Vazios escrita por Shalashaska


Capítulo 76
Nigredo


Notas iniciais do capítulo

29/01/2019
Olá! Minhas férias estão acabando, mais deixo aqui mais um capítulo para vocês, leitores tão queridos. Agradeço demais o apoio de todos e espero que gostem!
Boa leitura!



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N i g r e d o

 

— Sinta-se em casa. — Ebony disse, saltando para o balcão em meia lua virado de frente para a porta. Passou a conferir algo num grosso livro, que virava suas páginas sozinho assim que o gato terminava de ler. Atrás dele e penduradas na parede, duas imensas serpentes de ferro comiam a cauda da outra numa representação estilizada da Ouroboros, e no meio um imenso olho a julgava.

Era difícil para Wanda “sentir-se em casa” quando “casa” e “lar” frequentemente significavam certas pessoas e justamente havia se afastado de uma delas, mas não quis tornar as coisas mais pesadas do que já eram. Com a mochila em um de seus ombros e o gato anfitrião entretido com outra tarefa, ela aproveitou para dar uma boa conferida ao seu redor. Isso a faria pensar menos no próprio aperto no coração e nos olhos marejados de James Barnes. Deu um par de passos tímidos pelo tapete sinuoso que dava para o balcão.

A verdade é que… A Feiticeira Escarlate esperava outra coisa. O ambiente era claro, até mesmo espaçoso, ao contrário do estereótipo de escuridão e objetos abarrotados de lojas de bruxa, como ervas, velas, itens estranhos e talvez vassouras penduradas. Bem, existiam realmente tais coisas ali, mas tudo era organizado de maneira meticulosa em prateleiras brancas e abauladas à esquerda e à direita. As paredes exibiam um tom agradável de lilás e, em cada lado da porta de entrada havia uma vitrine de tamanho médio, tal qual uma janela com grades requintadas. O vidro, porém, emoldurava a clareira de uma floresta.

— Eu não me lembro de ter visto janelas quando estava do lado de fora.

— É porque você não precisava de janelas, e sim de uma porta.

Wanda se viu obrigada a ignorar o absurdo da frase, porém o felino entendeu sua irritação e se pôs a explicar:

— As vitrines surgem quando alguém do lado precisa de algo que a loja pode oferecer. São mágicas, assim como essa loja inteira, que some e aparece. Do lado de dentro, as janelas são o sinal  de que algum cliente vai entrar, do contrário Agatha as deixa em cenários interessantes, tipo… O deserto ou o mar. Hoje é um bosque. Lembra-se do que eu disse sobre janelas de Sanctum?

— Oh. É bem… Sereno. Mas ainda não sei o que é um Sanctum.

O gato não lhe deu tanta atenção, de modo que ela continuou a encarar as estantes. As velas eram ordenadas por cores, tamanhos e formatos, assim como as garrafas do outro lado e vidros engraçados de destilação, alquimia. Seriam poções? Poções de verdade? Ela atravessou o recinto para conferir, mas foi distraída por uma estante redonda, da altura de seu quadril. Era fechada por vidro e ali dentro havia ossos.

— Isso… Isso é um crânio de algum animal?

O suspiro de Ebony ecoou na loja inteira.

— Nesta casa nós não discriminamos necromancia. Nem magia de sangue, embora me dê um pouco de náusea. Enfim, acabei de ver aqui no registro de Agatha e não tem ninguém marcado pra hoje. — O livro se fechou com um baque. — Podemos pegar a lua cheia. Vamos, venha cá.

Ela obedeceu, perguntando-se o que aquelas palavras significavam e perguntando-se também o significado de uma miríade de objetos, como as elegantes gaiolas penduradas ao lado e um poleiro no topo. Será que além de um gato preto, Agatha também tinha corvos ou corujas?

— Por que estão vazias?

— Elas não estão vazias. Mas não recomendo mexer em espíritos engaiolados, eles podem ser imprevisíveis.

— Que ótimo.

Não ficaria entediada lá.

— Bom, à esquerda existe a porta crescente. — O gato indicou a direção com a cauda, num gesto suave. — À direita tem a porta minguante. Você pode diferenciar pelas maçanetas, mas no fim as duas levam à uma mesma sala em que Agatha atende alguns clientes.

— E a tal lua cheia?

Ele se virou para o olho na parede, circundado pelas serpentes. Uma vez, ouviu dizer que a lua era um olho, mas não imaginava que encontraria tal simbologia ali. Usando o mesmo tom da primeira vez falou em latim na frente de Wanda, o felino entoou em sua voz espectral, antiga e rouca:

Memento mori. Memento vivere.

As serpentes giraram, o olho piscou. Um portal de abriu com um barulho mastigado. A Feiticeira deu uma última encarada para trás antes de seguir em frente e subir as escadarias.

Ebony tentou explicar mais sobre feitiços extensores para Wanda, no entanto tal ideia ainda parecia absurda - mesmo que ela fosse Feiticeira e tocasse os véus da realidade com as próprias mãos. A escadaria que subiu na loja para chegar ao segundo andar, na verdade levava a uma casa, que sua vez estava a nível térreo. Inclusive era muito bem iluminada por janelas grandes e estrutura de conceito aberto, enfeitada por plantas e decorada com móveis de madeira. Mostrando-lhe o restante de cômodos, o gato prosseguiu as explicações:

— Pense que a Loja é tipo… Tipo um porão nos fundos da casa.

— Um porão não dá para o lado de fora, Ebony.

— Afinal, por que você quer explicações racionais? É magia!

Ela ajeitou de novo a mochila no ombro. Se aquilo era demais para ela, imaginou quais seriam os comentários de James. Apostava que ele faria aquela sua expressão confusa e engraçada, a boca talvez meio aberta e murmurando vagamente: “O que diabos…?”. Riu sozinha, depois seu riso tornou-se tristeza. Sua vontade era de descer as escadas, sair pela porta da loja e pular em cima dele num abraço eterno. Faria isso, no futuro.

— Bom, é verdade. Estou falando com um gato. Loucura, huh?

— Nós somos todos loucos aqui.

— Certo, certo, gato risonho. — Sacudiu a cabeça. Tinha esquecido que ele gostava de referências literárias de gatos. Talvez devesse dizer que a casa mais parecia o lar de Baba Yaga, o casebre com pernas de galinha do folclore eslavo, mas deixou o pensamento de lado.— E aonde eu vou dormir?

— No sótão.

Engoliu seco.

— Sabe que isso não soa muito bem depois de, hm, dos ossos lá embaixo.

— Pedirei que Agatha arranque seu fêmur caso continue com essa ladainha. Pior, vou gritar no meio da noite no seu ouvido pra me dar comida. — Uma pausa. — E no fim, não vou comer nada.

— Você não se atreva.

O gato a guiou para seu dormitório e Wanda não podia estar mais errada ao recear o cômodo. Apesar da quantidade de janelas na casa inteira, a feiticeira sentia uma aura de segurança, proteção. Seu quarto não foi diferente. Dificilmente chamaria aquilo de sótão, mas optou não contrariar. Talvez fosse apenas uma nova tentativa de Ebony para assusta-la.Jogou a mochila em cima da cama imensa, andou pelo tapete vermelho. Existia uma prateleira recheada de livros de capa dura, uma escrivaninha vazia. Descobriu que tinha um closet para si própria, um banheiro com dúzias de velas e cosméticos naturais que deixariam Natasha sedenta. Aproveitou o instante para acomodar suas coisas; apoiou seu caderno roxo na escrivaninha junto ao livro da Chapeuzinho Vermelho, bem como as molduras do desenho de Steve e a foto com a Viúva Negra. No móvel ao lado da cama, deixou a estatueta de lobo e também sua tiara vermelha, feita por seu pai.

Agora, ela jazia em frente à porta veneziana que alcançava as vigas no teto e dava vista para fora, esboçando uma sacada curta. Não existia nenhum rastro de civilização até onde ela pôde enxergar, só plantas de um jardim e um lago mais a frente que refletia o fim do ocaso.

— Onde nós estamos? Em que país, digo?

— Sinceramente? Não sei. E saber tiraria o encanto do lugar.

Concordou com um aceno vago, enxergando a noite cobrir o céu.

Na hora seguinte, na companhia de Ebony e na ausência da bruxa mestra, Wanda desbravou a casa, buscando detalhes interessantes e engraçados que talvez explicassem a personalidade da dona. Soube que ela tinha gostos finos devido às portas pivotantes de madeira e espelhos com molduras cheias de arabescos, mas que também poderia ser despojada devido ao sofá de design simples, com tecido cinza liso e almofada roxas na sala. De longe, o cômodo mais interessante que havia visitado até o momento era a biblioteca, que não ocupava muito espaço. Apesar dos livros de aspecto antigo, a mesa de estudos conferia um ar moderno ao local, já que tinha um notebook e artigos de papelaria em cima, como canetas coloridas, clips, post-its. Ela esperava um grimório pesado e canetas de pena. Ao fim, Ebony disse que estava com fome e pediu que Wanda lhe desse comida, frisando que seu pote de cerâmica ficava na cozinha. E que queria água fresca, ou então leite morno e com creme.

— Onde já se viu? — Ela fingiu brigar com ele, refutando seu argumento bobo de não ter polegares. — Um gato que vira uma fera enorme não conseguir pegar água ou leite pra si próprio?

— Ah, minha cara. Faça a vontade desse pobre gato. — Congelou ao ver Agatha, em carne e osso, de pé na frente do fogão. Ela se virou com uma chaleira na mão e despejou água quente em duas xícaras, um sorriso sereno em seus lábios. — Ele sacrificou uma de suas vidas por você.

— Agatha… Me desculpe por Ebony. Ele não me disse nada...

— Ora, essa! — A voz arranhada do bichano foi minada pelo riso da bruxa, enquanto Wanda não sabia o que dizer. — Não é sábio fofocar sobre as vidas de um gato. Que grosseria!

— Hã, Agatha… Me perdoe por, hm, bisbilhotar sua casa e fazer o Ebony perder uma vida. Sei que eu deveria ter vindo mais cedo e…

Ela fez um gesto com a mão, abanando suas preocupações. Com um outro aceno, convidou-a para se sentar nas banquetas da cozinha. Era tão estranho vê-la sem névoa cobrindo o corpo da mestra, sua voz desprovida de eco espectral. Principalmente, era estranho vê-la numa roupa mais casual.

— Ebony vive perdendo suas vidas. Vez ou outra ele as encontra em algum canto, então não se aborreça com isso. Agora sente. — A Feiticeira obedeceu, não sem antes lançar um olhar incerto para o gato. Não queria que ele tivesse perdido uma vida. — Sei que a senhorita gosta de chá. Só precisamos agora de algum acompanhamento gostoso, alguma bolacha...

— Bolo!

— É, se você não tiver comido tudo. — Agatha ralhou com o felino. — Como é difícil conviver com um gato chocólatra...

Wanda assoprou a caneca, observando a dinâmica agradável entre gato e sua dona. Nem parecia que se tratavam de bruxa e seu familiar, nem parecia que Wanda tinha vindo praticar seus poderes heréticos naquela casa. Finalizando o primeiro gole, ela observou a cozinha. Ervas, como alecrim e tomilho, estavam penduradas no teto; todos os temperos permaneciam expostos em vidros e na bancada de ilha havia um apoio para um livro de receitas. Com a quantidade de inox e a eletrodomésticos modernos, Wanda refez a sua opinião de bruxas levarem uma vida humilde.

— Beba, menina. Temos muito o que conversar. Eu soube o que houve, pois o que Ebony sabe, eu sei. Sei até que deu a moeda de prata pra Barnes. — Disse séria, então riu. Seu risos, no entanto, foi breve. — Foi por pouco em Wundagore, e agora em Bucareste.

As palavras enrolaram pra sair de sua garganta. Não era como se não a conhecesse, no entanto era estranho se abrir tanto para quem trocara palavras somente em sonhos, em planos astrais. Ao mesmo tempo, Agatha já tinha a ajudado em momentos críticos. Não parecia real estar a um metro de distância dela ou menos, separada por um balcão de ilha como se tivesse só de visita na casa da avó, enquanto o gato bebia leite em sua vasilha de cerâmica no chão.

— Sinto que… — Deu mais um gole no chá, pensando. — Meus poderes querem extravasar meu corpo, mas não sei lidar com isso. Ao mesmo tempo que me sinto bem ao usá-los, cansa tanto… E é perigoso.

— Seus poderes querem escapar do corpo ou você quer afinal permitir-se… Bem, permitir-se? — Não veio nenhuma resposta imediata. Wanda ainda absorvia a o verbo permitir aplicado a si própria. — Cansa aqui, não?

Agatha apontou seu dedo indicador magro e de pele um tanto manchada, em direção a cabeça, aos seus cabelos grisalhos é bem alinhados.

— Sim.

— É porque você ainda pensa muito. Veja, pensar não é ruim, não é isso o que quero dizer. Acredito que a situação seja quase como… Aprender a tocar um instrumento musical. Não é justo pedir que toque uma sinfonia inteira de forma impecável se não tem horas de estudo. Tampouco faz bem pensar demais enquanto toca. Pode até fazer bons acordes, mas… Sem treino, não há evolução. Distraída, você erra. Cansa até pegar o jeito, mas lhe trará muita satisfação. É quase um frescor novo.

— Oh. — Foi o máximo que ela foi capaz de dizer. Imaginava a sensação de não se sentir inteiramente tensa ao fazer magia, de não sentir que iria mandar tudo pelos ares ou não iria rasgar e tecer a realidade. Parecia um sonho. Permaneceu alguns instantes meditando em seu chá sobre isso, até que Agatha lhe chamou a atenção.

— Eu estava na Travessia da Bruxa.

Wanda sentiu sua cor escarlate fisgar, de repente acesa.

— Descobriu algo?

— Sim. Algo antigo. Poderoso. E o tempo é curto. Jamais vou conseguir tirar Natalya de lá, mas… Você sim.

— O que eu preciso fazer?

— O que alquimistas fazem?

Silêncio na cozinha. Só o barulho do vento nas plantas do lado de fora. Aquilo era um teste?

— Buscam a Pedra Filosofal, acredito. A cura para todos os males. Transformação de ferro em ouro.

A idosa assentiu, mas sua explicação foi outra.

— A Alquimia é decompor. Recompor. Transmutar tudo para algo mais etéreo. Existem etapas, trocas equivalentes. E você está pronta. — Agatha deu de ombros, finalizando sua introdução. — Você tem talentos incríveis, menina. Com eles lapidados, se tornará uma das maiores feiticeiras do nosso tempo e salvará Natalya.

— Existe um preço?

— Minha querida, praticamente tudo tem um preço. Para conseguir algo, abdicamos de outra coisa. Não é sempre dramático como pode parecer e é claro que nem tudo deve ser pago. Nem todos requisitam um pagamento. Ao escolher o sabor de morango na sorveteria, você negou o de chocolate e o de creme. Ao dar nosso amor a alguém, muitas vezes não demandamos nada em troca. Simples e tão complexo. — Ela riu depois seu rosto tornou-se sério de novo. — E muito que a vida pediu, você já pagou.

Ela se lembrava do próprio pensamento sobre tudo ser um processo de abrir mão. Lembrava-se do rosto de tristeza contida de James à porta da Loja e como ela estava disposta a se afastar para que ele permanecesse seguro, para que ela própria se tornasse capaz de proteger a si e a ele quando os desafios chegassem - pois sempre chegavam.

E sua mão esquerda abriu-se de maneira inconsciente. Largaria também o pesar.

— A primeira etapa é calcinação. Queimar até às cinzas. Morte. Mas você já fez isso muitas vezes. Morrer e morrer é uma experiência débil se não nascemos de novo. Se não vivermos de novo. — Uma nova pausa, pois Agatha também tomava um gole de seu chá. — E você também viveu de novo, não? Por alguns instantes, ao menos.

— Sim. — Ela concordou, sua voz querendo pronunciar o nome de seus amigos, de seu amante, de seu irmão, seus pais. Viveu, sim. E viveria mais, por todos eles. Por ela mesma.

— Então, vamos solidificar isso. O primeiro passo ainda é um passo. Talvez o mais importante deles, e deve ser encerrado para a etapa seguinte acontecer. Então, vá descansar. Amanhã a noite teremos uma cerimônia.

Wanda assentiu e logo subiu as escadas que levavam ao seu quarto - novo quarto. Apesar das promessas de transformação, foi difícil dormir. Em seu sono, ela ainda escutava o uivo do vento e perguntava se, em Bucareste, James Barnes escutava também.

* * *

A conversa entre Agatha e Ebony era um som distante na cozinha para Wanda, pois sono e olheiras tornavam sua atenção nebulosa. Seus poderes realizaram o pequeno truque de mexer a colher de sua caneca sem as mãos enquanto ela massageava as próprias têmporas para se livrar do cansaço. Seus sonhos foram fragmentados, confusos demais para que tivesse uma ideia mais concreta do que realmente viu. Só acordou e vestiu as peças que Agatha havia deixado em seu quarto, todas pretas. Parou um momento, alcançou a pequena fatia de pão integral com geleia caseira. Ao menos pode sorrir um pouco ao ver que a geléia era de mirtilos, a verdadeira fruta favorita de James Barnes.

Ebony pulou ao seu lado, também numa baqueta virada para o café da manhã. Ele já tinha tomado duas vasilhas de leite, além de ter comido uma quantia equivalente ao seu peso. Justificara seu apetite dizendo que era necessário muita energia para o começo de uma de suas novas vidas. Sua mestra negava que tal coisa era verdade, mas isso não impedia o gato de comer.

— Ei, bruxa boba. Você ainda não tirou sua carta.

— Que carta?

O gato indicou um baralho acima da mesa, perto da jarra de leite. As cartas eram longas e brancas, com elegantes desenhos em baixo relevo nas cores preta, vermelha e em dourado. Wanda estudou uma delas, observando o verso com o sol e a lua. A carta um arcano maior, A Morte, e sua ilustração era bela, apesar de nefasta.  Colocou-a no no topo novamente. Agatha deve ter captado a tremulação de seu humor, pois abandonou seu foco na comida para explicar:

— Além de café, chá e pães, nós também tiramos uma carta de tarot no começo do dia. Sem pressão. É só um jogo divertido… E quem sabe uma oportunidade de aprender mais com o tempo. — A bruxa pegou as cartas e as embaralhou com destreza, depois tirou uma delas do meio e sorriu satisfeita, mostrando o desenho para o gato e para Wanda. —  A Sacerdotisa.

— Exibida. — Ebony debochou.

O baralho foi colocado na frente da Feiticeira. Ela ainda não entendia tão bem como funcionava, mas podia captar de leve o significado dos arquétipos. Não era difícil relacionar A Sacerdotisa, seu manto longo e sua postura serena com sabedoria, intuição. Era menos difícil ainda relacioná-la com Agatha e seu robe púrpura.

— Deixe-me tentar. — Pegou o baralho, se atrapalhou ao misturar as cartas. Tentando sentir algum tipo de magnetismo mágico que a levasse para a escolha certa, Wanda tirou uma delas com os olhos fechados. Quando os abriu, com a face principal virada para si, viu uma figura escarlate. — Oh.

O diabo.

Era bem simples, assim como os desenhos dos outros arcanos. Ainda elegante. Contava apenas com o esboço de um sorriso largo em carmesim, chifres espiralados na mesma cor. Wanda engoliu seco.

— É uma carta que vai te deixar preocupada, mesmo que não seja de todo o mal. — Agatha intercedeu rápido. — É um alerta literalmente vermelho. Pode significar, e quero que entenda isso com leveza, energias negativas muito sedutoras. É uma carta que pede que você preste atenção, entende?

— Acho… Que sim.

— Então tire mais uma, isso vai acalmar seu coração. Quando não estamos certas sobre algo, podemos tentar de novo.

Wanda soltou um suspiro e deu uma nova chance ao tarot. A figura que recebeu era deveras mais simpática, seus trajes pesados cobertos por estrelas douradas.

O Mago.

— É uma boa combinação.

— É? — Wanda se virou para o gato, observando ainda os detalhes da carta. — Por quê?

— O Mago representa, dentre outros significados, o poder de mudar as coisas. Pede prudência, ainda que lhe dê o sinal de que você tem meios de alcançar o sucesso.— Ele disse, muito seguro de si. — É claro que pode ser relacionado com ilusões, mas como  é carta geralmente positiva ao lado do Diabo, sinto que…

— Diz que eu tenho o que é necessário para enfrentar a negatividade. — A Feiticeira concluiu, recebendo um sorriso orgulhoso de Agatha. — É, vocês me convenceram. De um jeito muito estranho. E agora? Vamos fazer algo tão dramático quanto essas cartas?

— Ah, querida. — A bruxa riu e começou a colocar as louças na pia. — É só o que fazemos!

A despeito da ideia de Wanda sobre como era a casa de Agatha Harkness e como seria sua rotina de mestra bruxa, a verdade é que o dia continuou de forma bem normal. Talvez houvesse de fato algo dramático em prosseguir com tarefas domésticas numa casa que não tinha relógios à vista e, num primeiro instante, ela se sentiu um tanto insultada. Tinha ido até a casa de Agatha para desenvolver seus poderes e descobrir mais sobre seu passado, não para ajudá-la tirar pó dos móveis. Não valia a pena trocar desventuras com James Barnes por faxina. Ao ver o tempo passar, porém, seus pensamentos começaram a tomar forma.

Agatha estava familiarizando-a com seu lar e com ela mesma, dando-lhe tempo para pensar por si própria enquanto fazia alguma coisa. Em suma, era uma releitura moderna e nada fatal das tarefas realizadas por Vasilisa, justamente no conto folclórico envolvendo Baba Yaga que havia se recordado no dia anterior. Havia, ou então ela imaginava existir, um significado nas tarefas tão ordinárias, assim como cartas bobas poderiam carregar arquétipos.

Ao lavar a roupa de sua mestra, ela pôde ver as costuras de suas vestes, o queimado das mangas de um manto ritualístico e sentir o cheiro do incenso de mirra no tecido. Era observar um mero vislumbre do avesso de Agatha, da persona que ela vestia. Ao lavar as suas próprias peças, viu os rasgos de fuga, o desgaste e as cinzas - e pôde purificar tudo aquilo. Quando varreu o chão, ela organizou suas próprias ideias e soprou para fora o pó de coisas antigas, obsoletas. No momento em que cozinharam o almoço, Wanda acendeu o fogo liberando junto a centelha luminosa de sua própria imaginação; Ao comer, era como se alimentasse sua própria psiquê.

Chegou mais um fim de tarde. As duas estavam na estufa ao lado da casa, um local que Wanda não tinha explorado até então. Era uma estrutura de vidro de tamanho considerável, maior até mesmo que o apartamento dela e de Bucky em Bucareste, e abrigava toda sorte de planta em vasos e canteiros. Existiam folhagens de cor intensa, certas flores começavam a desabrochar. Agatha disse que ainda não era hora de pegar mandrágoras, mas que tinham que selecionar frutos de uma vigiadeira - espécie que a jovem sokoviana desconhecia. Depois que pegaram uma quantidade que a mestra considerou suficiente, ambas se sentaram à mesa de madeira que havia ali dentro da estufa, próxima das ferramentas e de uma bancada de jardinagem. Na frente da Feiticeira Escarlate, repousavam dois sacos: um para frutos bons, outro para frutos ruins. No meio disso, uma grande pilha a ser selecionada. Ela pegou um dos triângulos arredondados e azuis, os tais frutos que mais pareciam sementes, e que poderiam armar um círculo de proteção segundo Agatha.

— Você tem que apalpar um pouco. — A anciã disse, mostrando um bom exemplo. — Se estiver muito duro, não serve. Se estiver muito mole, pior ainda. Para criar um bom sumo protetor com esse fruto, tem que ter uma textura perfeita, afinal, será importante para hoje a noite.

Wanda assentiu e começou a trabalhar. Era necessário também fazer certas distinções de fatos da sua vida, o que era bom para ela e o que não era. Permaneceu um bom tempo calada ao separar os frutos azuis, até que Agatha puxou assunto:

— O que está pensando, menina?

—  Bem, eu… Estou pensando no significado dessas tarefas. Eu esperava um discurso elaborado seu, mas… O silêncio do dia me fez pensar em muitas coisas.

— Como o que?

— Que não posso variar entre os extremos de obedecer meu ego, mas não posso viver pelos outros. Eu já havia pensado nisso antes, mas era um pensamento um pouco… Emotivo demais. Eu me arrependo de coisas que aconteceram, coisas que eu fiz. E ao mesmo tempo não dá mais para viver em estagnação.

A outra lhe ofereceu apenas um sorriso de lado. Depois, começou a rir.

— O que…? — Wanda estreitou os olhos, captando o humor da aura púrpura dela. — Não significava nada?

— Eram só tarefas, mas veja… Veja só o que mais você aproveitou delas. Poderia ter apenas sentido pena de si mesma, talvez raiva. Mas optou por um ângulo mais positivo, o que quer dizer que já trilhou um bom caminho sozinha até chegar aqui. Estou orgulhosa.

— Você me enganou! — Wanda riu, jogando nela um diminuto grão azul que seria descartado. — Bruxa.

— Admito que era um teste. Sempre arrancamos significado das coisas, seja algo bom ou ruim, e eu queria ver o que seria. Confesso também que estou aliviada por não estar brava. Quando fizeram coisa semelhante comigo, fiz mais do que só jogar um grão na minha mestra.

A Feiticeira continuava a se sentir idiota. Ao mesmo tempo que estava feliz por pensar coisas boas, parecia tolice ir tão longe. De fato, era intensa demais e isso a deixava um tanto embaraçada.

— Vai me obrigar a varrer o chão amanhã?

— Não, amanhã você vai começar a estudar de verdade e usarei magia para manter as coisas em ordem. Agora, quero que se limpe e se vista. Quero também que pense no que vai se livrar hoje no ritual. Você pode escrever uma carta, pode até concentrar seus pensamentos numa pedra. Caso tenha algum objeto, pode levá-lo. Pense bem. Daqui a pouco irá escurecer e nós vamos realizar a cerimônia do outro lado do lago.

 O banho foi longo - pois tinha muito no que refletir - e, ao descer as escadarias, viu que sua mestra já estava pronta. Trajava um manto ritualístico roxo muito semelhante ao que ela tinha lavado pela manhã, sua figura imponente e tão mística quanto qualquer aparição sua em névoa lilás. Wanda, por sua vez, estava vestida com peças simples e pretas, uma blusa de mangas até os cotovelos e uma longa saia de aspecto opaco. Foi o que tinha encontrado no armário, inclusive por indicação de Ebony - que agora dormia.

Agatha nada disse e a guiou para a porta que dava para fora, um breve vestíbulo. Numa parede, havia um imenso espelho pendurado com um altar abaixo, na parede oposta existiam mantos pendurados em ganchos. Wanda viu a cor vermelha e esticou o braço para pegá-la, mas a anciã a deteve.

— Você merece o rubro. — Disse, sua voz muito calma. — Antes dele vem o negro, depois o alvo. Há o amarelo também. Voltará a vestir a cor escarlate, Wanda, pois essa é a sua cor. Mas agora vista o traje negro e venha para a noite.

Ela assentiu em silêncio e pôs o manto sobre os ombros, cobriu seus cabelos com o capuz. Sua mestra também solicitou que levasse uma cesta de vime, o que obedeceu prontamente, enquanto ela levava uma lamparina à óleo. As duas partiram pelo jardim em direção ao lago enquanto a lua também iluminava o caminho. De repente, Wanda ficou muito ciente da vegetação sob seus pés e o ar que soprava em sua face, bem como a luz da lua que projetava sombras. Seu coração martelava abaixo do peito, porém ela não era ingênua. Não era medo, era antecipação. Sabia que não seria um imenso feitiço, pois assim como Agatha dissera, aquela etapa já tinha acontecido. No entanto, vinha frio de suas entranhas ao saber que acabaria, que então uma nova etapa começaria. Ela queria uma mão para se segurar naquele instante.

Encontraram um barco às margens do lago, onde existia um píer. A madeira da embarcação era escura e na ponta da proa projetava-se uma curva na qual Agatha pendurou a lamparina. Em seguida, a anciã desamarrou a corda que o ancorava com apenas um gesto, invocando seus poderes mágicos, que também levantaram o par de remos da forqueta. Pediu que Wanda subisse e ela rapidamente o fez. Logo partiram, entre o nevoeiro e as águas.

Não demorou para que chegassem ao outro lado, mas a viagem parecia para outro lugar. De fato, Wanda parecia pisar em outro mundo quando desceu do barco, não o ponto iluminado pelo pôr do sol que tinha observado pela janela no dia anterior. O terreno era plano, a vegetação rasa.

Agatha abriu o círculo mágico ao despejar o sumo da vigiadeira em uma circunferência perfeita, embora tenha também descrito o mesmo movimento com a ponta de um punhal ritualístico. Estavam as duas no meio, fogo sem vela acendeu-se no ar para delimitar os pontos cardeais no círculo. Após recitar palavras de proteção, a mestra virou-se para Wanda.

— Por que está aqui?

— Para deixar partir o que se foi. E o que deve ir.

— Bom. Quero que lembre também isso já aconteceu e você não precisa temer, mas que tenha em mente que… Precisamos encerrar algumas etapas na vida e saber que encerramos. Muitas vezes precisamos de marcos.

— Eu sei.

Wanda entendia que tipo de morte ela se referia. Era a morte das coisas que precisavam morrer. Aquele tema trazia dor aos seus ossos e fazia seus joelhos tremerem, mas ela seguiria em frente. Sempre seguiu e esperava que agora fosse, enfim, uma escolha certa. A despeito disso, seus olhos ardiam num choro contido.

—  Lembra-se das primeiras lições? No livro? Você começou com silêncio. E agora? Existem muitas formas de sepultar o que está morto. Pode queimá-lo. Pode levar a água. — Ela fez um gesto em direção a água. — Pode deixar ao cuidado dos céus…

— Irei enterrá-lo.

— Bom. — Ela anuiu. Agora estava mais próxima da Feiticeira, sua expressão era gentil. Wanda enxergou que sua mestra notava o quanto era difícil para ela se desfazer de coisas que eram obsoletas. Já havia enterrado muitas coisas na vida. Recordou-se de Shuri no plano astral e de como aquela exata lição, de deixar o sofrimento para trás, tinha sido dolorosa. — O que enterramos costuma germinar, para o bem ou para o mal. Então, me diga… O que você vai enterrar esta noite?

Wanda não trouxera nenhum objeto. Nenhuma carta, pedra, nada. Apenas disse:

— Minhas lágrimas.

Agatha engoliu seco, impactada com a afirmação. Anuiu com um gesto leve da cabeça e não soube como responder de maneira imediata. Sua voz saiu muito macia e muito cautelosa:

— Então vá, querida. — Mexeu na cesta de vime. Não havia uma pá ou uma ferramenta adequada para tal trabalho, mas um punhal faria o mesmo. — Enterre.

Ela deu um passo incerto para trás, depois ajeitou suas próprias vestes. Já estava com o punhal na mão. Tinha se preparado para chorar apenas quando estivesse com um pequeno buraco aberto na terra, no entanto, assim que seus joelhos tocaram o solo, seus olhos deixaram escapar cada vez mais lágrimas. Quantas vezes já tinha ficado naquela mesma posição, joelhos ao chão e em prantos? Quantas vezes se deparou com uma cova? Fincou a lâmina na grama baixa e começou a cavar. Nunca mais—  não porque seria insana no impulso de ser viva e livre, e sim porque não seria mais a acorrentada à tristeza. Havia provado da alegria por conta de amigos, família, amor, e agora seria por si mesma. Infinita, apesar de tudo. Eram suas lágrimas amargas e impotentes que precisavam morrer.

E morreram, talvez antes mesmo daquela cerimônia. Definharam a cada vez que Wanda decidia crescer ao invés de recuar.

Naquela noite, suas lágrimas foram sepultadas.

 

* * *

Ao acordar pela manhã, Wanda se recordava da volta para a casa de Agatha após o ritual como um mero borrão indistinto. Só sabia que tinha se sentido exausta, mesmo que simultaneamente tenha parecido tirar um peso colossal dos ombros. O que lembrava ao certo era ter sonhado aquela noite. Foi fragmentado e colorido como um caleidoscópio, mas sabia que havia visto o azul dos olhos de Pietro. Ficou na cama assim por um tempo, deitada e deixando a luz do sol tocar seus dedos enquanto o sonho desvanecia no ar. O calor ameno segurava sua mão com carinho, feito o toque de… Seu irmão. A Feiticeira sorriu.

Levantou-se, trocou de roupa, desceu as escadas. Ao chegar na cozinha, viu Agatha e Ebony tomando café da manhã. Wanda ofereceu-lhes um tímido cumprimento ao sentar-se à bancada, já pegando o chá para sua caneca. Não sabia se deveria demonstrar sua agitação, seu ânimo para aprender mais coisas. Se achava tola. De qualquer modo, não demorou a perguntar:

— O que mais faremos hoje?

A bruxa sorriu de lado.

— Posso dizer que serão coisas misteriosas, mas primeiro....Pegue sua carta do tarot. Vamos ver o que o destino reserva.


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Notas finais do capítulo

*Todos os capítulos na casa de Agatha Harkness terão algum viés das fases alquímicas na psicologia. É um conteúdo vasto, mas principalmente apoiado por Carl Jung. Tratarei Nigredo, Albedo, Citrinitas e Rubedo. São conceitos incríveis para apoiar um desenvolvimento "espiritual", um desenvolvimento de self e individuação.

*Nigredo: Morte espiritual, digamos assim, uma morte preparatória para renascimento. É um resumo muito - MUITO - superficial do que significa, mas quis dar uma ligeira explicação sobre. Tenho vários links de apoio caso alguém queira dar uma olhada melhor nisso e deixo aqui um link bem legal do SapoLifestyle:

https://lifestyle.sapo.pt/astral/espiritualidade/autoconhecimento-espiritualidade/artigos/as-4-fases-da-obra-alquimica-nigredo-ou-obra-ao-negro

*Memento mori = lembre-se que você morrerá.
*Menento vivere = lembre-se de viver.

*Eu também queria brincar um pouco com o conceito de ciclo da Alquimia e da Magia; tudo o que vive, morrerá; tudo o que morre, há de viver. Solve et Coagula, guys.

*A passagem pelo lago também é algo simbólico. Sempre ouvimos sobre embarcações para o submundo, então...

*Outro livro de psicologia que não me canso de abordar é "As Mulheres que Correm com os Lobos". Recomendo para todas. Aqui faço referência na parte de Baba Yaga, que é um conto muito presente no folclore eslavo e que, segundo a autora, também é um conto de resgate do "eu". Toda a parte das tarefas domésticas feita por Wanda também é apresentada no conto e cada coisa tem um significado simbólico = assim como a Feiticeira comenta com Agatha. Nesse livro é também abordado o tema de vida-morte-vida.

*Vigiadeiras não existem. É uma árvore que inventei, então... acho que elas existem agora hahah

*As cartas de tarot dessa carta serão mais proféticas do que a Feiticeira imagina hihihi

*Manas, tem sido um desafio escrever esses capítulos na casa da Agatha. É um tema que me interessa muito, mas que eu quis dar esse contexto *psicológico* pra não ficar só no "Então Wanda leu vários livros e aprendeu mil coisas" haha Sugestões são sempre bem-vindas!

*O capítulo foi revisado, mas existe a possibilidade deste arquivo ser sabotado pela HYDRA. Caso encontre algum erro, favor reporte à Shalashaska

*Chega de notas.



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