Vazios escrita por Shalashaska


Capítulo 75
LXXV


Notas iniciais do capítulo

25/01/2018
Devido aos comentários liiindos que recebi, aproveitei para adiantar já esse capítulo. Foi bem emocionante escrevê-lo e espero que aproveitem a leitura! Muito obrigada ♥



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Franziu a testa antes de acordar, sem nem saber se tinha acordado de fato. Ouviu um barulho muito ao fundo, música, quase tão distante quanto uma memória ou um sonho. Parecia uma da playlist do iPod de Sam Wilson. Wanda abriu os olhos devagar, sentindo seu ombro ranger de dor. Seus pulsos ainda estavam marcados pelo aperto das mãos do robô, principalmente o braço em que levava a pulseira dada por Shuri. De súbito sentiu falta da amiga, tão forte e inquebrável. Ela sempre sabia o que fazer.

Virou seu rosto, notou que estava na cama do apartamento em Bucareste. Mesmo depois daqueles dias todos ali, ela não tinha dormido no quarto e sim na sala. Com Bucky. O som do nome dele em sua própria cabeça lançou aquela sensação morna e ao mesmo tempo elétrica em seu corpo e ela esticou o braço na cama para ver se ele estava ali, ao seu lado.

Tateou uma almofada felpuda. Uma almofada quentinha e que reclamou.

Inclinou a face e encontrou o gato numa pose largada, a língua pra fora. Ela quis rir, feliz por ele estar bem e por ter soltado um miado incomodado, sonolento. E então soltou um suspiro cansado, olhando para o teto. Fechou as pálpebras mais uma vez.

Estava viva. E todos os outros também estavam. Bucky, Remy, Anna Marie e Ebony.

James Barnes adentrou o quarto, sentou-se na beira da cama. Wanda estreitou os olhos para saber o que estava fazendo, até que o viu trazer um recipiente com água e duas tiras de tecido rasgado. Não tinha percebido que ela havia despertado. Ele molhou uma das tiras, deixando-a úmida, e se precipitou em direção ao ombro ferido da jovem. Ela permitiu que o soldado terminasse seu trabalho de limpar e estancar a ferida em sua pele, sentindo seu coração transbordar a cada toque delicado. E então, quando terminou com um suspiro cansado, Wanda alcançou a mão dele com a sua.

— Oi, James.

As feições dele passaram de surpresa, preocupação e então… Carinho. Tinha olheiras fundas, mas ainda lhe deu um sorriso contido enquanto Wanda se ajeitava nos travesseiros, sentando-se.

— Oi, boneca. Você se safou de uma encrenca.

— É… Pode-se dizer que eu estou sempre encrencada. Mas eu não estou sozinha. — Ela ainda segurava a mão dele e desceu sua atenção para seu tronco. Estava sem camisa e haviam faixas finas em seu torso, também por conta dos ferimentos. Talvez estivesse trocando as faixas assim como tinha feito com ela. Em seu bíceps havia uma quantidade maior de bandagens devido ao tiro de raspão. Foi aí que se lembrou. — Ah, seu braço! Você também foi ferido. Está doendo? Talvez eu possa fazer algo…

Wanda aproximou-se dele, observando com cuidado a pele de seu músculo e a bandagem por cima. Notou que James, por sua vez, encarava seu rosto, seus lábios, e então ela repetiu o gesto. Seus olhos foram atraídos para a boca entreaberta e hesitante dele. Sentiu sua respiração, tão perto. A mão livre de Bucky então segurou seu queixo e a trouxe para si, selando um beijo ávido.

Eletricidade incendiou o interior da Feiticeira Escarlate à medida que os lábios do soldado se encaixavam nos seus e sua língua encontrava a dele. A adrenalina bombeada em seu coração percorria o corpo como se fizesse algo proibido e perigoso, mas a gentileza com qual James a acariciava lhe dava a segurança de que… Bem, ela não exatamente do quê. E talvez não importasse. Mas lhe dava segurança sólida. Seu tórax se derramava sobre o próprio sentimento, tão passional e rubro, e tal cor era absorvida com verdadeira sede pela aura de James Barnes. Ele desenlaçou sua mão da dela e tocou suas costas, trazendo-a mais para perto e de um jeito que ela quase se desequilibrou.

O beijo sofreu uma pausa, Wanda se apoiou com uma mão sobre o peitoral dele e quase bateram o nariz um no outro. Era reconfortante saber que ele sofria tantas palpitações quanto ela, reconfortante e terrível. Bucky segurou seu rosto e a encarou por mais um segundo, acariciando sua bochecha com a lateral do dedão.

Os lábios dos dois estavam mudos. Havia silêncio, algumas notas musicais ao fundo, do iPod. Não havia o que dizer, nada que traduzisse o que queriam falar, e na realidade não era necessário.

Era mais uma não-conversa dos dois.

Seus lábios se tocaram de novo, sem interrupção. As duas mãos de Wanda seguravam de maneira cálida a base pescoço dele, seus dedos por vezes subiam e desciam por seus cabelos. Com um dos braços, Bucky a segurava firme - o que era bom, pois ela sentia que poderia derreter a qualquer segundo - com o outro acariciava sua nuca, coisa que justamente a fazia derreter ainda mais.

Pararam aos poucos, entre uma respiração ofegante e beijos curtos. Wanda sentia seu rosto arder em rubor, seus lábios pedindo por mais. Entreabriu os olhos, para ver Bucky ainda de pálpebras fechadas, zonzo e enfeitiçado. Ele engoliu seco e fez força para encontrar a voz, que saiu rouca. Se encararam.

— Boneca, eu… Bem, isso com certeza tirou a dor do meu braço.

Ele não conseguiu dizer mais nada e, no fim, Wanda o abraçou forte e riu. Seu rosto repousou no ombro esquerdo dele, seu coração batia colado com o de James. Mal se recordava da dor dos ferimentos, do desespero da noite. Existia apenas ele e ela numa cama desajeitada em um apartamento em Bucareste, um gato dorminhoco lhes fazendo companhia. E assim eles permaneceram por incontáveis minutos.

Era fácil esquecer-se do que pensara na noite anterior, sobre aprimorar seus poderes e sobre enfrentar coisas que precisavam ser enfrentadas. Aquele instante calmo a fazia ignorar todos os problemas que existiam do lado de fora daquele quarto. Wanda era capaz de fingir, mais uma vez, que nada mais lhe atingia. No entanto, não era o certo. Tampouco era uma forma de se martirizar. A questão era, parafraseando suas próprias palavras, fazer as coisas certas do modo certo. Sacrificar o ego pelas decisões corretas, mas não se tornar um indivíduo sem essência. Era mais difícil chegar a tal conclusão do que enfrentar um Sentinela.

Era difícil ter toda aquela realidade utópica com Bucky Barnes e se afastar dela.

— Eu preciso te dizer algo, James. — Disse ela, com cautela enquanto acariciava a nuca dele. Bucky aproveitou o instante para arrancar-lhe outro breve beijo.

— O que é?

— No meu aniversário, quando você saiu para comprar as flores. — Continuou, agora afastada do peitoral dele. Arrumou sua postura na cama, sem saber como que chegar ao ponto. Brincou com a barra da saia e da manga esquerda com as pontas dos dedos. Afinal percebeu que a manga direita de sua blusa vermelha estava cortada de maneira cuidadosa, pois foi necessário que Bucky cortasse para tratar seu ferimento. Sua hesitação fez com que o rosto de James adquirisse nuances de preocupação. —  Eu encontrei a Loja de Agatha.

— Você…? Você encontrou?

— Sim, mas eu não… Eu não podia te deixar. Não queria. E no fim, nós quase…

— Você não está se culpando pelo o que houve no metrô, está? Salvou todo mundo. Ebony me contou quando acordou hoje cedo. E fiquei aterrorizado quando te vi caída na rua. Eu pensei que… — Ele  desviou o olhar e comprimiu os lábios. — Que ia te perder.

— Não vai me perder.

Silêncio.

— Você está pensando em ir, não?

Sim. Eu precisava te contar, mas não quero que… — Ela limpou a garganta, evitando chorar. Apesar da força que fazia, uma lágrima escorreu de sua bochecha. Não chorou mais do que isso, mas palavras jorraram de sua boca. — Não quero que fique triste comigo. Ou bravo. Eu te amo tanto. Me perdoa.

Bucky estudou seu rosto. Odiava a ver chorando. Ele ajeitou uma mecha dos cabelos dela e inspirou fundo, as palavras tomando forma. Se aproximou da Feiticeira, abraçou-a mais uma vez. Beijou o topo de sua testa e depois disse baixinho em seu ouvido, sua voz suave como o vento.

Eu… Eu também. Wanda, — Ele continuou. — E eu conheço esses seus olhos e sei que você vai fazer o que veio fazer. Eu… Eu só quero mais um dia seu. Um adeus. Porque eu nunca tive a chance de me despedir de ninguém.

— Ah, James. Eu vou voltar. — A jovem deu um sorriso quebrado a ele. — Mesmo que eu não esteja ao seu lado, eu estarei pensando em você. Sonhando contigo. E você vai poder me encontrar em suas memórias, quem sabe no Brooklyn ou então em Coney Island.

— Lá nós nos beijamos na Wonder Wheel?

— Sim. — Beijou-o, e a cada pausa, a cada lugar que citava, era um novo beijo. — Na Wonder Wheel. No Luna Park. Na rua. No Dream State. E dançaremos jazz. Talvez eu pise nos seus pés. — Ele riu, ela também. — Nós somos uma bagunça, James.

— Uma bagunça terrível, boneca. Isso te incomoda?

— Não. E você?

— Não. — James Barnes encostou seus lábios nos dela, de forma longa, cálida e casta. —  Café da manhã?

* * *

 

James listou na cozinha os ingredientes que faltavam para uma refeição decente e cuidou um mais um pouco do gato, colocando-o no sofá da sala para assistir um programa culinário na televisão. Ele parecia bem, inclusive seus ferimentos não estavam nada como no dia anterior, o que o fez acreditar que o tal felino tinha algum tipo de habilidade especial de cura, regeneração. Mas isso não diminuía seus protestos e demanda por comida, doces. Enquanto tratava de Ebony, Wanda tomava banho, portanto era mais um instante a sós entre soldado e o gato místico. Ao afofar a almofada para o bichano, Bucky perguntou:

— Você sabia? Que ela tinha encontrado a Loja de Bruxa?

— Sim. Soube pela manhã de ontem. E soube que ela preferiu você. — Ebony o encarou longamente. — Não foi uma decisão ruim, embora tenha sido difícil. E é claro que é melhor Wanda aprender mais sobre si, mas nem tudo deve ser decidido pelo ideal, pela razão… Ainda mais ela, que sempre teve que pensar em sobrevivência. Às vezes temos que escolher o que é bom para nosso coração.

O soldado fingiu se distrair com o comercial na televisão antes de responder.

— Ela me disse em São Petersburgo que… Certas coisas surgem de repente, que outras a chamam. — Ele divagou. — Uma telepata em Zurique, à caminho para Wakanda, mencionou que feiticeiros sempre estão onde devem estar. Então acho que… Wanda tomou a escolha certa em ir. Vai fazer o que veio fazer, afinal. E é por isso que não me preocupo muito.

Já fizera isso uma vez, de sair sozinho para encontrar a si próprio e seu lugar no mundo. Se afastou de Steve por esta razão e o destino uniu o caminho dos dois de novo. Ele entendia que a Feiticeira necessitava desse tempo e esperava que mais uma vez lhe concedesse a sorte de ter seu caminho entrelaçado com o dela.

— Por isso que a deixa ir. — O gato concordou, despertando-o de seus devaneios.

— Sim.

— Porque você a ama.

Bucky engoliu seco.

— O quê?

— Wanda ficou mesmo depois de ter encontrado a loja de Agatha Harkness porque te ama e você não refuta a ideia de vê-la partir porque seu amor e respeito por ela são maiores do que seu ego. É simples e, ainda assim, os dois não conseguem falar diretamente sobre isso. Vocês são engraçados.

— Você ficaria surpreso em saber o quanto as pessoas não falam o que sentem.

Ele afirmou tal coisa lembrando-se não apenas de si mesmo, embora tenha se sentido particularmente incomodado pela fala do gato. Bucky estava ciente de que não falava tudo o que pensava ou sentia, mesmo que não achasse que alguém fizesse isso. Existiam momentos em que palavras eram pesadas demais, marcantes demais. Bucky sabia do poder delas, pois foi preso e libertado na sua própria cabeça por palavras.

O gato não tomou a frase como ofensa; inclusive soltou um longo bocejo antes de dizer qualquer coisa.

— Não, não fico surpreso por não falarem. O que me surpreende são as maneiras que vocês, humanos, encontram de expressar seus sentimentos sem palavras.

— E por que você fala tanto?

— Porque eu posso. E porque não falar um dia me fez falta.

Bucky soube reconhecer uma história não dita e assentiu em silêncio. O gato estava certo, afinal. Pensou que ele não diria mais nada, até que o bichano mais uma vez encarou-o fundo com seu par de olhos amarelos.

— Não se preocupe, Barnes. Você está certo. Feiticeiros sempre estão onde devem estar e certas coisas chamam por Wanda. Vocês dois vão se encontrar de novo e eu poderei miar sobre isso.

Ele passou as pontas dos dedos na cabeça do felino. Não existiam formas exatas de explicar o que houve entre James e Wanda, e eles se enrolavam em metáforas e misticismo. Não teve escolha senão acreditar no gato falante, esperando que fosse mais um daqueles momentos em que palavras carregavam poder.

Depois que a Feiticeira terminou seu banho e recebeu mais alguns curativos nos joelhos, eles desceram a rua para comprar o almoço. Os dois foram até o mercado da esquina. Era possível ouvir sussurros na cidade sobre o que aconteceu ao sul, na estação do metrô. As pessoas comentavam na rua, falavam sobre o bloqueio numa determinada linha e mencionavam imagens estranhas que foram notificadas pelo jornal local. O caixa recomendou que tomasse cuidado, uma vendedora comentou que deveriam levar todos os mutantes até Genosha ou então inventar logo uma cura.

Bucky fechou a expressão, embora estivesse um tanto aliviado por Wanda não entender o suficiente de romeno para captar aquela ofensa. De qualquer modo, não pretendia voltar naquele mercado tão cedo. Na realidade, ele não sabia o que iria fazer depois que a Feiticeira partisse e não queria pensar nisso naquele momento. Não conseguia. Nem tivera muito ânimo ou cabeça para responder a meia dúzia de mensagens preocupadas no seu comunicador de contato direto com Outer Heaven. Disse apenas que estavam bem e que depois falava com Steve. Só não queria que seu amigo atravessasse países para checar sua segurança. Ao lado comunicador, jazia a seringa vazia e o celular com a foto do Sentinela. Eram provas para juntar com as investigações dos Vingadores Secretos num futuro próximo. Perto do abajur do criado mudo, ficou a moeda de prata de Wanda. Ela disse que não iria mais precisar daquilo e lhe ofereceu como uma maneira de Bucky não se esquecer dela.

Mas como ele poderia?

Eles cozinharam juntos. Wanda adicionou paprikash na receita. Comeram. Lavaram a louça. Se beijaram. O tempo parecia escorrer devagar e rápido simultaneamente, e se James Barnes forçasse um pouco mais a imaginação, aquele dia poderia ser como qualquer outro. Nem parecia que ela ia embora.

Até que Wanda começou a fazer as malas.

A primeira coisa que ela mexeu foi nas flores que estavam na jarra de vidro. Jogou a água fora, olhou para as pétalas murchas das rosas caninas. Secou as pontas do ramalhete com um pano de prato, seus movimentos muito delicados.

— Eu… Eu queria que tivesse durado mais tempo.

O murmúrio dela foi baixo, estava próxima da luz cálida da janela.

— Eu também. — Ele engoliu seco.

A Feiticeira não jogou-as no lixo, porém. Repousou-as entre as páginas de seu grosso livro roxo, aquele que a viu pegando na biblioteca de Wakanda. Estava determinada a levar aquelas flores e aquele momento consigo, mesmo que não fosse igual ao que era antes.

— Não pense isso como algo definitivo. Pense que estou indo para… — Um gesto vago ao colocar o livro “Chapeuzinho Vermelho” na mochila. Ela já tinha guardado a estatueta de madeira feita por Piotr, agora guardava seu livro roxo também. — Não sei. Um retiro. Uma reabilitação. Para enfim ficar melhor.

Ele se apoiou com o quadril na bancada, cruzando os braços. Talvez ela estivesse tentando convencer também a si própria.

— Você não está doente e nem é drogada.

— É, eu me expressei mal. Vou então… Fazer um curso. Longe. E voltarei sabendo mais coisas. Terei mais histórias pra contar. E então passaremos a tarde comendo doces no tapete.

O olhar deles se cruzou por um segundo. Ele pôde enxergar que Wanda fazia esforço para minimizar o sofrimento, dele e dela.

— Sabe quanto tempo dura esse curso?

— Não.

— Seria melhor se soubesse.

— Sim, seria. — Comprimiu os lábios e mudando o foco da conversa. — Vai ficar aqui no  apartamento do Remy?

Nosso apartamento. E acho que sim, por enquanto. — Ele não fazia ideia, na verdade, e não quis trazer mais peso a conversa. Armou-se de um meio sorriso ao continuar: — Mas uma hora, no futuro, vou ter que me preparar. Talvez tenha que pedir asilo político em algum país distante, pois dúvido que seu pai vá ficar muito feliz que… Bem, que a gente esteja junto quando ele só me pediu pra cuidar de você.

Houve uma pausa e, no fim, ela sorriu.

— Gostei do jeito que disse junto. — Um arrepio subiu sua coluna pelo tom da voz macio dela, o que o fez engolir seco. Lembrar que agora conhecia o sabor de seu beijo piorava tal sensação e saber que não provaria tal doçura de novo tão cedo abria um buraco em seu peito. — Posso dizer a ele que você tem cuidado de mim muito bem. O que acha, senhor Barnes?

— Que você vai falar nada mais que a verdade. — Entrou no jogo dela. — E que eu serei um homem morto. Ou sem braço.

Wanda balançou a cabeça.

— Se vai ficar aqui, então vou deixar a foto e o desenho. — Ela se referiu às imagens emolduradas. — Você vai ver Steve, Natasha e eu todos os dias, se bem que poderia voltar para Outer Heaven. É mais seguro e me deixaria mais tranquila, mesmo que eu confie em você. — Outra pausa. — E vou deixar o iPod para você ouvir jazz.

— Pode levar a foto e o desenho, boneca. Sei que vai querer vê-los também. — Sorriu. — Mas deixe o iPod.

Wanda assentiu e Bucky a fez largar a mochila por um momento, pegando suas mãos frias com cuidado. Se interromperam para colocar uma música suave ao fundo, da playlist de Sam Wilson, depois voltaram a dançar em um ritmo lento, tolo. Ela repousou a cabeça em seu peito, não falaram sobre escolhas, sobre palavras, perigos, ou sobre saudade. Ambos compreendiam o significado de tudo aquilo. Fora a música, existia somente silêncio.

 * * *

O caminho até a Loja de Bruxa foi percorrido a pé, mas Bucky considerou o trajeto curto demais. Segurava bem a mão direita de Wanda Maximoff, mal encarava o trânsito na rua ou a luz que caía no horizonte. Era fim de tarde, ela vestia vermelho e ele cinza, com o boné White Wolf na cabeça. Com o outro braço, ele carregava a mochila surrada dela, enquanto a feiticeira levava Ebony no ombro livre. Chegaram enfim à floricultura e pararam para observar o lado oposto da rua.

Não havia nada. Nada que Bucky, em sua opinião mundana sobre misticismo, poderia concluir que ali havia uma Loja de Bruxa. Em seu peito brotou algo que ele não sabia dizer se era esperança de que a Feiticeira ficasse ou se era uma pitada de medo que ela se considerasse ruim por ser rejeitada pela tal Agatha Harkness.

Wanda também não parecia entender.

— Ebony, tem algo de errado. A loja… A loja sumiu!

— Acalme-se, tola. Agatha só não deve estar em casa. Vamos atravessar a rua, posso abrir a porta.

Bucky não se segurou:

— Que porta? Não tem nada ali, só destroços. É como se tivessem demolido o lugar!

— Pelas trevas, como vocês são insistentes. E tolos. — O gato se contorceu no colo da Feiticeira. — Vamos, me solte! Quero descer!

Num gesto atrapalhado, Ebony pulou do colo de Wanda e aterrissou no chão da calçada com irritação evidente. O soldado se surpreendeu pela falta de modos do bichano e sua capacidade de se mover com destreza, mesmo que tenha sido ferido no dia anterior. O gato soltou um suspiro pesado por seu nariz escuro e, empinando sua cauda, se pôs a atravessar a rua. Por sua vez, Bucky franziu a testa aflito, pois o trânsito estava intenso demais para qualquer bichano se aventurar.

— Cuidado, seu gato tonto!

Em resposta, olhou para trás de maneira lenta e displicente. Um carro passou a centímetros de sua cabeça felpuda. A Feiticeira soltou um arquejo.

— Eu não posso ver isso!

Uma nova lamúria veio da boca de Wanda, que em seguida tapou os olhos com as duas mãos e ainda se virou para o ombro de Bucky, evitando ao máximo olhar para o deboche do felino. O único porém é que ela perdeu algo interessante que apenas o soldado pôde observar: assim que Ebony aproximou-se do vazio, seu corpo diminuto simplesmente sumiu. Suas patas desapareceram como se ele tivesse marchado até a inexistência.

— Mas o que diabos…?

— O que? — Wanda perguntou, ainda com o rosto enterrado no ombro dele. —  A Loja apareceu? Ebony atravessou um carro igual na vez que quase levou um tiro no cemitério de Sokovia?

— Não e não.

Ela tirou as mãos dos olhos, mas não se virou.

— Então o que?

— Eu não faço ideia.

Assim que Wanda se virou para entender o que afinal tinha acontecido, a cabeça de Ebony surgiu de novo. Apenas a sua cabeça, na mesma altura que ficaria caso seu corpo ainda estivesse lá, do outro lado da rua.

— E aí? Vocês vem ou não?

James e Wanda obedeceram ao miado do gato, que logo se desintegrou no ar mais uma vez. Cruzaram a rua com pressa, mas ninguém prestou atenção nos dois, nenhum vendedor, carro, transeunte. Bucky tinha a sensação que o caminho que levava para lá era pavimentado por fragmentos de outra dimensão. A luz alaranjada do ocaso gradativamente se tornou roxa à cada passo que davam em direção ao bichano e o cenário ao redor do vazio desfocava-se sozinho como uma pintura muito opaca, quase translúcida. No sentido inverso, a cada passo mais próximo ao local, este começava a se solidificar numa estrutura de dois andares e de ar um tanto gótico, vitoriano, com um toldo vintage na cor violeta e uma lamparina ao lado de sua placa envolvida por uma serpente: Solve et Coagula.

— Que cheiro é esse?

— Lavanda. — Wanda respondeu, a expressão de seu rosto impressionada. — Incenso.

Os dois pararam em frente a porta roxa, ainda fechada. Sem pensar muito na própria hesitação ou no fervilhar na boca de seu estômago, Bucky entregou a mochila para ela, depois a encarou com atenção. Seus lábios rosáceos, seus olhos verdes que agora se avermelhavam por conta de lágrimas. Um sorriso forçado. Ele engoliu seco e pegou na suas mãos de novo, lembrando-se com a delicadeza que ela tinha tocado suas memórias, seu coração.

— Eu vou voltar. — Wanda sufocou seu próprio choro. — Vou voltar melhor. E vou te encontrar de novo.

— Sei disso, boneca. Terá apenas que seguir o uivo no breu.

Ela riu da referência e Bucky logo a puxou para um beijo longo, intenso. Parou apenas quando viu que tanto ela quanto ele precisavam de ar, de modo que ele aproveitou para aspirar o perfume de seus cabelos, gravando-o bem na memória. A Feiticeira retribuiu o abraço e murmurou:

— Quando ver a cor escarlate e precisar de mim, eu estarei lá.

— Isso é um feitiço?

— Não. É uma promessa tola de amor.

Ele riu e a apertou contra o peito por alguns segundos, num abraço firme.

— Que clichê.

— Eu sei. Ouvi dizer que caras adoram isso.

— Ouviu certo. Caí direitinho nessa sua sedução barata. Você é perigosa.

Wanda soltou aquela sua risada nervosa entre a tristeza e humor, limpando lágrimas teimosas de seu rosto ao afastar-se uns dois palmos. Ajudou-a se desvencilhar do choro, passando a lateral de seu dedão em sua face numa carícia distraída.

— É isso que você queria? — Ela deu de ombros, ainda sorrindo. — Assistir enquanto eu me desfaço em prantos? Enquanto eu fico com o nariz vermelho?

— Não exatamente. Mas é sempre bom ouvir juras apaixonadas.

— Ora, seu… — Bucky esperou o xingamento, mas ele não veio. Sua doce boneca parou alguns instantes com a boca aberta antes de concluir: — Não vou conseguir ficar muito tempo longe dos seus flertes bobos. E nem das suas panquecas.

— Estou contando com isso. — Ele fechou os olhos quando Wanda ajeitou uma mecha de cabelo dele. — Nós esperamos demais, não?

— É. Mas não podemos nos culpar, huh? Nós estávamos feridos. Confusos. Levaria tempo mesmo, aconteceu tanta coisa. E… — Inclinou a cabeça. — E que irônico duas pessoas tão estilhaçadas se encaixarem tão bem.

Ele concordava.

— Vai ver nossas peças combinam.

Seu silêncio se ajustava com o dela. Achou que os clichês baratos da Feiticeira faziam um bom par com os seus flertes bobos. Bucky lhe deu outro beijo curto, sem saber ao certo o que dizer, até que enfim disse o que, para ele, resumia o início daquela história confusa:

— Você me achou.

A porta se abriu com um rangido, mas o soldado não conseguia enxergar o interior da Loja de Bruxa. Não se abalou, talvez não fosse para seus olhos. Trouxe o queixo de Wanda para mais perto, para mais um beijo. Segurou forte sua cintura e se surpreendeu com a força com que ela o abraçou de volta.

— Adeus, James.

— Até mais, boneca.

Wanda ajeitou a mochila no ombro, deu um passo para trás. Era óbvio o seu esforço para não se derramar em lágrimas, enquanto ele tinha algo entalado na garganta e por isso engolia seco. Levou um tempo para que desenlaçassem as mãos. Ela lhe ofereceu seu melhor sorriso e deu um passo devagar para dentro do estabelecimento, seu corpo sendo ocultado pela escuridão. O soldado inspirou fundo, o queixo trêmulo. Ao atravessar a calçada e olhar para trás, não enxergava mais nada no lugar.

Quem o viu andar na rua naquele dia não viu mais que sua figura ser tingida pelo sol do entardecer mas, ainda assim, seu semblante não passava de uma sombra.

 


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Notas finais do capítulo

*Bom, o motivo de eu ter demorado para atualizar anteriormente é porque eu não queria escrever uma despedida sem escrever junto um reencontro; Então podem ficar tranquilos que já escrevi coisas mais para frentes com muito amor, muito winterwitch! Mas devo avisar que realmente estamos próximos do fim...

*Os próximos capítulos serão focados no desenvolvimento da magia da Wanda!

*O capítulo foi revisado, mas existe a possibilidade deste arquivo ser sabotado pela HYDRA. Caso encontre algum erro, favor reporte à Shalashaska