações e minha jaqueta ficou mais incrível ainda.

— Júlia, dá para tirar uma foto minha? — minha irmã era minha fotógrafa oficial.

Arrumei um pouco meu cabelo com os dedos, fiz uma pose olhando para trás, meio que por cima do ombro, e tentei parecer confiante. Após umas cinco tentativas, finalmente escolhi uma foto que conseguiu mostrar bem a peça que fiz e a postei assim que pude. Os comentários foram além das minhas expectativas. É sempre bom quando alguém aprecia algo que você produz.

@MeNina Meu amigo é um arraso!

@Looksbafo Ameeeeeeeeeei

@JuliaBarros02 Agradeça à fotógrafa

@LinLoves TARSILA  Eu quero uma!

 Na internet é mais fácil. Como não sou uma pessoa pública, ninguém nunca se atreveu a fazer comentários maldosos. Na vida real também nunca fui atacado ou expulso de casa por ser do jeito que sou, o que às vezes me faz perceber que, apesar de tudo, sou um privilegiado. Mas também não é tão simples. Às vezes, basta um olhar seguido de um sorriso sarcástico para eu saber que não sou bem falado no colégio, por exemplo. Sorte a minha que nunca deixei me intimidarem por isto.

Pelo menos eu tinha minhas amigas, que sempre me pediam conselhos e faziam-me sentir necessário. Bruna, Nina e Rafa estudaram comigo desde a terceira série, então basicamente passamos pela puberdade juntos. Acho que nos aproximamos devido a proximidade de nossas carteiras e permanecemos amigos por toda minha vida escolar. Eu sempre era aquele que dava conselhos amorosos, apesar de nunca ter tido um relacionamento com outro ser humano, e elas sempre souberam que eu gostava de meninos. Para a minha sorte, meus pais eram pessoas esclarecidas e nunca me trataram de forma diferente. Eu sabia que não podia reclamar.

Tem uma foto minha exposta na sala em que estou de batom vermelho com os dentes sujos e as bochechas borradas, de quando eu tinha uns seis anos. Esse foi um dia que me marcou. Minha mãe deixava suas maquiagens à mostra e fiquei fascinado pelo vermelho vibrante que descobri num daqueles tubinhos. Acho que destruí o batom, mas dava para ver que eu fiquei satisfeito com a arte que tinha feito, pena que minha alegria durou pouco. Minha avó chegou em casa e deu um tapa na minha mão quando viu o que eu fiz.

— Garoto maluco! Pare de mexer nas coisas da sua mãe!

Ao ouvir isso, minha mãe correu em nossa direção e, ao nos encontrar, deu uma gargalhada tão alta que deixou vovó ainda mais irritada.

— Você quer que seu filho se transforme no Paulo? — minha avó gritou.

Isso tirou o sorriso da minha mãe. Sem falar nada, ela pegou um pedaço de lenço e começou a limpar as bordas dos meus lábios, todas borradas de vermelho. Fiquei triste na época porque achei que ela estava concordando com a minha avó.

— É Paula — mamãe a corrigiu, extremamente aborrecida, enquanto terminava de limpar as bordas da minha boca. Isso me deixou assustado.

Não tive a oportunidade de conhecer Tia Paula. Meu pai contou que ela se afastou da família porque minha avó não conseguia aceitar que pessoas com fenótipo masculino se considerassem mulheres, mas soube que sempre visitávamos minha tia na cidade vizinha quando tínhamos essa possibilidade. Infelizmente, ela morreu quando eu tinha quatro anos de idade, então não tenho lembranças com ela. Tudo que me restou de Tia Paula foi uma foto em que ela está com um largo sorriso amarelado, que minha mãe guarda no espelho de sua penteadeira.

— Não quero que você mexa mais nas minhas coisas sem a minha permissão, Silas — mamãe advertiu, assim que minha avó se retirou.

— Desculpa, mamãe — as minhas memórias eram incertas, mas lembro que eu fiquei com medo da minha avó.

— E você ficou parecendo um palhaço — ela deu uma breve risadinha ao dizer isso. — Vamos tirar uma foto disso?

Saí emburrado na foto porque achei que minha mãe estava tirando sarro de mim, mas hoje sei que ela tirou a foto por minha causa. Aquela imagem se tornou um lembrete diário do que Tia Paula fez por mim. Mesmo sem ter me conhecido, ela ensinou aos meus pais que as pessoas nascem em diferentes formas e com diferentes gostos. Tia Paula os ensinou que, não importa as opções que façam, as pessoas que te amam são a coisa mais importante que você tem. E é por causa da Tia Paula que eu não tive que sair do armário para ninguém, quando todos sabiam que nasci fora dele.

Devido a meus hábitos de usar maquiagens e roupas da minha mãe, além de dar conselhos de moda para minhas amigas, as pessoas achavam que eu queria estudar moda. Meu sonho verdadeiro era me tornar engenheiro químico. Sempre fui um dos melhores alunos e adoro estudar química, então foi uma descoberta natural. Estudei bastante para o vestibular e estava confiante que passaria no curso que eu queria, mas as minhas habilidades para escolher bons looks faziam as pessoas esquecerem que eu provavelmente era um dos melhores alunos da sala.

Sempre fui seguro, confiante. Sempre soube quem eu era. Ao menos era o que eu pensava.

— Eu e o Flávio já estamos com o trabalho direcionado. Nunca pensei que ele teria uma boa ideia, mas foi o que aconteceu — Rafaela falou.

— Nossa! Isso sim é uma surpresa. Ainda não fiz nada e o Mário provavelmente não vai acordar nunca — Nina resmungou.

— Falando nisso, tenho que correr para terminar logo esse trabalho. Vou ali falar com a Janaína para resolver o que faremos — falei.

Como eu estava ocupado com o vestibular, quase não dei atenção ao trabalho de redação, mas estava disposto a fazer uma boa biografia. A professora Amélia era ótima e eu não queria decepcioná-la bem no último trabalho. Peguei meu caderno e fui em direção a Janaína para combinarmos o que faríamos.

Como a minha dupla era uma pessoa fácil de lidar, agradeci por não ter acabado com um dos meninos. Nem sei o que eu faria se eu tivesse que falar sobre o Mário ou o Flávio sobre a minha história, meus hábitos e minha família. O problema em fazer aquele trabalho com Jana é que eu não sabia como me aproximar. Quase não se ouvia a voz dela durante a aula, era como um fantasma. Conversar com ela era garantia daqueles momentos constrangedores em que ninguém tem assunto por um bom tempo.

— Jana?

— Oi, Silas.

— É sobre o trabalho de redação. Precisamos nos reunir — falei.

— Eu estava pensando na mesma coisa — Jana tinha uma voz meiga.  

— Já estamos um pouco atrasados. Que tal gravarmos um vídeo?

— Acho que seria legal fazer algo diferente. Que tal uma entrevista num talk show? Acho que ninguém fez isso — nunca pensei que ela sugeriria algo assim.

— Boa ideia. Podemos nos reunir na minha casa, tem um bom espaço lá.

Fiquei muito surpreso com a ideia, pois nunca pensei que Janaína toparia aparecer num vídeo diante da turma inteira. Combinamos de escrever nossas perguntas e revezaríamos como apresentador do programa. Nosso talk show se chamaria “Tudo o que você gostaria de saber”. Fiz um cenário falso e decorei duas canecas com a logo que eu tinha desenhado. Seria um escândalo e garantiria uma boa nota.

O maior trabalho não era nem o estúdio improvisado, mas as perguntas que eu faria. Eu não queria perguntar onde ela tinha nascido, a profissão dos pais delas ou essas coisas bestas. Minha ideia era mostrar para sala o que havia debaixo daquela imagem de menina quieta. Talvez até conseguisse dar umas dicas de estilo. Na minha cabeça, a Jana sairia ganhando em popularidade, ainda por cima.

Demorei muito tempo olhando para um papel em branco. Eu não sabia nem como me aproximar dela, então a observei por um bom tempo sem ela saber. Para não parecer um psicopata, eu colocava meus fones de ouvido e fingia que estava olhando para o celular enquanto a observava. Fiquei entediado bem rápido. Ela sempre prestava atenção na aula ou conversava com os amigos dela. Até achei que tinha algo de interessante acontecendo entre ela e o Felipe, mas depois que a Beatriz começou a bancar a abelha-rainha com ele, a Jana passava a maior parte do tempo conversando sobre os estudos, cultura pop ou outra coisa do tipo com Vera e Renan.

Dava pena vê-la atrapalhando o casal ouro da sala. Parecia uma vela ambulante. Até pensei que ela não sabia que estava se intrometendo e fazia aquilo por não ter para onde ir, mas um dia, quando acabou a música que estava tocando meu celular e eu já estava indo convidar a Jana para sentar comigo, consegui ouvir um pedaço da conversa entre a Beatriz e o Felipe.

— Coitadinha da Jana. Alguém precisa avisar a ela que está passando vergonha — Beatriz comentou.

— Já dei umas leves indiretas, mas acho que ela está onde quer — Felipe respondeu.

— O Renan não tira os olhos da Vera e todo mundo sabe disso. A Jana precisa acordar antes que alguém saia magoado disso aí — ela falou.

— Shiu! — Felipe advertiu. — O Silas está bem aqui do lado — ele tentou sussurrar, mas eu ainda podia escutá-lo.

— Ele está escutando música — ela deu de ombros.

Os dois pararam de conversar sobre isso depois que me viram, mas pude ouvir o suficiente. No começo, não levei a sério. Parecia uma fofoca sem fundamento, mas não consegui deixar de pensar naquela possibilidade. Olhei para a Jana e consegui ver algum carinho pelo Renan, mas não acreditei que fosse mais que amizade. Todo mundo sabia que era questão de tempo para que ele pedisse a Vera em namoro e todos torciam por isso. Além do mais, Jana e Vera eram amigas há muito tempo e aquilo simplesmente não soava certo. Só que uma vez que plantam uma semente na sua cabeça, é quase impossível tirá-la de lá.

Resolvi focar nas outras coisas. Notei que, assim como eu desconfiava, Jana não tinha aquele mau humor matinal. Ela realmente adorava cultura pop e tinha um grande crush no ator que fazia o Thor, porque suas redes sociais estavam lotadas de declarações de amor para ele ou links de fanfics do reino de Asgard (algumas eróticas). Mais de a metade do guarda roupa da Jana tinha referências de alguma coisa nerd. Ela não tirava notas muito boas em matérias como história e literatura, mas quando o assunto era matemática ou física, nunca a vi tirar menos de oito. Jana se gabava de sua enorme coleção de livros e usava uns óculos meio velhos que a deixavam com cara de vó e escondiam seus olhos, o que me dava muita raiva porque ela tinha lindos olhos cor de mel. Nunca a vi usando maquiagem ou se pegando com um cara nas festas e poderia jurar que ela ainda não havia beijado ninguém aos dezessete anos de idade. Seus cabelos estavam num rabo de cavalo noventa por cento das vezes. Tinha tirado os aparelhos ortodônticos há pouco tempo, não era gorda, mas não era magra, e sempre levava uma maçã para lanchar. Por fim, talvez ela gostasse do Renan. Isso é tudo que eu sabia sobre Janaína Fragoso Pontes.

Minha irmã estava animada com a preparação para a gravação. Ela estava no primeiro ano e adorava a professora Amélia, então me ajudou com os preparativos do talk show.

— Mais alguma coisa? — Júlia perguntou.

— Não. Tudo está ótimo, mana. Agora é só gravar e deixar que o profissional aqui arranque os babados da Janaína.

— Pega leve com ela, Sil. Podem me chamar quando forem gravar. Está tudo certo no visor da câmera.

Minhas perguntas já estavam organizadas em um cartão, mas minha curiosidade estava gritando para que eu descobrisse se o Felipe estava falando a verdade. Júlia não sabia de nada, mas ela me conhecia tanto que parece que teve uma premonição. Quando Jana chegou, fomos até o estúdio.

— Silas, ficou muito lindo! Não acredito que você fez isso tudo sozinho, eu poderia ter ajudado — Jana elogiou, enquanto se impressionava com o nível de detalhes do meu trabalho.

— Não foi nada. E minha irmã me ajudou.

Fui até o meu quarto, vesti um smoking que eu tinha usado em alguma festa de debutante, passei um corretivo nas minhas olheiras e voltei para o estúdio. Olhei para Janaína de cima a baixo e reparei que ela estava de pele limpa, jeans e uma blusa do Batman, ou seja, a roupa de sempre.

— Você não acha que vai para o meu programa desse jeito, acha? — deixei minha indignação óbvia.

— Nem vem. Isso é só um trabalho de redação, cara. É para mostrar nossa biografia, quem somos de verdade. Isso é o que eu sempre uso.

Ignorei aquela bobagem e corri até o quarto da Júlia. Por sorte, minha irmã tinha alguns vestidos que poderiam servir em Jana. Dentre eles, um longo preto sem detalhes que seria perfeito. Peguei um batom vinho emprestado e voltei ao cenário. O olhar de desespero da Jana foi impagável.

— Sério, Silas?

— Sério. Agora anda — apontei para o banheiro e joguei o vestido em seu colo.

— Mas...

— Mas você não vai estragar todo o meu trabalho cenográfico com esse jeans, vai?

Contrariada, ela acabou aceitando, mas passou mais de quinze minutos no banheiro, então fiquei preocupado — mais com o vestido, é claro.

— Jana, já se vestiu?

— Você vai mesmo me fazer pagar esse mico?

— Pode sair.

Janaína abriu a porta do banheiro e não escondeu sua desaprovação. Ela estava quase chorando e morta de vergonha. Eu, pelo contrário, fiquei impressionado em vê-la daquele jeito. Peguei o batom e me aproximei dela, que recuou, mas deixou que eu a maquiasse com algumas reclamações.

— É só um batom. Esse tom ficou maravilhoso na sua pele — eu disse, ao terminar de colorir seus lábios. — E solta o cabelo.

— Nesse calor?

— Aham!

Aí sim, ela combinou com o meu cenário. Nem precisava de muita coisa para poder ver sua beleza. Chamei minha irmã para ajudar a filmar tudo e fomos para nossas posições.

— Que droga — minha irmã reclamou.

— Que foi? — falei, preocupado.

— Eu esqueci a câmera gravando há uma hora e agora a bateria está pela metade. Tentem ser rápidos para que não descarregue.

— Certo, Ju. Tentarei ser rápido. Obrigado pela ajuda — agradeci.

— E pelo vestido — Jana continuou.

Júlia sorriu e voltou-se para câmera. Depois de algumas tentativas frustradas, o programa fluiu.

— Boa noite, queridos telespectadores. Bem-vindos ao “Tudo o que você gostaria de saber”. Eu sou o Silas Barros e estou aqui com uma convidada muito especial, Janaína Pontes. Ela é a pessoa mais fofa do terceiro ano e é hoje que descobriremos mais sobre essa pessoa in-crí-vel.

Janaína entrou e Júlia a aplaudiu, mas planejamos colocar efeitos especiais depois no computador. Cumprimentei Jana e a acompanhei até o sofá.

— Preparada, Janaína?

— Acho que sim — ela respondeu, com um sorriso engraçado e aterrorizado.

— Depois dessa fase tão turbulenta na sua carreira, o ensino médio, o que é temos pela frente?

— Realmente — ela parou um pouco para pensar. — Foi mesmo uma fase bastante desafiadora para mim. Eu tive que acordar todos os dias às cinco da manhã para ir ao meu camarim e me preparar. Não foi fácil.

— Soube que você teve que fazer muitos testes para chegar onde está. É verdade, Janaína? — minha voz de locutor era terrível.

— Sim, é verdade, Silas. Foram muitas audições para um filme chamado vestibular. É quase um filme de terror. Se tudo der certo, conseguirei meu papel.

— E para qual papel você fez audições?

— Quero muito ser escolhida para dar vida a uma arquiteta que trabalha numa grande cidade, como São Paulo. É uma personagem decidida, forte e inteligente. Vocês vão adorar conhecê-la, mal posso esperar para começar a gravar.

Atrás da câmera, pude ver minha irmã segurando algumas risadinhas.

— Soube que seus pais te influenciaram muito. É verdade que você cresceu numa fazenda?

— É sim. Meus pais são tudo para mim. Eles são agrônomos e eu passei a maior parte da minha infância no interior, o que foi muito divertido. Falando nisso, eles são grandes fãs do programa. Você poderia mandar um beijo para eles?

— Claro! Qual o nome deles?

— Agenor e Fátima.

— Um beijo para vocês, Seu Agenor e Dona Fátima. Obrigado por assistirem ao nosso show! E já que falamos um pouco da sua vida pessoal... Hoje é sobre tudo o que gostaríamos de saber sobre a grande Janaína Pontes! Como vai o coraçãozinho?

— Você sabe... — Jana parecia querer me matar e deu um hilário sorriso desconfortável que me deixou tentando segurando minhas risadas. — É difícil manter relacionamentos com uma agenda tão lotada com a minha.

Deixei escapar uma risada nesta hora, mas continuei.

— Imagino que deve ser difícil mesmo, mas os seus fãs estão animados com a nova fase da sua carreira. O @amamosajana mandou perguntar qual foi o papel mais desafiador da sua vida.

— Foi naquele filme em que a neta perde a avó. Posso garantir que foi bastante difícil gravar aquelas cenas.

— Imagino que tenha sido complicado, mas aposto que você se saiu bem no filme —ela sorriu com olhos quando me ouviu. — O @janafanclub quer saber qual a sua comida favorita.

— Qualquer coisa que venha da Itália. Amo massa!

— Mais uma pergunta dos seus fãs. O @somostodosjana quer saber o que você gosta de fazer no tempo livre.

— Gosto de escrever poesias e músicas. Não que eu seja boa, mas eu toco um pouco de violão.

— Impressionante! — acho que ninguém lá na sala poderia imaginar isso. — E esse foi o primeiro bloco do “Tudo o que você gostaria de saber sobre Janaína Pontes”, com Silas Barros. Depois do comercial, voltaremos com uma performance incrível da Jana, fiquem ligados!

Falei isso e olhei para a minha irmã, procurando uma confirmação que estava tudo certo. Jana tinha se saído melhor do que eu esperava, mesmo sem ter lido minhas perguntas com antecedência. Muito disso tinha sido improvisação, incluindo a performance que ela faria, então notei uma ruga de preocupação em sua testa.

— Isso foi muito bom! — Júlia elogiou.

— Arrasamos muito — comemorei.

— Mas que história de performance é essa? Eu não vou fazer performance nenhuma — Jana pareceu bem preocupada.

— Eu não sabia que você escrevia músicas e poesias, Jana. Não existe jeito melhor de mostrar sua verdade que mostrando sua obra para o mundo — falei.

— Não, não. Esse vestido já foi um tanto além dos meus limites. Performance? Nunquinha — ela estava irredutível.

— Pelo menos leia uma de suas poesias. Vai ser legal — Júlia tentou me ajudar.

— Não, gente. Além disso, está ficando tarde. Tenho que ir para casa, depois gravamos a outra parte da entrevista.

— E a bateria está nas últimas — Júlia continuou.

Infelizmente, não consegui convencê-la a fazer a performance. Se bem que eu não podia reclamar, nunca tinha visto Janaína tão à vontade no colégio, então já tínhamos saído no lucro. Agradeci à Júlia pela ajuda mais uma vez e esperei Jana sair do banheiro com o vestido. De volta à calça jeans, parecia outra pessoa.

— Enfim, confortável — ela falou.

— O Renan iria gostar de te ver naquele vestido — minha intenção era ver como ela reagiria.

— O Ren... Como? Nada haver. Como assim? — o desespero foi instantâneo. O rosto de Jana ficou rubro em questão de segundos. Diante daquela reação, não tinha como negar que Felipe e Beatriz tinham razão.

— Fica tranquila. Estou só brincando. Mas, de verdade, eu acho que vocês combinariam juntos — tentei acalmá-la.

— Sem graça — ela retrucou.

Mesmo tentando mostrar que não tinha achado engraçado, um leve sorrisinho escapou do rosto dela quando falei aquilo. Como Jana conseguia se martirizar tanto e passar o dia assistindo Renan se derreter pela Vera? Ela estava precisando mais de mim do que eu imaginei.

***

— O Mário até que não é tão ruim, sabia? — Nina comentou.

— Ai não, Nina. Não é possível que você já esteja ficando com ele. Não faz nem três meses que você estava com o Jorge — Rafaela retrucou. — Não é, Silas?

Eu não estava prestando atenção na conversa delas, minha concentração se voltou à cena típica de Janaína. Depois de assisti-la por um tempo ficou bem óbvio que ela gostava do Renan. E assisti-la me deixava agoniado.

— Não é, Silas? — Rafaela repetiu de um jeito bruto, tentando me acordar.

— Já volto — falei, sem nem ligar para a pergunta de Rafa.

Fui até os três para ver se minha presença atenuava a situação. Ao chegar lá, fui recebido com bastante estranheza. Só o trabalho maluco de redação conseguiria fazer aquilo acontecer.

— Tudo bem, Silas? — Vera disse, franzindo a testa.

— Tudo. Vocês estão falando sobre o quê? — tentei me misturar ao grupo.

Ninguém estava entendendo nada. Nem eu sei o que me deu, só queria que aquela situação constrangedora acabasse de uma vez por todas.

— Estamos debatendo sobre quem é melhor em fazer filmes baseados em quadrinhos: DC ou Marvel — Vera respondeu.

— Eu e Jana achamos que a DC é bem melhor, mas a Vera é muito fã da Marvel — Renan tentou ser simpático, mas ainda não lhe parecia natural conversar comigo sobre isso.

Voltei-me para Jana e depois para Renan. Pude ver que ela estava preocupada com o que eu diria, tanto que não havia falando uma sílaba até esse momento.

— Ainda bem que o Silas chegou, ele pode tirar essa dúvida de uma vez por todas. A Marvel é muito melhor. Veja bem, é melhor só por ter o Homem-Aranha — Vera argumentou.

— Mas a maioria dos heróis que fizeram história estão na DC — Renan comentou.

— Esperem pelo filme da Mulher-Maravilha — Jana acrescentou.

— Vejam nos sites da crítica especializada, as notas dos filmes da Marvel são muito melhores — Vera rebateu.

— Então vamos falar sobre a trilogia do Batman feita pelo Nolan... — Renan falou de forma soberba.

— Ok. Admito que são ótimos. Mas, no geral, os filmes da Marvel são muito mais divertidos, fazem muito mais dinheiro e são muito mais interessantes que os da DC — Vera concluiu.

Por mais que eu quisesse prestar atenção no que eles estavam dizendo, minha cabeça estava focada na situação da Jana.

— Acho que eu concordo com a Vera, pessoal — falei sem um pingo de certeza.

— Isso é por causa do tanquinho do Capitão América, né? — Jana rebateu.

— Também — respondi com indiferença.

Não quis ser grosseiro, mas a resposta verdadeira era “não, eu realmente prefiro a Marvel”. Havia tanquinhos masculinos na DC também. Por que as pessoas sempre olhavam para mim e viam esse estereótipo tosco? Talvez eu tivesse culpa por isso, pela minha mania idiota de chamar atenção, mas aposto que Jana não pensou que Renan gostasse da DC por causa dos peitos da Mulher Maravilha. Existiam peitos e tanquinhos nos dois lados.

Eles continuaram a conversar sobre isso e perdi a paciência nos dez primeiros minutos. Parecia que eu estava só em corpo ali. E eu não sabia o que eu deveria fazer: afastá-la dos dois ou ajudá-la a dizer o que sentia. Quando finalmente voltamos para a sala, a professora Amélia pediu para que sentássemos com a nossa dupla para conversar um pouco mais sobre o trabalho.

— Como vocês já conversaram bastante, pelo menos é o que espero que tenham feito, hoje falaremos sobre o que vocês mudariam na sua dupla. Escrevam isso num papel e anexem na biografia. Tragam seus argumentos, falem por que isso faria sua dupla melhorar como pessoa. E, obviamente, não quero que escrevam a respeito de características físicas, ok?

Olhei para Jana e ela sorriu, então escrevi no papel o que eu mudaria nela.

“Se eu pudesse mudar alguma coisa em Jana, ela seria honesta sobre seus sentimentos e falaria o que está sentindo de verdade.”

— O que você escreveu? — ela estava curiosa e arrancou o papel de mim numa tacada só.

Aos poucos, o sorriso dela foi desaparecendo enquanto lia. Jana entendeu que eu já sabia de tudo quando escrevi aquilo. Foi uma coisa arriscada de se fazer, mas eu queria mostrar para ela que poderia contar comigo.

— Quer dizer que eu não sou honesta para você? — Jana se revoltou.

— Você me entendeu — permaneci calmo.

— E como você sabe o que estou sentindo de verdade? —pura ironia.

Poderia dizer que ouvi Felipe e Beatriz conversando, mas não queria colocá-los nessa situação.

— É meio óbvio que você gosta dele — tentei soar empático.

— Gosto de quem? Já falei que não gosto de ninguém aqui.

— Pode contar comigo, Jana, mas você tem que tomar uma decisão. Ou você fala o que sente ou se afasta. As pessoas já estão começando a te chamar de vela ambulante — logo me arrependi de dizer.

— Como? O que as pessoas têm com isso? Eles são meus amigos, as únicas pessoas que sabem o que estou sentindo de verdade nessa porcaria de colégio e eu não vou me afastar deles por causa disso. Sem falar que eu nunca atrapalhei nada, eles são livres e podem fazer o que quiserem. Não é minha culpa que a Vera só o vê como amigo — o tom de voz a denunciou ainda mais.

— Você pode ficar comigo e com as meninas no intervalo, se quiser — aconselhei.

— Sabe o que eu quero?

Janaína começou a escrever no papel e me entregou a folha, depois saiu da sala sem olhar para trás, deixando até a professora surpresa.

“O Silas se mete demais na vida alheia e isso precisa parar”.

Li o papel e respirei fundo. Era o meu talento natural de piorar as coisas.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

I want love, but it's impossible
A man like me, so irresponsible
https://youtu.be/ufbexgPyeJQ



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Por sua causa" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.