Por sua causa escrita por Elie


Capítulo 5
Cecília


Notas iniciais do capítulo

Como fazer as coisas idiotas pararem de ter importância?



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Enquanto os outros prestavam atenção na aula, eu estava escutando música com fones de ouvidos estrategicamente escondidos por debaixo do meu suéter e o meu cabelo solto. Não via a hora de aquele ano terminar para eu poder me dedicar ao que eu realmente gostava: artes visuais. Talvez um dia eu até conseguisse abrir meu próprio estúdio de tatuagens. Não estava muito preocupada com o vestibular, porque a concorrência não era alta, então eu praticamente ia para aulas porque minha mãe me obrigava.

A única coisa que me interessava era desenhar no meu caderno. Em vez de resolver as questões de matemática, eu olhava para as outras pessoas e desenhava algo que me remetesse a elas. A primeira pessoa que desenhei foi Maia. Olhei para aquele cabelo avermelhado na altura do queixo, roupas escuras e uma tristeza permanente no olhar. Depois de algum tempo pensando, desenhei uma águia. Para mim, esse era o espírito animal da minha amiga. Sempre afastada de todos, tirando suas conclusões e observando a vida de longe. Éramos amigas porque uma entendia a solidão da outra. Desenhei a ave com as asas abertas, pois eu sabia que a Maia daria voos mais altos assim que tivesse a oportunidade de sair daquele colégio.

— Como vai a conversa com a Tainá? — Maia interrompeu meu desenho sem saber que era sobre ela.

— Insuportável — respondi. — Não aguento aquele jeito convencido dela. Deve se achar muito melhor do que eu só porque é do grupinho dos nerds e não comete pecados desde o ano um antes de Cristo.

— Já eu estou fazendo o trabalho em trio. A Bruna não sai do pé do Thiago e até responde perguntas por ele.

— Meus pêsames.

Aquele trabalho estava sendo um castigo. Das três vezes que eu havia falado com Tainá, nenhuma delas acabou sem uma discussão idiota. Ela não aceitava quando eu achava as opiniões dela antiquadas e eu não estava disposta a mudar de opinião. O que ela queria? Ela não fazia nada aos sábados além de passar o dia na igreja como se isso pudesse garantir sua passagem para o céu. Além disso, olhava para minhas tatuagens como se fossem um grande pecado. Tainá tinha pena de mim, mas quem ela era para ter pena de mim? Alguém que dedicava boa parte de sua vida a uma religião tem esse direito? Eu que deveria sentir pena dela por acreditar numa fantasia.

Tudo que eu queria era terminar a biografia e entregar para a professora, nem que eu inventasse coisas sobre Tainá. Ninguém poderia dizer que eram mentiras, a não ser que minha dupla me dedurasse. Estava tão cansada de discutir com ela que estava disposta a qualquer coisa, então tive uma ideia. Durante o intervalo, falei com Tainá para garantir que tudo correria como planejado.

— Tudo bem? Quer falar sobre o trabalho? — ela perguntou.

— Eu tive uma ideia que pode nos ajudar a terminar esse trabalho o mais rápido possível. Sem mais discussões. Juro que me comportarei como um anjo.

— Sério? O que é? — Tainá ficou animada.

— Que tal se você escrever sua própria biografia e eu escrever a minha? Depois nós trocamos de trabalho. Vai ser muito mais fácil desse jeito e não vamos ter que nos estressar com besteiras.

Mais uma vez, ela não conseguiu esconder aquela desaprovação que sempre estava em seu rosto. Respirei fundo para não ter que brigar mais uma vez com ela.

— Não sei...

— Não sabe o quê? — Quase gritei, impaciente. — Ninguém vai saber se fizermos isso, a não ser que você abra sua boca.

Inquieta, comecei a bater meus pés no chão nervosamente, esperando por uma resposta. Tudo que recebi foi uma expressão negativa.

— Pense bem. Assim você poderá aproveitar seu tempo para focar no vestibular, ao invés de ficar fazendo perguntas idiotas para mim — me esforcei ao máximo para soar responsável e convincente.

— Desculpas, mas não posso fazer isso. É errado e a professora conhece nosso jeito de escrever, ela vai perceber.

Revirei os olhos. Como sempre, Tainá estava mais preocupada em parecer a garota certinha de sempre. E daí que não era certo? Era só um trabalho idiota de colégio e trocar de biografia não prejudicaria ninguém, afinal, teríamos que escrever algo do mesmo jeito. E ela ainda queria me convencer de que não era antiquada.

— Podemos terminar esse trabalho rápido, basta se organizar. A Bia e o Felipe estão conversando durante os intervalos, podemos fazer o mesmo. Sempre vou à igreja aos sábados. Pode ir comigo se quiser conhecer meus hábitos, minha família e amigos. Posso te ajudar, mas não quero ser desonesta com a professora.

— Que seja — só fui na outra direção e nem quis ouvir o resto.

Saí de lá ainda mais irritada. Só era o que me faltava, ir a uma igreja para ser doutrinada por fanáticos. Nem sei se acredito em deus, imagina ter que ir a um buraco cheio de crentes.

— Aconteceu alguma coisa? — Flávio perguntou, quando me viu bufando e com uma cara de poucos amigos,

— É esse trabalho idiota de redação. Eu tive uma ideia ótima e a idiota da Tainá recusou porque ela quer se fingir de santa. Eu não mereço isso!

— Que ideia? — ele se interessou. Logo vi que Flávio roubaria minha ideia.

— Eu escreveria minha própria biografia e ela escreveria a dela. Depois trocaríamos e entregaríamos a professora. Sem trabalho, sem estresse.

— Gostei da ideia.

— Mas a senhorita Jesus Cristo quer que eu vá rezar com ela — bufei.

— Corra para as colinas — ele riu.

Olhei para ele e mantive minha expressão irritada. Tudo seria tão mais fácil se o Flávio fosse a minha dupla, ou a Maia. Não sei por que as pessoas falavam mal dele, sempre o achei uma pessoa fácil de lidar. Claro que eu tinha que aguentar algumas piadinhas idiotas e algumas cantadas baratas, mas aquilo não era nada perto da Tainá me convidando para ir rezar com ela. A única coisa que me acalmou naquele dia foi desenhar. Peguei meu lápis durante a aula seguinte e fiquei olhando para Flávio, pensando em algo que o definisse. Traço a traço, uma cabeça de cervo foi aparecendo no meu caderno. Aquela ideia surgiu porque o cervo era imponente, mas ao mesmo tempo não era ameaçador. 

— Seu traço é maravilhoso — Maia elogiou.

— Obrigada.

Fechei meu caderno depois que ela falou isso. Maia logo entendeu que eu não queria mostrar o desenho, então ela não comentou mais nada. Eu não gostava que as pessoas ficassem olhando meus desenhos, de algum jeito aquilo fazia eu me sentir vulnerável, mesmo que fosse um amigo. Já quando se tratava das minhas tatuagens, eu preferia deixa-las à mostra porque ninguém sabia que eu havia desenhado cada uma delas. Cada elogio que eu recebia por elas era um alimento secreto para o meu ego de desenhista.

Fiquei tão perdida naqueles pensamentos que não percebi quando Tainá atravessou a sala com sua mochila jeans nas costas para falar comigo.

— Minha igreja fica ao lado do shopping. O culto começa às sete e meia da manhã. Espero te encontrar lá! — disse isso e saiu com aquele sorriso irritante no rosto.

Maia arregalou os olhos e olhou para mim com estranheza.

— Já estão tão íntimas assim? — ela ironizou.

Cerrei os lábios e neguei com a cabeça.

— Isso só pode ser perseguição — murmurei, quase chorando.

***

Por algum motivo, não consegui tirar o convite de Tainá da cabeça. O jeito que ela negou minha sugestão para o trabalho havia me deixado possessa. Ainda por cima, ela sabia que eu não acreditava em bobagens religiosas e ainda teve a cara de pau de me convidar para um culto. Provavelmente estava tentando me converter, o que era totalmente impossível de acontecer.

Olhei para o espelho, sorri sozinha e pensei: “Se é isso que ela quer, é isso que ela vai ter”.

Acordei com o meu despertador e separei uma camiseta regata e shorts que deixavam todas as minhas tatuagens à mostra. Coloquei todos os piercings que tinha guardado e um colar com a estrela de cinco pontas. Olhei para o espelho e não estava bom o suficiente. Abri minha caixa de maquiagens, separei meu delineador mais escuro e caprichei nos olhos. Quando cheguei à igreja, várias pessoas olharam para mim se perguntando o que eu estava fazendo ali. Era óbvio que eu nunca me encaixaria ali.

— Ceci?

Odiei quando ela me chamou assim como se fosse minha amiga de longa data, mas a surpresa na voz de Tainá me deixou satisfeita. Ela olhou para mim e o desconforto inicial ficou óbvio. Quanto mais as pessoas olhavam para mim, mais eu me senti vingada. Se Tainá queria me conhecer melhor, eu daria a ela toda a honestidade do mundo.

— Bom dia, Tainá! — a minha satisfação era real.

— Bom dia! Venha por aqui, vamos conhecer meus amigos e minha família.

Não pude conter minha alegria em mostrar a ela quem eu era de verdade. Conheci seus pais, seus amigos e toda a comunidade da igreja. Todos me olhavam e tentavam fingir que eu era bem-vinda, mas eu sabia que estavam incomodados. Aposto que para eles eu deveria ser algo próximo do anticristo.

Sentamos em um banco e assistimos ao culto. Não aguentei cinco minutos sem bocejar. Era a mesma ladainha de sempre. Capítulo e versículo e qualquer coisa que alguém havia escrito há milhares de ano para convencer as pessoas a obedecer. Tirei meus fones de ouvido da bolsa e coloquei em um dos meus ouvidos, de forma com que Tainá percebesse o que eu estava fazendo. Ela olhou de relance e voltou a prestar atenção no que o homem estava falando. Infelizmente, não consegui ouvir mais a minha música quando um bando de adolescentes desafinados subiu no palco e começou a cantar.

Foi uma sucessão de palavras sem sentido e músicas bregas. Não entendo para que um deus criaria seres humanos para ser bajulado daquela maneira. Era piegas e irritante. Ao final do culto, o homem que estava pregando veio na minha direção e quase corri para longe. Ele cumprimentou Tainá e seus pais e depois veio conversar comigo.

— Olá, irmã. Primeira vez que nos visita?

“Primeira vez e última”, pensei.

— Sim — respondi, como meu sorriso mais falso e irônico.

— Ela está acompanhando a nossa filha hoje. Elas estão fazendo um trabalho da escola juntas — o pai de Tainá explicou como se estivesse se desculpando. Eu era oficialmente a ovelha negra da igreja.

— Tainá é uma ótima influência, é bom mantê-la por perto — ele me aconselhou, mas isso era a última coisa que eu faria. — Teremos os trabalhos com os jovens daqui a pouco. Pode vir se quiser, irmã.

O homem disse isso e piscou para mim. Ele falava comigo como se eu fosse uma criança de cinco anos que precisava aprender sobre a vida. Fiz questão de recusar o convite com o meu sorriso falso. Quando ele saiu, tentei ligar para meu pai me buscar, mas ele só poderia sair do trabalho à tarde. Quase me desesperei. Parecia um complô contra a minha paciência.

— Depois meu pai pode te levar em casa — Tainá falou.

Não tive outra opção. Eu não estava acostumada a andar naquele bairro, estava sem dinheiro e não sabia como ir para casa sozinha. A única coisa que eu poderia fazer era acompanhá-la no trabalho de jovens.

Fomos andando até um anexo da igreja que ficava ali perto. Vários outros jovens já estavam esperando por Tainá. Eles nos cumprimentaram e alguns não conseguiam deixar de me encarar de cima a baixo. Depois nos dirigimos a uma salinha onde algumas crianças nos esperavam. Eu não tinha o menor jeito com crianças e aquele dia só piorava. Sentei-me no canto da sala e coloquei meus fones de ouvido novamente. De longe, assisti Tainá lendo alguma história bíblica. Surpreendentemente, fiquei interessada ao ver a reação daquelas crianças. Era felicidade, admiração e surpresa genuína. Eu me envolvi naquela situação e, sem perceber, já estava rindo com os meninos. Até tirei meu fone do ouvido para escutar o que ela estava lendo.

— Quatro amigos resolveram ajudar o homem e o levaram até Jesus para que ele pudesse curá-lo. Carregaram o homem doente até Jesus, que sorriu contente. Jesus ficou feliz quando viu que os amigos ajudaram o homem. Ele o curou. Então o homem ficou em pé e começou a andar. Foi assim que todos ficaram felizes — a entonação dela fazia as crianças ficarem mais interessadas.

Dei um sorriso irônico que pôde ser escutado por um milésimo de segundo. Tainá me olhou pelo canto dos olhos e vi que ela ficou preocupada com minha reação diante das crianças, mas continuou de onde parou.

— Alguém pode me contar o que Jesus nos ensinou hoje? — ela perguntou.

— Que devemos ajudar nossos amigos — uma menininha falou.

— Isso mesmo. Jesus é o nosso salvador e ele entra em nossas vidas para fazer lindos milagres, como o que ele fez com esse homem. Jesus perdoou os pecados desse homem e falou: “Levanta-te e anda!”. Quando o paralítico andou, todos ficaram impressionados.

— Será que ele pode ajudar a minha avó, Tainá? Ela está muito doente no hospital, meus pais estão preocupados com ela — um menininho perguntou. Como eu estava prestando atenção na história, só percebi ali o quanto ele estava triste.

Aquilo despertou meu interesse novamente. Quis saber como ela responderia aquela pergunta e sairia daquela situação. Novamente, Tainá olhou de relance para mim e falou.

— Existem muitas coisas que não conseguimos entender, Gui. Coisas ruins acontecem todos os dias e a melhor coisa que podemos fazer é orar nessas horas difíceis.

“Fácil pensar assim quando não é a sua avó que está morrendo”, pensei.

— Sabe por que eu escolhi ser batizada nesta igreja? — ela continuou.

O menino fez que não com a cabeça.

— Eu tive uma irmã que estava muito doente, assim como a sua avó — ela olhou diretamente para mim, querendo passar sua mensagem. — Infelizmente, ela não aguentou e foi para perto de Deus há uns três anos. Aqui foi o único lugar que pude encontrar respostas e aliviar o peso que estava no meu coração. Aqui eu aprendi que temos que confiar nos planos d’Ele. Não posso dizer com certeza que sua avó vai melhorar, mas eu posso dizer que tenho fé que Deus está com ela nas horas difíceis, e se ela tiver fé, vai continuar perto dele de qualquer jeito.

Ele sorriu e a abraçou por um bom tempo. Eu não acreditava naquela história de que a irmã dela estava no paraíso ao lado de deus, mas fui surpreendida com o fato novo sobre Tainá. Não era surpresa para mim que as pessoas se voltavam para a religião nos momentos difíceis, a novidade era saber que Tainá tinha passado por aquilo há pouco tempo e eu não tinha a menor ideia. Foi um soco no meu estômago.

Depois da leitura de histórias, uma senhora bateu na porta com alguns lanches para todos. Resolvi ajudar Tainá e servi os lanches. Sentamos lado a lado e ficamos observando as crianças.

— Nossa. Eles realmente estavam com fome — comentei, ao perceber a gula de alguns deles.

— É que alguns só lancham assim aqui. A maioria vem do Sol Nascente.

— Ah... Sim.

Fiquei sem palavras. Sol nascente era um bairro bem pobre da nossa cidade. Como eram crianças bem cuidadas, não percebi que eram carentes. Ao final do lanche, eles ficaram pintando alguma figura da arca de Noé e depois nos despedimos. Para prolongar minha impaciência, o pai de Tainá estava em algum estudo bíblico e teríamos que esperá-lo por mais quarenta minutos, então fomos tomar um sorvete no shopping que ficava ao lado da igreja.

— Doeu alguma coisa vir hoje? — ela perguntou.

Não respondi nada, apenas coloquei uma expressão forçada de dor no rosto, fazendo-a dar uma risada sem graça.

— Mas é um trabalho bonito esse que vocês fazem — falei, para amenizar a situação.

— É obra do senhor.

Não conseguir me conter e escancarei meu desprezo. Dessa vez, ela não me ignorou.

— Porque você se incomoda tanto com algo em que não acredita?

— Não é isso. É que é meio irritante o jeito que a religião manipula os acontecimentos. Se for algo bom, é um milagre, e se for algo ruim, está nos planos de deus. Sem falar que isso desvaloriza todo trabalho da ciência. E são vocês que fazem o trabalho, não uma magia divina.

— Eu sou cristã e valorizo a ciência. E nós fazemos isso por influência d’Ele.

Dei uma risada sarcástica e ela me olhou com raiva.

— Darwin e gênesis não combinam muito — ironizei.

— Eu acredito em design inteligente. É uma questão de perspectiva.

— Está vendo? — eu me revoltei. — Vocês interpretam as coisas como querem. Não estou dizendo que tenho certeza absoluta de como o universo surgiu, mas pelo menos eu não fico ditando regra a ninguém.

— Eu sei que discordamos em quase tudo, mas não é porque não quero marcar o meu corpo que ando por aí falando mal das suas tatuagens. Jesus não atira pedras, ele fala e as pessoas decidem se querem escutar. Vejo o mundo de uma maneira diferente da sua e talvez você tenha suas razões, mas a minha fé é mais forte que tudo. Deixo de fazer coisas que as outras pessoas fazem, perco muitos momentos com os meus amigos, guardo meus sábados e, não vou mentir, às vezes é difícil, mas eu tenho um motivo maior.

— Entendo — era mentira. Eu só queria que ela ficasse em silêncio.

Terminamos nossos sorvetes sem falar mais nada, até que deu a hora de ir embora. Só consegui relaxar quando cheguei no meu quarto. Cochilei por uns minutos, quando fui acordada por uma mensagem de Maia.

Maia (14:30) – Como foi? 

Cecília (14:31) – Sabe tortura?

Cecília (14:31) – Foi pior.

Maia (14:35) – hahahah

Maia (14:36) – Imagino. Muito sermão?

Cecília (14:43) – Muuuuuuito. E aquelas músicas terríveis? Todos eles acham que sabem cantar! Até aprendi que Jesus fez um paralítico andar.

Cecília (14:45) - E que a irmã mais nova dela morreu há uns três anos :(

Maia (14:46) – Como assim?! Cheguei depois no colégio, mas não sabia disso.  

Cecília (14:46) – Pois é. Eu já estava lá e também não sabia  

Peguei meu caderno e não desenhei nada. Tainá era um mistério para mim e aquilo tirou minha concentração. Eu sabia que o pai dela era mecânico, que a mãe dela era contadora, que ela era religiosa e fazia aquelas mesmas coisas todos os sábados. Sabia que ela fazia aniversário em setembro, queria ser professora e que detestava biologia, mas eu não sabia o que estava além daquilo. Não sabia nem que ela havia passado por um pesadelo há tão pouco tempo e que sua jornada espiritual verdadeira tinha se iniciado ali.

Ela era um morcego, cego e guiado por seus instintos primitivos, ou uma ruína surrada, mas cheia de história. Talvez uma paisagem bonita, mas passageira, como um pôr do sol. Eu não conseguia escolher.

Fui até o facebook dela e li um monte de posts religiosos, vi fotos nos eventos da igreja ou no colégio, mais alguns posts em que Elisa ou Beatriz a marcavam. O que eu queria ver mesmo eram lembranças do que aconteceu com a irmã dela. Encontrei algumas mensagens nas publicações mais antigas.

“Sinto muito pela sua perda. Tenho certeza que Tereza está num lugar melhor agora. Amo você”.

“Sentiremos muitas saudades da nossa menininha. Não tenho palavras para descrever a dor que estou sentindo nesse momento, mas tenho certeza que são os planos de Deus.”.

No meio daquele monte de mensagens fúnebres, havia uma de Beatriz.

“Sempre estarei com vocês”.

***

Durante o intervalo, fui até Beatriz para perguntar um pouco mais sobre aquela história. Como sempre, ela estava conversando com o Felipe, então tive que interrompê-los. Nem acreditei que estava mesmo gastando meu tempo livre com aquilo, mas minha curiosidade estava me matando.

— Bia, posso conversar contigo por alguns minutos?

Eles se entreolharam, estranhando minha aproximação repentina, mas logo fiquei a sós com ela. Nunca havia falado mais que três frases com a Bia, então foi meio estranho perguntar sobre um assunto tão delicado.

— É sobre a Tainá — expliquei, quando Felipe já estava distante o suficiente.

— Entendi. Para o trabalho da professora Amélia?

— Isso. Eu queria perguntar sobre o que houve exatamente com a Tereza.

Beatriz arregalou os olhou e até recuou um pouco.

— Desculpa, mas você não deveria estar perguntando isso para a Tainá?

— É que pode ser difícil para ela...

Na realidade, era difícil para mim. Eu não sabia lidar com aquilo e não queria ter que contrariar Tainá caso ela dissesse que sua irmã tinha ido para perto de deus. Após algum tempo insistindo, Beatriz concordou em me ajudar.

— Eu não sei exatamente quando aconteceu, mas, pelo que me lembro, começaram a aparecer uns hematomas no braço da Tetê e depois de investigar, os médicos acabaram descobrindo que ela tinha algum tipo de leucemia. Acho que a Tetê tinha oito anos quando diagnosticaram.

Tentei fugir de momentos emotivos, mas era inevitável. A voz da Bia começou a ficar embargada e logo vi que a história também mexia com ela. Talvez fosse por isso que ela estava se negando a conversar no começo.

— O tratamento demorou muito?

— Nem a Tetê demorou muito depois disso. Foi tudo bem abrupto. Eu a vi perdendo sua energia, até perder a vida — Beatriz engoliu a seco e já não conseguia falar com sua desenvoltura usual. — Foi durante aquela correria do primeiro ano. Não sei se você lembra, mas a Tainá faltou muitas aulas naquele período.

Fiz que sim com a cabeça, mas não fazia ideia do que ela estava falando. Eu provavelmente estava no meu mundo particular naquela época, sem dar a mínima para as faltas delas. Lembro de que teve um dia que várias pessoas faltaram porque o familiar de alguém tinha morrido, mas não associei o fato a Tainá.

— Como ela era?

— Como a Tainá. A Tetê adorava a irmã e acho que se espelhava nela, sabe? Ela era cheia de vida, doce, inteligente, leal, apegada à família. Dessas pessoas que te passam uma energia boa e você só quer ficar conversando durante o dia inteiro. Foi difícil para todos que a conheceram. Só queria um pouco mais de tempo com ela...

— Você gosta mesmo da Tainá — deixei esse pensamento sair.

— É difícil não gostar dela depois de conhecê-la. Não vou dizer que concordo com tudo que ela diz, mas nossa amizade é maior que isso. Depois que passamos por um pesadelo como esse, coisas idiotas perderam a importância. Ela estava comigo nos meus piores momentos e eu estarei sempre com ela. Verdadeiros amigos são assim.  

Nessa hora, a voz da Bia ficou ainda mais embargada e ficou difícil continuar aquela conversa. Agradeci pela ajuda e saí. Aquelas palavras me deixaram um pouco confusa porque eu nunca vi Tainá daquele jeito. Deve ter sido difícil passar por tudo aquilo, mas eu olhava para ela e todas aquelas ideias antiquadas eram como um vidro embaçado me impedindo de vê-la direito.


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Notas finais do capítulo

'Cause what about, what about angels
They will come, they will go
Make us special
https://youtu.be/kxVUee4WsoA



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