Vazios escrita por Shalashaska


Capítulo 67
LXVII


Notas iniciais do capítulo

08/11/2018
Trago mais um capítulo cheioooo de referências!
Espero que gostem.



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Devido a diferença de fuso horário, Wanda apareceu em Varsóvia durante a madrugada. Não sentiu medo, pois a cidade tinha uma taxa de criminalidade baixa e uma bruxa como ela poderia lidar com facilidade um bandido qualquer - ainda mais agora, que estava com as energias recarregadas. Seria mais cuidadosa, também. Ela andou de forma calma, sentindo o frio e o som de seus pés contra o chão daquela cidade, justamente no bairro famoso por ser uma réplica do que era antes da Segunda Guerra: a Cidade Velha. Era uma das muitas partes históricas de Varsóvia, embora quase tudo tenha sido destruído mais de uma vez.  Sua insônia, naquele instante, era certa. Caminhava numa cidade que se ergueu das cinzas, murmurando partes que recordava daquela canção polonesa, a música de ninar cantada por seu pai.

Sua garganta se apertava ao imaginar coisas que ocorreram ali, coisas que talvez seu pai tenha presenciado. Seu pai de verdade, Erik Lensherr. Ele era judeu e vivo em 1940. Isso já dizia o suficiente.

Ela viu o Memorial do Levante, as estátuas de pessoas avançando. Resistindo. Tentou não chorar enquanto caminhava porque não queria acabar com o nariz congestionado e o rosto gélido naquela madrugada fria, mas foi difícil. Postes iluminavam as pedras e a arquitetura tradicional, formando uma viela. Ela lembrava-se de seu irmão. De sua crença, que muitas vezes largou e voltou por inúmeras razões. Lembrou-se de pessoas que existiram antes dela, que foram marcadas com estrelas amarelas e depois mortas.

Um turista comum preferiria ir de dia e com um clima agradável à qualquer um desses pontos, pagar o ingresso e ouvir mais sobre essa história. Talvez numa outra oportunidade Wanda fizesse isso, mas naquela madrugada preferiu o frio e o silêncio. O mundo lá fora, as lembranças da Feiticeira, a faziam pensar que ainda existiam pessoas ruins. Uma insanidade sem tamanho, tola e violenta, que tentaria fazer tudo aquilo de novo sob outras máscaras.

Pensou mais uma vez, olhou as marcas na cidade sobre o levante, os símbolos WP - Powstanie Warszawskie. Ela sabia o que significava, por mais que visse também as iniciais dela e de seu irmão ali. Wanda e Pietro. Em outros pontos de Varsóvia, ela sabia, havia o traçado no chão no lugar onde o muro do Gueto de judeus existiu. Memórias de que sempre haveria também resistência, pessoas dispostas a impedir tais loucuras de acontecerem novamente. “Nunca mais”, ela disse suave, entendendo.

Terminou sua excursão particular num hotel simples. Não precisou de muita telepatia para convencer o balconista idoso, que já estava cansado e acreditava que Wanda era uma mera mochileira.

 

Acordou depois do meio-dia por conta da mudança de fuso horário e a sonolência que tal coisa trazia, o que a deixou um tanto desanimada. Tinha perdido o café da manhã do hotel. Mas logo deixou isso para trás e continuou as suas pesquisas pessoais sobre Erik Lensherr e sobre Magda, seus pais. Estudava também lições mágicas do livro púrpura de Agatha Harkness - pois a parte de transfiguração de objetos e aparência serviria bem para uma refugiada. Com o caderno aberto em sua cama e a mochila jogada no outro canto, Wanda suspirava ao tentar ligar os pontos daquela história e a magia.  Ao fim, desceu as escadarias até o hall do hotel, que permitia que hóspedes usassem os computadores.

Seria muito mais simples perguntar tudo à ele, em Genosha. Wanda tinha a impressão que ele não mentiria, nem aumentaria os fatos. Seria honesto, quem sabe até muito sucinto. No entanto, a Feiticeira desejava descobrir a verdade por si própria. Magneto veio pronto como seu pai, aceitando esse fato estranho e abraçando-a como filha. Ela queria se preparar como filha dele.

Para sua sorte, o interesse geral do público por esse personagem - um mutante revolucionário do século passado - aumentou a níveis exorbitantes depois de Zurique, tanto é que existiam diversos artigos e revistas com esse tema desde aquela noite na conferência. No hall do hotel, onde podia usar computadores oferecidos aos mochileiros, ela pesquisou mais um pouco e anotou tudo o que era relevante numa linha do tempo em seu caderno. Muitos repórteres fizeram o trabalho de Wanda Maximoff em desvendar certos mistérios, tudo começando por seu nome. Não era Lehnsherr, o que condizia com o fato de Wanda não ter encontrado muitas informações com esse nome antes de Magneto se tornar um mutante notável, lá por 1960. Seu nome era Max Einsenhardt, filho de um relojoeiro conhecido numa pequena cidade da Alemanha, ao leste e na fronteira com a Polônia. Moraram em uma vila da Polônia até o nascimento de Max, pois a mãe dele - Edie - era de lá, e depois logo se mudaram para a Alemanha. O pai dele, e portanto avô de Wanda, se chamava Jakob Einsenhardt e foi também um soldado condecorado na Primeira Guerra.

A família fugiu da Alemanha para a Polônia na Kristallnacht, em Novembro de 1938, a noite em que diversos estabelecimentos comerciais judeus foram depredados e saqueados, além de sinagogas destruídas e casas invadidas. A relojoaria Einsenhardt foi uma delas.

Não houve mais dados ou cartas sobre eles durante certo período depois da noite em que fugiram, até que registros de Setembro de 1939 indicam a entrada da família Einsenhardt no gueto em Varsóvia. Jakob, Edie, Ruth, Erich e Max. Um longo lapso sem nada até 1942, Auschwitz. Sobrou apenas Max e a tatuagem em seu braço feita pelos nazistas: 214782. Tornou-se Sonderkommando, tirava arcadas dentárias dos corpos para que os alemães removessem dentes de ouro, era um trabalhador forçado a carregar cadáveres para a fornalha. Em 1944, Outubro, os sonderkommandos dos crematórios 2 e 4 promoveram uma rebelião e explodiram o crematório 4. Houve sobreviventes, foragidos. 250 deles foram encontrados e mortos nas imediações de Rajsko. Mas não Max.

1948, certidão de casamento de Magda e Erik “Magnus” Lehnsherr, em Finitas, Ucrânia. Não há mais registros do nome Max daquele ponto em diante, somente Erik. Mudou o nome para evitar perseguição. Nenhuma informação relevante até 1962, apenas boatos sobre incitação de violência e envolvimento com grupos marginalizados. É o ano da Crise dos Mísseis em Cuba, onde dizem que foguetes pairaram no céu com um gesto de um homem. Mais boatos e fotos borradas sobre a Irmandade de Mutantes nos meses seguintes, envolvendo uma mulher azul, um loira que virava diamante e uma última que invocava luzes roxas. Wanda reconheceu com Psylocke, Místico e Emma Frost.

Novembro de 1963, morte de JFK. Prisão do terrorista mutante, Magneto.

Segundo as informações de Yelena Belova, o corpo dele ficou em crioestase no Pentágono até 1999 - ano da morte de Lorna Darne, sua filha - depois seu corpo desapareceu. Yelena o escondeu, na verdade, numa ilha ao sul de Madagascar, para não ser encontrado ou desperto até 2017.

Assim como ele disse quando se encontraram, quando ele a protegeu em Zurique e dois conversaram no metrô, era uma história triste. Ela não lembrava-se de tudo, pois sua consciência ia e vinha naquele momento em Erik narrava as coisas, porém lembrava-se o suficiente. Tristeza. Dor. Ele contou que se casou com a mulher que amava, Magda. Que teve uma filha que morreu, e que sua esposa estava grávida de novo quando fugiu. Teve gêmeos. Aquilo não fazia sentido para Wanda. Essa última parte deveria ter acontecido por volta de 1950, pouco depois que se casou com a romani sinti, porém Wanda e Pietro nasceram em 1994. Como seria sua filha?

Wanda notou que não tinha muitas informações sobre Magda, apenas o que tinha visto em sonhos envolvendo a Montanha Wundagore e Natalya Maximoff. Talvez o restante da história estivesse com elas, mas era difícil encontrar informações oficiais, documentos, sobre duas romanis, uma delas perseguida durante a Segunda Guerra.

Ela soltou um suspiro, batendo a ponta da caneta sobre o papel. Deu um pausa para tomar um gole de chá gelado que tinha pegado no frigobar antes de descer, para esfriar um pouco a cabeça. Wanda costumava não ser incomodada e considerou que as pessoas ao seu redor não dariam atenção a uma jovem riscando no próprio caderno com o computador aberto, mas um funcionário veio puxar assunto.

Era um senhor e tinha um ar simpático, aura verde. O balconista. Wanda considerou que ele tinha o costume de conversar com os hóspedes, tanto é que falava em inglês. Perguntou sobre o dia, sobre o serviço de quarto.

— Hm. — Ele olhou para a tela do computador. Wanda sentiu um arrepio, percebendo que estava tão preocupada com a própria pesquisa que não tinha usado seus poderes telepáticos para ocultar sua identidade, fazer com que as pessoas a evitassem. Ela lhe deu um sorriso amarelo, buscando uma forma de expulsá-lo sem chamar atenção. — Você é uma jornalista?

— Oh. Sim. Sou sim. Meu nome é… Elizabeth. Fiz matérias para, hm, o Clarim Diário.

Wanda aproveitou a deixa, seus olhos faiscaram vermelhos por apenas um segundo. Usou seus poderes para criar uma imagem na mente do senhor polonês, fazendo-o confundir cenas que havia visto na televisão. O nome ela inventou do ar, tentando apenas manter o diálogo.

— Ah, sim, sim! Eu sabia que você era familiar do noticiário. — Mesmo assim, ele tirou os óculos da ponta do nariz, limpando as lentes na barra da camisa. Parecia um tanto confuso e querendo enxergar melhor. — Existem muitas pessoas pesquisando o que houve desde aquela bagunça com heróis e Sentinelas em Zurique. Uma desordem, não? E aquele indivíduo, o tal de Magneto… Descobriram que ele viveu em um gueto, aqui em Varsóvia. Pobre homem.

Os dois suspiraram, remoendo tal coisa. Wanda pôde ver o nome dele no crachá e, ainda com seus poderes acesos, considerou que seria uma abordagem suave chamá-lo pelo nome. Ao menos isso lançaria atenção sobre ele, não sobre ela. No entanto, ao bisbilhotar um pouco sua mente, Wanda notou que o idoso tinha um segredo. Um segredo que envolvia entender qualquer língua, qualquer mesmo. Era mais do que facilidade com idiomas, era uma habilidade. Uma... Mutação. Algo menor que era muito apreciado por pessoas não-mutantes, embora isso trouxesse embaraços quando entendia o que animais diziam. Ele era um mutante e queria ajudar.

Tinha a reconhecido brevemente. Só não sabia se podia realmente confiar nela e agora tal fato estava nublado na cabeça, sem saber de forma precisa quem era a jovem.

— De fato, Jozéf. — Wanda afrouxou sua desconfiança, embora não inteiramente.

— Disse ele que é pai daquela menina, a… Como chama?

— Feiticeira Escarlate? — Respondeu com cautela.

— Isso. Mas eu duvido. Não tem como. — Sacudiu a cabeça. — Mas você está pesquisando sobre isso, certo? Sobre Magda, a esposa dele. Alguns jornais dizem que ele a matou, porém ninguém tem muito documento pra saber a verdade. Só o que sabem é que ela era cigana é que desapareceu.

— É. E eu estou sem sorte. Não tem nada aqui diferente… Bom, nada diferente do que outros jornais publicaram.

O idoso deu de ombros ao afastar-se para receber outros hóspedes. Era mais um grupo de mochileiros fazendo barulho, em tcheco. Ele os entendia de maneira perfeita.

— A sorte está lá fora, jovem. Existe um grupo de ciganos na periferia da cidade. Chegaram há dois dias. Não sei se conseguiria falar com eles, mas…

— Eu posso tentar.

— Só não se esqueça de creditar o hotel quando publicar a matéria!

Wanda fechou o caderno, já mais aliviada por não ter notado sua identidade. Tinha que manter seus poderes acesos o suficiente para que ninguém reconhecesse seu rosto ou lhe pedisse documentos. No futuro não teria tanta sorte em se deparar com um idoso mutante.

— Pode deixar.

 

Fazia tempo que Wanda não caminhava tanto. Não era como se estivesse fora de forma, já que treinava o corpo constantemente em Wakanda, mas lá estava acostumada a treinar força, rapidez. Resistência era algo seu, mas um pouco enferrujado. Também não seria uma abordagem muito sutil chegar no grupo de roms com um carro ou pior, voando. De qualquer modo, caminhar era algo que deixava seus nervos sob controle. Arrumou a mochila no ombro e seguiu em frente, agora sem ouvir músicas do iPod de Sam.

Andar por Varsóvia era experiência quase extracorpórea, ver os monumentos e os símbolos. Ela era judia, afinal. Estava na memória de seu povo e jamais sairia de lá. Seu pai… Seu pai foi marcado. Isso lhe trazia tristeza. Outra parte de si, romi, foi igualmente perseguida durante a Segunda Guerra, porém diferente dos judeus, os ciganos não tinham em sua cultura desenterrar o passado. Não era uma questão de ser ignorante as memórias de seu povo, era apenas deixar no passado algo que ficou para trás.

Ela chegou a periferia da cidade, onde avistou os trailers do grupo. Ouviu barulho, risada. Talvez música muito leve ao fundo. Existia apenas uma caravana típica, estereotipada, de teto arredondado e inúmeros detalhes. Sua cor era roxa, coisa que chamou a atenção da Feiticeira. Seria outro sinal? Um lado dela imaginava o que era o significado daquilo, outro lado tentava analisar a questão de forma mais lógica. O povo cigano, também por preconceito e dificuldade de arranjar emprego, costumava ser um povo ligado às artes circenses, entretenimento. É claro que existiam nuances em torno desse conceito, variedades e inverdades baseadas em boatos - coisas que até mesmo alguns ciganos se aproveitavam. A modernidade só adicionou mais complexidade ao tema. Era difícil dizer se a caravana tradicional era mais decorativa ou por memória à cultura. Quem sabe ambos.

Wanda não tivera muito contato com esse lado de sua identidade desde os dez anos de idade. Sabia ainda a língua, pois conversava com Pietro no orfanato e era a língua que antes conversava em casa. Sabia também que os conhecidos de sua familia da vila rom tentaram buscar ela e seu irmão quando seus pais morreram, porém a custódia foi passada ao Estado de Sokovia e a cultura simplesmente sokoviana foi assimilada pelos dois. Depois disso veio a HYDRA, depois os Vingadores. Ela se envergonhava de não ter dedicado tempo para recuperar essa parte de si ao longo dos anos e agora se sentia perdida ao se aproximar do grupo, tal qual uma gadjé curiosa, talvez até um pouco assustada.

Uma mulher veio ao seu encontro, idosa. Não tinha a aura trêmula de ódio, tampouco oscilava em um tom ruim. Mas era viva, pulsante e causou breve receio em Wanda. Os cabelos da senhora estavam cobertos por um lenço colorido e ela lhe perguntou o que vinha buscar ali, falando sua própria língua - não o polonês, mas sim o romani. Tinha um sotaque que ela não entendeu muito bem por falta de prática e também pelas diferenças regionais, no entanto o seu coração bebeu cada palavra. Sua boca respondeu no mesmo idioma.

A velha riu e a saudou:

— Oh, velha amiga. A Feiticeira Escarlate! — A trouxe para dentro do grupo.

 

Wanda estava no meio de uma barraca, cercada de mulheres romi no começo da noite. Não esperava que fosse tratada com tamanha importância, carinho até. Não era costume chamar gadjés para entrar em suas casas, pois na romá a conversa era entre ciganos. Era uma forma de ter privacidade na cultura e até mesmo segurança, portanto Wanda se impressionou por ter sido tomada por romi sem mesmo se apresentar da forma apropriada. Poderia ter sido considerada uma gadjé ou uma impura por ter se distanciado por tanto tempo da cultura cigana. A Feiticeira conhecia as leis de pureza, o marime, e ficou aliviada por ser bem recebida. Houve, em adição, o receio de ser expulsa por sua fama de Vingadora problemática, hoje filha de um mutante caótico. Nada disso ocorreu, nenhuma repulsa ou medo.

Havia duas irmãs gêmeas um pouco mais novas do que Wanda, a mãe delas, a avó e três cunhadas. Disseram que os homens - inclusive o baro, o mais velho e sábio do grupo - foram tratar com outras autoridades na cidade a permanência na periferia, arrumar certos trabalhos temporários e, desta vez, tratavam o assunto com museólogos. Felizmente o mundo também começava a conhecer a realidade daquela cultura e a cidade de Varsóvia, que abrigava grande memória do Holocausto, também daria voz a cultura cigana que sofreu no mesmo período. Era difícil ainda para eles se abrirem, pois ser invisível era uma forma de preservação.

Conversaram sobre os lugares onde passaram e as aventuras que viveram, Wanda comentou sobre sua infância em Sokovia e sobre os bonecos de madeira que seu pai esculpia, ou melhor, que seu pai adotivo esculpia. A mãe, Marya, fazia doces e Pietro amava cada um deles. Falou das cartas da tia, Natalya. Wanda se lembrou da cor e das músicas das confraternizações entre os vizinhos, também ciganos. Naquela noite ela não usou seus poderes para ocultar sua identidade.

— Me desculpe perguntar, — Wanda disse, seu tom um tanto incerto pela língua e pelo momento. — Mas como sabiam que…

— Lucja aqui é a sábia da família. — Uma das gêmeas respondeu, indicando a idosa que Wanda encontrou nas bordas do acampamento. Por sábia, a gêmea na verdade a indicou como Phuri Daj, a feiticeira líder do clã por sua nata intuição. — Disse que a viu chegando. Uma romi em viagem. Uma amiga.

— Sim, sim. — A senhora respondeu. Seus cabelos brancos escapavam do lenço colorido, seu rosto enrugado tingido pela luz de lamparinas. Ela tomou um gole longo de chá. — Viemos para essa cidade para contar um pouco da nossa história, ou a nossa versão da história. Mas vi você nos meus sonhos, querida. Uma aura vermelha. Algo me diz que deseja escutar coisas que não iremos falar para o Museu. Deseja descobrir um segredo.

— Vocês me conhecem. Sou a Feiticeira Escarlate. Sabem que em Zurique foi dito que meu pai é Magneto e que de algum modo isso é verdade. A esposa dele era romi igual a nós, mas não sei nada sobre ela. Eu pensei que… Talvez poderiam me esclarecer algo.

— Qual é o nome dela? — A mãe das gêmeas se aproximou da roda.

— Magda. Olhos verdes, cabelo cheio. Sei que… Sou parecida com ela.

As mulheres se entreolharam e sussurraram.

— Não, querida. Não conhecemos Magda.

— Mas, — A idosa continuou. — Você nos falou de seu pai, sua mãe e seu irmão, mas mal falou de sua tia, Natalya. Ela também era uma sábia. E era a Feiticeira Escarlate.

— Eu… — A boca de Wanda tremeu, pois escutava algo que só soubera em um pesadelo distante, um pesadelo tumultuado no trem para São Petersburgo. Parecia ser há tanto tempo. — Eu não sabia disso até… Até eu ter um sonho.

— Oh. Eu a conheci, menina. Uma mulher forte, aventureira. Tal qual qualquer uma de nós. Eu já tinha certa idade quando nos encontramos pela primeira vez nos caminhos da vida. Você sabe, na Romênia. Existem lojas de bruxas muito boas lá. As melhores, principalmente em Bucareste.

— Existem? — Wanda pensou no que Ameena disse e teve uma boa sensação sobre a cor púrpura. Era um bom lugar para se procurar.

Independente dos pensamentos da jovem feiticeira, a mulher continuou falando:

— Natalya sempre estava fazendo algo importante, sua fama de Feiticeira era um sussurro. A última vez que a vi foi em 1994, embora tenha me mandado notícias através de outros viajantes. Mas nunca mais ouvi falar dela depois de 2004.

Wanda engoliu seco, embora seus olhos já quisessem marejar. 1994 era o ano de nascimento dela e de Pietro. 2004 foi o ano em que sua casa foi atingida por mísseis.

— Eu havia notado uma vibração estranha no ar há meses, algo errado nos véus da realidade. Natalya também notou, mas foi atrás do que era. Disse-me que iria para a Montanha…

— Wundagore. — Wanda completou e a velha assentiu.

As imagens da montanha rodeada de névoa encheram a mente da jovem Maximoff. A canção polonesa, um rosto bovino e uma lareira. Histórias sobre o que acontecia lá.

— Por sorte, nosso clã estava perto quando ela voltou. Estava ferida, houve um acidente com um caminhão na estrada e até mesmo um jovem morreu, coitado. Mas Natalya não estava mais sozinha quando a encontramos. Ela carregava duas crianças. Pietro e Wanda. E carregava um segredo.

Agora a jovem chorava copiosamente - ainda que em silêncio, sendo consolada pelas outras.

— O que houve na Montanha mal pode ser explicado em palavras e o que Natalya disse até hoje não faz muito sentido para mim. Você sabe, querida. Ninguém nunca soube ao certo o que existe em Wundagore. Ela tentou me contar que havia uma distorção da realidade. Um erro no tempo. E o pedido de socorro de uma das nossas levou Natalya até lá, essa era a vibração estranha que sentimos. Lá, ela conheceu uma mulher, uma romi sinti que havia fugido. E que deu a luz a essas duas crianças.

— Magda. — Wanda concluiu. — Mas ela morreu, não? Ficou presa na Montanha, eu vi no meu sonho.

— Sim. Na nossa última conversa, Natalya disse-me que entregaria os bebês para seu irmão para que fossem criados como filhos dele. Django e Marya estavam tentando ser pais. Mas ela não poderia voltar até que o mal na Montanha fosse aprisionado.

— E esse era segredo?

A idosa lhe deu um sorriso triste, na confirmação da pergunta da Feiticeira Escarlate.

— Natalya sentiu que você era especial, assim como ela. Assim como eu. — Houve uma pausa, um momento de silêncio. Ela não se referia a ser cigana apenas. Se referia a ser bruxa. — E me contou que queriam usá-la por causa disso.

— Ela estava certa. Me usaram. — Wanda limpou as lágrimas das bochechas com as costas das mãos. HYDRA. Ultron. — Eu me deixei usar.

— Há algo na Montanha, todos sabemos. E você e seu irmão vieram de lá. Agora, o que era esse mal que Natalya disse, jamais soube. Mas sei que ela desapareceu tentando aprisioná-lo, por você. Eu pensei que nunca mais veria minha amiga novamente, depois do… Bom, dos bombardeios em Novi Grad. — Lucja suspirou. — Até que você veio, a Feiticeira Escarlate.

— É verdade. Vovó fica feliz te vendo na televisão. — Uma das gêmeas riu, fato que fez a jovem rir também. Apesar dos recursos limitados, o clã de ciganos era moderno. As gêmeas tinham celulares e conversavam entre si utilizando referências de memes. Wanda divagou se tinham visto o que houve em Sokovia, em Lagos na Nigéria e em Zurique, na Suíça. Os desastres.

— Lamento que não veja notícias muito boas.

— Ora essa! A Feiticeira Escarlate está viva! É sempre um lembrete de uma velha amiga. E o lembrete de que ela conseguiu.

— Lucja… — Wanda repetiu seu nome, o coração morno. — Nos meus sonhos, ela ainda está viva. E precisa de ajuda.

— E você pretende ir até a Montanha Wundagore?

— Sim. Quero salvá-la. Ela é minha tia e a única que sabe toda a verdade.

Lucja parou um instante, olhando o fundo de sua xícara de chá.

— Não necessita da minha aprovação, minha cara. É livre. Mas recomendo muita cautela, menina. Natalya era uma mulher experiente e ainda assim está presa na Montanha. Você ouviu as histórias, sabe das regras para andar sozinha pelos bosques. Nenhuma ingenuidade, ainda que bem intencionada, vai ajudá-la.

— Entendo.

— Mais chá?

Wanda sorriu e estendeu a xícara.

— Por favor. Para dar sorte.

 

***

 

Bucky entrou no apartamento 313 e deixou a porta se fechar atrás de si. Em sua mão direita havia o chaveiro com laço perolado, em seu coração a esperança de que Wanda estivesse ali, no refúgio de Yelena Belova em São Petersburgo. Caminhou pelo ambiente escuro, ligou os abajures da sala. Nada além de vazio, nada além de silêncio.

Nada além de memórias desvanecidas.

Ele olhava para o sofá e enxergava todos ali dormindo, Sam roncando. Ao ver a sala de jantar, se recordou da refeição doida de hambúrguer e blini, Yelena com a garrafa de vodka na mão. Ao caminhar até a cozinha, veio a imagem de seu abraço apertado em Wanda Maximoff, quando ela chorou por causa de pesadelos.

Você quer descobrir mais sobre isso?”

“Sim”

“E você… Quer fazer isso sozinha?”

“Eu não sei.”

Wanda não estava lá. Bucky entendia o porquê tinha partido, mas… Não era capaz de evitar a dor dentro de seu peito. Ele pediu para que ficasse ou para que o levasse junto. Não sabia se era arrogância sua pedir tanto à ela, ainda mais quando não conseguiu dizer com todas as letras a razão por qual ele não queria que Wanda fosse embora. Para ser justo consigo mesmo, ele considerava que a relação entre os dois estava muito além de palavras. Eles mal se tocavam, tinham não-conversas e ainda assim…

Ele parou para observar o cenário do lado de fora, a cidade brilhante de São Petersburgo durante a noite. Deixou a mente vagar, seus olhos se perderem.

O que lhe confortava minimamente era saber que tinha sido difícil para Wanda, que pediu desculpas e chorou. Não era satisfação em vê-la triste - é claro que não - era apenas alívio em supor que… Que talvez o que sentia era recíproco. Lembrou-se dos toques gentis das mãos dela, um pouco frias. Ela prendendo seu cabelo, ela sem graça por conta de Ebony. Ela quase babando enquanto dormia em seu ombro no chalé, ela rindo por causa de uma piada idiota de Sam. Ela envolta em poderes vermelhos, acariciando com delicadeza as memórias ásperas do Soldado Invernal até que se tornassem coisas distantes. Aquela última memória, ele sabia, tinha sido uma despedida. Rassvet, a aurora de um novo dia. Sua cabeça estava mais leve, cada vez mais próxima de se soltar completamente dos venenos da HYDRA. E Wanda escorreu por seus dedos, uma aparição escarlate.

Aquela manhã, há basicamente uma semana, foi movimentada. Steve andou de um lado para o outro, mandou procurar a jovem feiticeira em cada canto de Wakanda para saber se ainda estava no país. Não poderia estar tão longe, ele pensava, mas a situação era mais complicada quando a pessoa consegue se teletransportar para qualquer canto do mundo. Shuri não a localizou, já que a joia kimoyo nova que havia dado a amiga era um protótipo a ser aprimorado e sem conexão fora do país. Ela ficou com raiva de si e deu um soco na mesa. Bucky contou o que houve, embora tenha retirado a parte sentimental da história. Os Vingadores Secretos leram juntos a carta sucinta que deixou, abismados por não terem percebido antes. Talvez devessem ter conversado com ela o assunto que lhe incomodava, sobre Magneto, sobre seus poderes, sobre a dor. Mas até mesmo Sam Wilson ficava bambo em decidir qual abordagem seria melhor num diálogo franco com a amiga. Por fim, optaram por deixá-la ir. Cada um deles já fizera uma primeira jornada sozinhos, talvez fosse a vez de Wanda. Precisavam confiar na Vingadora, pois ela já não era mais uma criança incauta. A mesma mulher que havia desintegrado um helicóptero sozinha poderia lidar com outros perigos.

Não acionaram Charles Xavier, para localizá-la através do Cérebro. Respeitaram a decisão da amiga, prontos para ajudá-la caso necessário. Tinham agora uma base móvel, um porto seguro. Outer Heaven. E poderiam alcançá-la na ocasião de perigo. Bucky aceitou tal decisão um tanto contrariado, sentindo falta da presença silenciosa na ala de dormitórios em Outer Heaven. Ficava inquieto, cogitando quantos perigos havia no mundo. Outros Sentinelas, talvez? Pessoas má intencionadas. Mata-Capas. Será que ela iria para o sul, em direção ao que os mutantes começaram a chamar de paraíso, Genosha? Era onde diziam que Magneto estava. O pai dela. E a memória da promessa que deveria cuidar dela estava bem vívida em sua cabeça. Ele tentou ignorar a questão, envolvendo-se com os planos das missões e pedindo doses de vodka para Natasha quando achava conveniente.

Até que houve a confusão em Marrakech.

Souberam que a face da jovem foi reconhecida pelo sistema de segurança do aeroporto em Marrocos, acionando assim contra medidas adequadas para uma aprimorada,mutante e procurada internacional. Mesmo com o Projeto Sentinela suspenso, o Acordo de Sokovia ainda estava em voga e Wanda Maximoff deveria ser presa conforme a lei. Caso tivesse sido detida, seria levada pela equipe Mata-Capas e a promessa de uma coleira elétrica o assustava. Mas ela sumiu.

Novamente não sabiam onde ela estava, no entanto o país em que arranjou problemas indicava que não ia para o Sul, e sim para o Norte. Traçava um grande percurso atrás de memórias, histórias que deveriam ser suas. Bucky cogitou, já que ela havia coletado relíquias de cada um de seus amigos - uma foto, um desenho, uma pulseira e um iPod - que ela iria atrás do lobo de madeira esculpido por Piotr, o entalhador do vilarejo em Sokovia. Ela esqueceu-se desse item em São Petersburgo, em toda aquela aflição no apartamento antes de partirem em Zurique para deter Zola. Só que… Wanda não estava lá. Ela estava ficando boa em cobrir seus rastros, coisa que pôde culpar seus amigos - principalmente Natasha - de ensiná-la.

Sam não tinha achado boa ideia ir atrás dela. Disse que, apesar dos perigos, ela tinha se saído bem e que até mesmo desejava ficar sozinha. Nat se absteve de comentários, sem dizer sim ou não. Na verdade, ela soltou apenas um lacônico “da n’et nav’ernoe”, que traduzia-se pra “sim, não, talvez”. Steve, por sua vez, soltou um suspiro, entendendo o ponto de vista do amigo. Bucky queria validação, autorização, e por mais que doesse em Steve vê-lo partir mais uma vez, era hora dele tomar decisões mais por conta própria. Só recomendou cuidado com o fondue. Bucky não fazia ideia do que diabos aquilo significava.

Continuou a andar pelos cômodos, em busca de indícios de que ela estivera ali. Quem sabe a embalagem de algo no lixo. Um shampoo aberto. Qualquer coisa. Ele adentrou o quarto de hóspedes, onde ela ficou quando todos eles repousaram em São Petersburgo. Intocado, havia apenas… O lobo de madeira em cima do criado mudo. Pegou-o com carinho, cerimonioso. A peça não era lá muito bem feita, tinha marcas na pata esquerda. Mas chamou a atenção de Wanda de qualquer modo. Soltou um longo suspiro.

Então ela não tinha vindo ainda. Não passou pela Rússia, talvez nem fosse para lá. Quem sabe ela… Estivesse indo para casa. Para Sokovia. Colocou o lobo no bolso e virou-se para ir embora. Não poderia perder tempo.


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Notas finais do capítulo

* Praticamente todo o passado de Magneto é baseado na HQ "Testamento". É uma leitura muito forte que recomendo muito. O restante das descrições eu pesquisei em fontes livres na internet para que o local se tornasse mais palpável, como por exemplo alguns detalhes sobre a cidade de Varsóvia.
* Li recentemente um livro sobre roms e no glossário havia a diferença entre roms, romis, romá e romani, diferentemente de como venho tratando até o momento. Rom significa "homem cigano" ou é apenas a denominação pra cigano em todo mundo, tipo "Os Rom". Romi é "mulher cigana", romá é "povo cigano". Romani é o dialeto. Gadjé é "não-cigano". Outro termo que citei no texto foi "Marime", que é um conjunto de regras de pureza/preservação da cultura cigana.
*O livro que me refiro é "Devir Cigano - O encontro cigano e não-cigano (rom-gadjé) como elemento facilitador do processo de individuação."
Seus direitos vão para a respectiva autora, Valéria Sanchez Silva.
*Cabe aqui um comentário que o capítulo foi produzido por uma pesquisa independente e superficial, na tentativa de preservar a parte da identidade rom e parte da identidade judia da Feiticeira Escarlate - que foram esquecidas no MCU. Caso alguém queira me corrigir, por favor sinta-se a vontade nos comentários.
*"da n’et nav’ernoe”, que traduz-se pra “sim, não, talvez" conforme coloquei ao longo do capítulo hahah é uma expressão comum aos russos, pelo o que li.
*O capítulo foi revisado, mas Zola ainda existe e pode tentar sabotar essa fanfic. Caso encontre algum erro, por favor reportar à Shalashaska.



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