Por sua causa escrita por Elie


Capítulo 4
Beatriz


Notas iniciais do capítulo

Por alguma razão, gostei disso.



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Tive dificuldades para entender como as pessoas gostavam tanto da professora Amélia. Nunca fui muito com a cara dela porque pensava que ela era manipuladora. Quando Elisa ou Tainá vinham elogiá-la perto de mim, tudo o que eu queria fazer era discordar, mas sempre me controlei e não falharia logo quando a escola já estava acabando. O cúmulo foi a biografia que ela inventou e que tomaria muitas horas valiosas que poderiam ser usadas para revisar química. Pensei que professor bom de verdade era o Marcos que conseguiu me fazer aprender matemática e aproveitou a reta final para responder questões. Eu achava que aquilo sim mudaria a minha vida, não uma atividade besta sobre alguém em quem eu não tinha mínimo interesse.

Minha gastrite voltava toda vez que ouvia a palavra vestibular. Química era meu pior pesadelo. Eu tenho a quem puxar. Minha mãe é uma das melhores cardiologistas do estado e tudo que eu queria era ser igual a ela. Não via a hora de trocar as aulas de redação por aulas de anatomia. Se tudo desse certo, esse seria o ano que mudaria a minha vida.

Ao ver o nome de Felipe do lado do meu na aula de redação, tive uma sensação estranha quando entendi que ele seria minha dupla. Eu só era a segunda melhor aluna da sala por causa dele. Se eu tirasse 9, ele tirava 10. E se eu tirasse 10, ele arrumava um jeito de tirar 11 ou reinventar a fórmula de Bhaskara. Só que enquanto eu passava todo o meu tempo estudando e fazendo resumos elaborados e trabalhosos, ele simplesmente ficava com aquela cara de perdido e aprendia tudo só ouvindo as aulas. Parecia que os assuntos entravam por osmose na cabeça dele e eu achava isso muito injusto.

— Não sei se terei muito tempo para fazer esse trabalho. Então teremos que nos virar — avisei.

— Tudo bem, quando você puder é só me avisar.

O jeito dele me fazia parecer neurótica e aquilo me irritava profundamente. Felipe era tão compreensivo que parecia falso. Como meu tempo estava curto, conversávamos durante o intervalo. Para acelerar o processo, eu tinha várias questões escritas num caderninho azul, enquanto ele fazia perguntas aleatórias que inventava. Nem sei como alguém conseguiria terminar uma biografia daquele jeito.

— Já te mandei uma foto da minha certidão de nascimento por e-mail. Se precisar de qualquer outra coisa é só falar — ele sempre trazia um sorriso calmo e atendia aos meus pedidos sem hesitar. Não é que eu quisesse confronto, mas aquilo não era natural para mim.

— Que tal fazermos uma pergunta por vez? Eu começo e depois você pergunta — sugeri.

— Pode ser — como sempre, Felipe topou sem fazer perguntas.

— Qual sua cor, comida e música favorita?

Ele demorou um pouco, como se tivéssemos todo o tempo do mundo, mas acabou respondendo.

— Amarelo, pizza e “Hey, Jude”. Foi a Verinha quem me influenciou a ser fã dos Beatles, hoje eu sei quase todas as músicas. Conhece essa? É bem conhecida... 

— Acho que já ouvi sim. 

— Dá uma olhada na letra.

— Sua vez — eu o apressei.

— Se você pudesse passar dez minutos com qualquer pessoa, viva ou morta, quem escolheria? — mais uma vez, ele passou um bom tempo para pensar em alguma pergunta.

Enruguei a testa e me perguntei se não havia pergunta melhor para fazer.  "Será que ele quer que eu fale Justin Bieber ou algo do tipo?", foi o que pensei.

— Hum... Meu pai. Ele morreu há uns anos.

— Sinto muito.

— Tudo bem — eu já estava acostumada com o fato de não ter mais meu pai. — Tem algum hobby? — falei rapidamente para que Felipe não tivesse a chance de fazer perguntas que eu não estava disposta a responder.

— Tenho. Adoro jogos de tabuleiro. Já fui campeão de xadrez. E também gosto de alguns jogos on-line.

Foi uma resposta um pouco decepcionante. Achei que ele fosse responder ler ou viajar ou algo parecido.

— Se você pudesse ter um superpoder, qual seria? — ele perguntou. Achei todas as perguntas dele meio inúteis, mas como eu queria que aquilo acabasse logo, apenas respondi.

— Essa é fácil. Teletransporte. Você tem algum sonho? Algo que nunca fez, mas que gostaria de fazer? — dessa vez eu mal respirei entre a resposta e a pergunta.

— Fácil também. Mochilão pela Europa, mas já está garantido. Passei meu ensino médio economizando para isso e assim que a escola acabar vou pegar um avião para a Espanha.

Parabenizei-o pelo feito, mas fiquei pensando se não ele não se arrependeria de perder um ano da vida dele fazendo mochilão pela Europa, ainda mais depois do terceiro ano, em que ele tinha se dedicado tanto. Sempre quis passar no vestibular de primeira e saber que alguém como ele não faria isso era meio estranho.

— Se você soubesse que morreria em um ano, continuaria fazendo as mesmas escolhas?

Dessa vez fui eu quem demorou muito tempo para responder. Não que eu estivesse em dúvida do que responder, era exatamente o oposto. Se eu descobrisse que morreria em um ano, jogaria o trabalho da professora Amélia para o alto, não me importaria com as calorias e comeria tudo que teria de direito, esqueceria o vestibular, perderia a virgindade e visitaria a Nova Zelândia. Não necessariamente nessa ordem, mas é o que eu faria.

— Provavelmente não — menti, quando fui interrompida pelo sinal. — Quero dizer... Não sei... — então eu saí em direção ao corredor das salas de aula. Na verdade, eu fugi.

Conheci mais Felipe naqueles curtos intervalos que em todo resto da minha vida escolar. Ele mora com a mãe, o padrasto e o irmão mais novo, que é filho do padrasto. Seu pai biológico nunca o registrou como filho. A mãe dele é confeiteira e uma vez ele trouxe um pedaço de bolo de morango para mim que me fez implorar para que ele trouxesse novamente. Descobri que ele tem medo de altura, mas ama viajar de avião, se é que isso faz sentido. E que o signo dele é touro, mas ele não acreditava em horóscopo.

Foi estranho conhecê-lo melhor. Pelo que me lembro, ele sempre foi o garoto quieto que sentava no canto da sala e tirava notas melhores que as minhas. Nunca foi muito amigo de ninguém, mas gostava da companhia de Renan, Vera e Janaína. Eu e Tainá sempre apostávamos que eram dois casais.

— Agora que já te conheço um pouco melhor, posso perguntar quando é que você e a Janaína vão assumir?

Como ele era muito branco, foi ficando tão vermelho quanto um tomate.

— Ela só é minha amiga, além disso... — ele ia continuar falando, mas pensou bem e desistiu no meio.

— Além disso, o quê? — fiquei curiosa.

Felipe olhou para ver se não havia mais ninguém nos escutando. Parecia algo sério.

— Fala logo! — fiquei impaciente. — Por favor? — quase implorei.

— Você tem que me prometer que não vai contar nada a ninguém. Senão eu contarei que você fez xixi nas calças nos jogos internos do ensino fundamental.

Sim, eu tinha feito xixi nas calças na sexta série e ele sabia disso porque me perguntou qual o momento mais embaraçoso da minha vida.

— Ei! Não precisa me ameaçar, sabe que eu sou confiável.

— Acho que a Janaína é apaixonada pelo Renan — ele falou rapidamente, quase como um desabafo.

Franzi a testa e duvidei do que ele tinha dito. Todo mundo sabia que Renan e Vera estavam predestinados e que se ele não fosse tão devagar já estariam namorando. Todo mundo torcia por isso. Felipe confirmou sua opinião e apontou para seus três melhores amigos conversando a uns dez metros de nós. Havia algo estranho ali, mas eu não sabia o que era.

— O jeito que Renan olha para Vera é igual ao jeito que a Jana olha para ele — Felipe me explicou.

Mesmo tendo demorado para acreditar, ele tinha razão mais uma vez. Fiquei olhando para cena por um bom tempo para ter certeza, mas era verdade. Um sorriso meio bobo, o corpo voltado para a outra pessoa, a forma como Janaína mexia nos cabelos quando Renan olhava para ela, as mãos de Renan nos ombros da Vera. Não sei como eu não havia percebido isso antes.

— Não. Estou. Acreditando. No. Que. Estou. Vendo.

Felipe olhou para mim como se estivesse falando "eu avisei”. Naquele momento, notei que ele confiava em mim. Eu já não ficava impaciente com as perguntas dele. Pelo contrário, gostava de respondê-las e até entendia por que ele não tinha pressa para nada. Com o tempo, o período do intervalo foi ficando pequeno demais. Para a minha surpresa, fiquei motivada a entregar a melhor biografia que eu podia escrever.

— Gatos ou cachorros? — ele perguntou.

— Gosto de todos os animais, mas eu amo cachorros — respondi.

— Boa resposta — ele sorriu.

— Compartilhe um momento importante na sua vida.

Apesar de Felipe ter pensado bastante para responder, não me importei em esperar.

— Quando meu padrasto disse que não me perdoaria se eu não o chamasse de pai.

Sorri na mesma hora. Nesse ponto eu ainda trazia meu caderno de perguntas comigo e não parecia uma entrevista acadêmica, mesmo com minha forma mecânica de agir. Acho que eu queria provar para as pessoas que tudo era sobre o trabalho de Amélia, mas não era.

— Sua vez — falei. Interrompendo um silêncio bonito depois daquela história.

— Quer conhecer meus pais? — ele perguntou.

— Claro — respondi, sem saber como agir ou como disfarçar minha vergonha.

— Digo, para entrevistá-los — Felipe continuou.

— É. Claro — falei, ainda mais sem jeito.

Não sei o que me deu, mas me distanciei dele depois dessa conversa. Felipe até veio tentar conversar no intervalo, mas eu o afastei.

— Trouxe seu caderno? — ele perguntou, como um convite para uma conversa.

Naquele dia, eu estava conversando com Elisa e Tainá e vi que elas se entreolharam e compartilharam uma risadinha.

— Acho que já tenho material suficiente. Qualquer coisa, a gente se vê depois — respondi.

Ele deu de ombros, mas pude ver resquícios de decepção. Nossas conversas já tinham virado um hábito. Aposto que ele percebeu minha irritação com minhas amigas.

— Pode ir, eu sei que você quer conversar com ele. Ele é uma boa pessoa, então aprovamos e não ficaremos com ciúmes — Tainá falou, quando ele saiu.

— Não quero ir — rebati.

Minhas amigas deram uma risada irônica e aquilo me tirou do sério.

— Não preciso ir. Já tenho material suficiente para o trabalho — na hora não percebi, mas minha irritação deixou tudo mais evidente.

— Beatriz, minha querida Beatriz, você não sabe esconder o que está pensando. Cuidado para a Jana não ter ciúmes — Elisa era ardilosa.

— Estou pensando que já tenho material suficiente para o trabalho e não preciso mais passar metade do intervalo conversando com ele. Satisfeitas?

As duas começaram a rir e fiz uma cara de que não estava entendendo o motivo de tanta graça.

— É sério — mantive minha opinião.

— Metade do intervalo? — Elisa perguntou.

— Isso — fui direta.

— Vamos ser honestas, Bia. Vocês passaram o intervalo inteiro dessas últimas semanas conversando e rindo sozinhos. Não acha que é um tanto suspeito? Até eu duvidei um pouco no começo, porque eu sei que você não era muito fã do Felipe, mas agora... — Tainá me conhecia bem, mas eu fiquei insultada com o que ouvi.

— Mas agora nada. Eu ainda acho que ele é meio irritante e tudo isso é por causa do maldito trabalho da professora Amélia! — eu já estava sem paciência e meu tom de voz foi rude.

— Tudo bem. Se é isso que você diz, a gente acredita — Elisa retrucou, ainda irônica.

Sei que fui mal-educada, mas minha reação falou mais que as minhas palavras e me denunciou ainda mais. Passei tanto tempo conversando com Felipe que o clima foi ficando diferente.  Acho que foi essa conversa com minhas amigas que me acordou. Para mim, não havia espaço para distrações antes do vestibular, eu precisava dar orgulho a minha mãe. E mesmo com as minhas tentativas de falar para todo mundo que não tinha acontecido nada, não paravam de fazer brincadeirinhas sem graça.

Cansei rápido das piadinhas e passei a ler nos intervalos, ao invés de ficar discutindo com Tainá sobre o que eu estava sentindo ou não. Numa dessas leituras, Felipe se aproximou de mim. Vi de longe que Tainá reparou e cochichou alguma coisa para Elisa, o que me fez ficar na defensiva.

— Tudo bem? — ele perguntou. Felipe era a pessoa mais inteligente da sala, sabia dos boatos que estavam rodando a escola e sei que ele entendia porque eu havia me afastado.

— Tudo — respondi, sem tirar os olhos do livro.

— Sabe, você não é boa em esconder o que está pensando.

"Sério mesmo?", pensei. Era a segunda pessoa a me dizer aquilo em poucos dias, então eu só ignorei. Ergui uma sobrancelha, cerrei os lábios e não respondi.

— Viu a letra da música que eu falei?

— Não. Estou mais focada nos meus problemas de química.

— Já te falei para relaxar. Se quiser, eu posso te ajudar.

Nem me mexi, apenas olhei para ele e mantive minha expressão séria. Sabia que Felipe era muito melhor em química que eu, mas de alguma forma achei que ele estava sendo presunçoso.

— Não, obrigada. Eu me viro bem.

— Sei disso.

Sem falar mais nada, Felipe se retirou e voltou a conversar com os seus amigos. Algum arrependimento tomou conta de mim. Eu sabia ser uma perfeita idiota quando queria. Honestamente, tive vontade de correr atrás dele para dizer que não era nenhum problema com ele, e sim com o estresse pré-vestibular, mas aquilo alimentaria os boatos. De vez em quando, tirava os olhos do livro e olhava para ele, que percebeu logo e deu um sorriso sem felicidade. Era engraçado vê-lo perto de Vera e Jana porque agora eu não enxergava mais dois casais e sim um triângulo amoroso desastroso e o Felipe perdido do meio disso tudo.

Enquanto isso, vi que minhas amigas estavam conversando num banco ali perto. Para me distrair um pouco, fui até elas, rezando para que estivessem falando sobre outra coisa.

— Oi, gente — tentei ser simpática.

— Olha a sumida! Já falei que precisa relaxar ou vai ficar careca até o dia do vestibular — Elisa me aconselhou.

Agradeci o conselho, mas Elisa queria estudar comunicação social, que tinha concorrência muito menor que o curso de Medicina. Ela não entenderia meu desespero.

— Não estou aguentando mais aquela garota. Ou ela fica calada, ou ela fala alguma coisa que desrespeita minha religião. Não conseguimos passar mais de cinco minutos sem discutir, já estou perdendo minha paciência — Tainá continuou a conversa.

— Já eu estou amando esse trabalho. O Daniel me chamou para acompanhá-lo nos jogos. Vocês estão olhando para a futura namorada dele.

— Vai com calma. A fama dele não surgiu do nada. Melhor focar no seu canal, eu adorei o último vídeo — falei.

Elisa deu de ombros, tirou os óculos de vista e os limpou na barra da camiseta. Não entendi o que ela via em Daniel, um cara que só se preocupava com futebol e fama. Nina havia me contado que ele deu o fora nela quando ela se negou a ir para cama com ele, e Elisa sabia disso, mas ela preferia acreditar que aquilo era invenção da cabeça da Nina para difamá-lo depois que ele a deu um pé na bunda. Sei que Nina não era muito sensata, mas não acho que ela mentiria sobre algo tão sério.

— Talvez a professora Amélia esteja querendo que Elisa descubra outras coisas sobre o Daniel, Bia. Devem haver coisas legais sobre ele que não sabemos — Tainá sempre tentava ver o lado positivo, mas nem ela parecia convencida.

— Não sabemos ainda — Elisa completou.

Eu já estava cansada de toda aquela conversa e de tentar aconselhar Elisa. Ninguém muda do dia para a noite e não seria um trabalho de escola que faria Daniel se tornar uma pessoa sensata.

 

***

Na semana do vestibular, eu estava nervosa, mas estava mais tranquila do que eu previa, pois tinha consciência de que havia estudado tudo que eu podia. Comprei alguns lanches e minha mãe me levou até a escola em que a prova seria aplicada.

— Lembre-se de prestar atenção ao marcar as respostas no gabarito.

— Pode deixar, mãe.

— E preste atenção na hora de passar a redação a limpo, boa caligrafia é importante.

— Sei disso, mãe.

Ela me deu um beijo na testa e saiu correndo, pois havia recebido uma mensagem avisando que precisavam dela no hospital. Sentei num banquinho no pátio da escola, esperando dar a hora da prova. Alguns minutos antes, recebi uma mensagem no celular.

 

Felipe (12:15) – Boa prova, Bia. Confio em você, futura médica.

 

Abri a mensagem e me surpreendi positivamente com a mensagem de Felipe. Sorri olhando para o celular. Não conversávamos como antes há quase um mês e eu estava tentando ignorá-lo na maior parte do tempo. Sabia que ele estava fazendo a prova só para treinar, pois viajaria depois do final das aulas, então desejei boa sorte do mesmo jeito.

 

Beatriz (12:17) – Boa prova para você também, Lipe. Você vai tirar isso de letra.

Felipe (12:17) – Não vai fazer xixi nas calças de novo

Beatriz (12:18) – -_-

Felipe (12:19) – Relaxa. Só os seus concorrentes vão fazer xixi nas calças hoje

Beatriz (12:20) - hahahaha

 

Entrei na sala, recebi a prova, respondi a prova, escrevi a redação, passei a redação a limpo, marquei minhas respostas no gabarito, olhei para o relógio algumas vezes, saí da sala faltando quinze minutos para o final. Nunca me senti tão livre em toda a minha vida. Qualquer que fosse o resultado, eu tinha feito tudo que estava ao meu alcance. Esperei a minha mãe por meia hora, mas ela não conseguiu sair do hospital a tempo, então peguei um táxi. Ao chegar à casa, só consegui cochilar. Acordei quando minha mãe chegou.

— Como foi?

— Boa, na medida do possível.

— Espero que tenha sido suficiente. Vamos esperar pelo resultado. 

 

***

Nas semanas seguintes, o único assunto da sala era o vestibular, mas era sobre o que eu menos queria falar. Tirar aquele peso das minhas costas foi tão libertador que até o meu humor melhorou. Até as aulas de Amélia ficaram mais interessantes e eu recuperei minha vontade de escrever uma ótima biografia. Não seria tão difícil com uma dupla como a minha.

— Espero que tenham feito uma ótima prova. Falamos muito sobre a violência contra a mulher, então vocês estavam com a faca e o queijo na mão — a professora falou.

Renan começou uma salva de palmas e logo a turma toda estava agradecendo a professora pelo apoio que ela deu durante o ensino médio. Tive que concordar, pois todos os debates sobre histórias reais me deram uma perspectiva ampla sobre o assunto. Teve um dia que discutimos sobre casos de violência entre casais famosos, na época eu achei meio idiota falar sobre fofoca de celebridades, mas aquelas aulas foram importantes para a minha redação. Entrei na salva de palmas sem pestanejar.

Um arrepio correu pela minha espinha quando lembrei que todo aquele ciclo estava acabando e que eu não teria mais a chance de ver Tainá e Elisa todos os dias. Olhei para todos os meus colegas e meu olhar parou quando encontrou o de Felipe, que riu para mim. Foi a primeira vez que fiquei triste ao entender que não o veria mais com tanta frequência quando o ano acabasse. E nem poderia visitá-lo, já que ele iria para Europa.

— Descobri que tenho algumas perguntas sem resposta no meu caderno — falei um pouco mais alto para que ele pudesse me escutar no meio do barulho de palmas.

— Até o intervalo — ele respondeu, sorrindo.

Na verdade, abri o caderno e escrevi perguntas novas durante a aula.

 

***

— Sei que você vai viajar e não quer se preocupar com vestibular esse ano, mas o que você quer fazer da sua vida? — perguntei.

— Não sei. Ainda vou descobrir — ele parecia triste.

— Não acha que é muito arriscado? — agi por impulso, mas deveria ter mudado de assunto.

— Talvez seja arriscado me deixar decidir aos dezessete anos o que quero fazer por toda a minha vida.

Esse dia entrou na lista de coisas que eu mudaria se eu pudesse voltar no tempo. Eu deveria dizer que, de todas as pessoas que eu conhecia, Felipe era um dos mais capazes de escolher seus próprios caminhos. E que não escolher naquele momento era uma escolha válida como qualquer outra. Na hora eu só estranhei e anotei aquilo no caderno. Para mim, meu sonho de ser médica era tão claro que eu nunca havia cogitado aquela possibilidade.

— Quando foi a última vez que você chorou? — Felipe perguntou.

Engoli seco. Eu não tinha resposta para aquilo.

— Não lembro. Talvez quando meu pai morreu.

Percebi que ele ficou me encarando por alguns segundos, perplexo. O que é que aquilo falava sobre mim? Que eu era uma sociopata fria e sem emoções? Claro que eu havia chorado nos últimos oito anos, só não me lembrava qual a última vez. Resolvi mudar de assunto para esquecer aquele momento embaraçoso.

— Quando vou entrevistar sua família? — perguntei.

— Quando quiser. Ou arrumar tempo na sua agenda cheia de aulas e provas.

— Agora sou uma pessoa livre. — brinquei. — Que tal na quinta? — sugeri.

— Ótimo. Já te passo o endereço.

 

***

As vozes das minhas amigas me assombraram enquanto eu escolhia qual roupa seria mais adequada para a entrevista. Chamar de entrevista era como um codinome para o dia que eu conheci os pais de Felipe. Imaginei Elisa os chamando de meus sogros, mas era ridículo. Como eu poderia estar me envolvendo com uma pessoa que iria embora em poucos meses?

Peguei meu vestido florido e achei muito feminino. Pensei num conjunto de alfaiataria, mas era formal demais. “Quer saber? Hoje é dia de jeans e camiseta”, concluí.

Eles moravam num apartamento perto do colégio. Não era grande como o que eu morava, mas era bem decorado. Apertei a campainha e esperei alguém atender. Uma mulher de avental abriu a porta, enquanto segurava uma colher de pau.

— Olá, querida. Seja bem-vinda! — disse ela, dando-me um beijo na bochecha e cuidando para não me sujar com a colher. — Felipe avisou que viria. Ele está no quarto ao final do corredor, fique à vontade.

Quando encontrei o local, fui surpreendida com um mar de fotos em cima da cama.

— Isso porque minha mãe só quis mostrar as melhores — ele brincou.

Passamos muito tempo conversando sobre as histórias por trás daquelas fotos. Festas de aniversário, formaturas, idas à praia, festas do colégio, a vida inteira em imagens. Foi como ver um filme sobre ele. Em cima da mesa de estudos, avistei um porta-retratos com uma foto dele chorando, com as bochechas vermelhas e a boca aberta.

— E essa aqui? — perguntei.

— Segundo a minha mãe, eu estava chorando porque tinha feito xixi na cama.

— Aham! Não sou a única a fazer xixi em locais inapropriados! Posso ficar com essa também?

Ele achou graça e tirou a foto do porta-retratos. Selecionei algumas fotos da família inteira e de momentos importantes para escanear e colocar no trabalho. Guardei aquela foto entre as folhas do meu caderno para tirar cópia e essa foi a única que nunca devolvi.

— E seu pai? — perguntei.

— Acho que está assistindo ao jogo no quarto. Quer que eu o chame?

Assenti com a cabeça. Felipe colocou sua mão em meu braço por dois segundos e me convidou para conversar com seu pai no outro cômodo. Seu Valder tinha uns quarenta anos e estava estressado ao ver seu time perdendo a partida.

— Posso ficar a sós com seu pai? Sua presença pode influenciar as respostas.

Felipe franziu a testa, reclamou um pouco, mas logo foi para a cozinha ajudar sua mãe com alguma coisa. Ele já havia explicado aos pais como era o trabalho, então foi mais fácil conduzir a entrevista.

— Quer dizer que ele não é seu filho biológico?

— Isso. Quando casei com a Simone, ele tinha uns seis anos, quatro anos depois, nós tivemos meu outro filho, o Fernando. Ele deve estar assistindo televisão no quarto, se quiser conhecê-lo.

— Quero sim, obrigada. Depois converso com ele. E... Como é ter o Felipe como filho?

— Muito fácil, ele me dá orgulho. Ajuda a mãe, não dá trabalho, cuida do irmão. Conseguiu juntar dinheiro sozinho para viajar. Quando eu casei com a Simone, fiz questão de pedir a mão dela em casamento para ele. Eu tive muita sorte.

Fiquei em silêncio por alguns segundos, sorrindo e anotando aquilo no caderno. Nunca tinha pensado daquela maneira, mas toda forma de amor deveria ser fácil daquele jeito, deveria fazer as pessoas se sentirem com sorte.

— E qual o pior defeito dele? — foi pergunta parte do meu protocolo para escrever boas biografias.

— Bem... Ele é muito fechado e não tem muitos amigos. Às vezes ele se tranca no quarto. É difícil fazê-lo se abrir com as pessoas. Talvez você possa ajudá-lo?  — A falta de sutileza me fez gargalhar.

— Sinto muito, senhor, mas acho que não sou a melhor pessoa para isso — respondi, mas percebi que Seu Valder ainda colocava esperanças em mim.

Conversamos mais um pouco sobre eventos importantes, como quando Felipe foi escolhido aluno destaque do colégio e quando ele perdeu o primeiro dentinho, não avisou a ninguém e descobriu que a fada do dente não existia. Fiz mais anotações, agradeci pela ajuda e fui até o quarto de Fernando fazer outras perguntas.

— Tudo bem, Fernando? Sou a Bia, colega do Felipe. Estou escrevendo sobre a história do seu irmão para um trabalho. Posso fazer algumas perguntas para você?

— Claro — Fernando parecia aborrecido e não tirava os olhos no desenho animado.

— Como é ter o Felipe com irmão mais velho?

— Um saco — ele resmungou. — Ele só sabe mandar em mim e roubar meus doces.

— Mas não tem nenhuma coisinha legal no seu irmão?

Tentei tirar alguma informação importante de Fernando, mas ele estava impossível. Mais tarde, descobri que Felipe havia brigado por ele ter comido uma caixa de bombons inteira sem dividir com ninguém, então o garoto estava de castigo. Depois de alguns minutos, fui até a cozinha conversar com Simone.

— Deu tudo certo? — Felipe perguntou.

— Acho que sim. Sua biografia vai ficar completa. Só falta sua mãe.

Ambos olharam para mim com uma face preocupada e fiquei sem entender o que tinha acontecido.

— Peço mil desculpas, querida, mas hoje estou numa correria só — Simone explicou.

— Sinto muito, Bia. Minha mãe só lembrou agora que tem que entregar uma encomenda enorme até amanhã. Eu tenho que ajudá-la para não deixar o cliente na mão.

Olhei para os dois, coloquei o meu caderno na bolsa e guardei a bolsa na sala. Em seguida, voltei para a cozinha.

— Quer saber? Três pessoas vão terminar isso bem mais rápido que duas — falei.

— Não precisa, minha filha. É muito trabalho — Simone avisou.

— Faço questão. Não saio daqui sem enrolar alguns docinhos.

— Tem certeza, Bia? — Felipe perguntou.

Respondi que sim com a cabeça e coloquei uma touca que Simone nos deu para proteger o cabelo. Fiquei horrível com aquela touca, mas se até Felipe não se incomodava em usá-la, como eu poderia me importar? Passamos quase três horas cozinhando brigadeiro, batendo bolo, enrolando docinhos e fritando coxinhas. Felizmente eu estava lá para ajudar, se não eles nem dormiriam naquela noite. Quando tudo estava acabando, Simone não parava de me agradecer.

Aquelas três horas falaram mais sobre Felipe do que qualquer entrevista que eu poderia ter feito com sua mãe. Poucos jovens que conheço ajudariam a mãe daquele jeito. Ao contrário do que muitos poderiam achar, era muito charmoso vê-lo não se importar em enrolar brigadeiros na minha frente. Algumas vezes, eu parava só para assisti-lo. Até Seu Valder finalmente desistiu do jogo para nos ajudar, organizando todos os materiais descartáveis para que pudéssemos dispor os doces e salgados. Saí de lá quase meia-noite, mas não estava cansada.

— Obrigado mesmo. Você é uma pessoa surpreendente, senhorita — ele falou, depois que sua mãe já havia se retirado para tomar banho.

— Não foi nada, mas você terá que me levar docinhos periodicamente — ameacei.

— Como se eu já não fizesse isso — ele caçoou.

Quando fomos nos despedir, encontramos Fernando dormindo no sofá da sala.

— Esse pestinha comeu a caixa de bombons sozinho e ainda não sabe por que está de castigo.

— Ele não estava muito amigável hoje... — contei.

— Desculpa. Tem dias que eu perco a paciência com esse moleque. Ser filha única deve ser tão menos estressante.

Felipe foi até o quarto de Fernando para pegar uma coberta. Desajeitadamente, ele estendeu a coberta em cima do irmão. Ele dificilmente teria talento para ser filho único.

— Acabamos por hoje. Espero que tenha conseguido o que queria — Felipe comentou, quando finalmente se deu conta de que eu estava observando o seu gesto.

— Consegui sim. Adorei conhecer seus pais — falei, enquanto me despedia para ir até o táxi, feliz por ter conseguido mais do que eu esperava.

Minha mãe estava em casa quando cheguei, ou seja, era uma ocasião rara e eu tive a impressão de que ela ficou meio chateada por tão ter sido avisada a respeito da minha ausência. Claro que eu ficaria em casa se ela pedisse, mas nunca dava para ter certeza dos horários da minha mãe.

— Onde você estava? — Emília perguntou.

— Estava fazendo um trabalho de redação, mas a mãe do meu amigo teve um problema e eu me ofereci para ajudar, ela é confeit... — Tentei me explicar, mas minha mãe não estava tão interessada em minhas histórias. Pelo menos, ela confiava em mim.

— Entendi. É melhor me avisar da próxima vez.

— Claro, mãe. Perdi a noção do tempo.

Joguei minha sapatilha na lavanderia e sentei-me no sofá, fazendo as pernas da minha mãe de travesseiro. Ela massageou meus cabelos automaticamente quando me aproximei, fazendo-me quase cochilar. Ficamos assistindo televisão por alguns minutos, mas era um programa de auditório chato.

— O pai do meu amigo era engraçado, sabe? Ficou fazendo aquelas piadinhas constrangedoras de pai. Será que o papai seria assim? — puxei assunto.

Neste momento, minha mãe parou de mexer nos meus cabelos, quase tão automaticamente como quando começou. Percebi que ela não sabia o que responder e teve que pensar um pouco.

   — Provavelmente. Seu pai sabia me matar de vergonha quando queria.

Então Emília pegou uma almofada, afastou suas pernas e apoiou minha cabeça na almofada para que eu não sentisse tanto a diferença quando ela saísse, mas eu senti.


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Notas finais do capítulo

We are alone with our changing minds
We fall in love 'til it hurts or bleeds or fades in time

https://youtu.be/CDrCAV5TydY



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