Vazios escrita por Shalashaska


Capítulo 48
XLVIII


Notas iniciais do capítulo

Olá! Agradeço muito pelos comentários do capítulo do passado ♥ Passei por um momento complicado e foi muito bom receber todo esse apoio. Volto com esse capítulo gigantesco!



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Wanda vestia preto, já a única coisa que servira em Bucky foi uma jaqueta amarela. Se Yelena havia dito que o ideal era parecer suspeito naquele vilarejo, então os dois estavam indo bem quando saíram do chalé e se puseram a caminhar, munidos apenas com cantis amarrados na cintura. Havia uma trilha, mas seria impossível chegar em pouco tempo em Novi Grad - ou o que sobrara da capital - á pé, ainda mais pelo estado dela, portanto a Feiticeira e o Soldado tinham planos tolos na cabeça.

Felizmente depois de meia hora caminhando, encontraram uma pequena vizinhança. O lugar era pacato, casas também feitas de madeira da vegetação local, com carros, caminhonetes e até mesmo diminutos caminhões que deveriam transportar madeira ou os restos de Ultron, como Yelena dissera.

Bucky sussurrou que deveriam pegar o automóvel mais a frente, da cor oliva. Parecia antigo, mas resistente, sem falar que ele era habituado a tecnologia hoje considerada vintage, ultrapassada. Eles se aproximaram da lataria descascando do caminhonete, Wanda vigilante e o Soldado preparando-se para um furto.

— Eu não sabia que você roubava carros.

— Por Deus, Wanda. — Ele riu, mas seu riso era também um som exasperado. — Até Steve sabe fazer isso.

— Ele sabe?

Houve uma exclamação alta, não dela, nem de Bucky Barnes. Era um homem de meia idade, roupas pesadas e barba. Fazia tempo que ela não ouvia alguém chamar sua atenção em sua língua materna, tanto que demorou para esboçar uma reação.

O homem veio mancando com a perna direita. Perguntava o que estavam fazendo com o carro dele, se eram mais um daqueles jovens que vem trocar peças de Ultron por dinheiro ou heroína. Ela notou que o tal homem não parecia mal, apenas furioso e um tanto frustrado, afinal, os dois realmente iam roubar seu carro, seu provável único meio de trabalho e sustento. Não podia culpá-lo, mas não podia deixar que ele se excedesse e desse um soco em Bucky.

Pelo o que Wanda sentia e via de sua aura, isso era completamente possível e com desfechos desastrosos. Com o canto dos olhos, viu o rosto fechado de James Barnes, seu olhar predatório e frio em cima do homem que continuava gritando. Não daria aviso feito um cão que late e rosna antes de atacar, daria logo um golpe em sua face para acabar com o problema.

Ela engoliu em seco, seus olhos tomaram a cor vermelha e seus cabelos movimentaram-se delicadamente por algo a mais do que o vento. A voz dela foi baixa, doce. Bucky ficou com a boca entreaberta o tempo todo.

O homem então entregou a chave da caminhonete à James Barnes.

— Mas que diabos…? — Disse ele, em inglês e abismado, contemplando o chaveiro de urso entalhado em suas mãos.

— Piotr nos emprestou a caminhonete. — Wanda lhe deu um sorriso fraco, limpando uma gota de suor na têmporas. — E se perguntarem dela, responderá que está na oficina e vai rir até mudar de assunto. Certo, Piotr?

O homem riu, em seguida conversando em sokoviano.

— Oh, o velho Hans! Demora muito para consertar qualquer coisa. Ao menos faz um bom serviço e cobra barato.

Ele riu mais um pouco até os dois se despedirem e darem partida no automóvel. O homem, um velho lenhador, ainda lhe deu instruções de pisar fundo na embreagem antes e recomendou chegarem antes do Sol se pôr. Havia bandidos por aí e uma equipe militar rondando a área, depois que uma fábrica foi destruída. Sem falar das coisas estranhas que aconteciam fora da trilha depois do anoitecer.

Eles se foram.

Entre os solavancos do terreno e a rádio que mais emitia o som vazio da estática do que música, a boca de Bucky abria-se sem falar nada. Ela percebeu e virou seu torso levemente em sua direção, mesmo com dor.

— O quê?

— Por que eu estou aqui? Digo, — Ele lhe deu um olhar rápido, depois voltou a prestar atenção na estrada. Eram apenas sessenta quilômetros até a capital e existiam muitas placas indicando o caminho, mas Wanda ainda abrira o guia de viagens em seu colo como se preparasse para um longa jornada. Não era como se ela tambem nao conhecesse o caminho.— Você dominou aquele cara em dois segundos. Talvez ele até te desse uma carona.

— Piotr nos daria carona se… Se tivéssemos pedido ao invés de irmos direto roubar o carro dele. — Soltou um riso curto, mais um bafejo divertido do que um riso propriamente dito. — E não se impressione, não fiz muita coisa. A bondade dele já estava lá. Também ajudou você ser parecido com o filho dele. Ele gosta de biscoitos.

— Filho dele… E biscoitos? Uau. — Não sabia que ela podia ver tantas coisas em tão pouco tempo. Esperava que descobrisse apenas fatos que estavam na cabeça das pessoas e não palpitações estranhas no coração. Ele apertou mais os dedos no volante e mirou a frente, sem querer assistir o rosto de Wanda e esboçar pensamentos doces.

— E… — A Feiticeira suspirou, ajeitando-se no banco do passageiro. O cenário lá fora a confortava ao mesmo tempo que lhe inquietava: coníferas, neve ainda no chão. Primavera viria logo, o calor morno também. — É bom ter você por perto, saber que alguém me dá cobertura. Entende?

— Acho que sim.

James falhou miseravelmente em todas as tentativas de não adjetivar sua boneca com as palavras mais delicadas.

 

A caminhonete oliva seguiu caminho pela estrada, passou por desvios pavimentados entre as árvores e contornou o lago. Chegaram onde o mapa indicava que existia uma cidade, mas só havia escombros agora. Novi Grad. Eles saíram do automóvel, pois não era possível avançar mais sobre quatro rodas. Ninguém mais estava ali.

Bucky a observou aproximar-se de pedaços de concreto e um outdoor retorcido, datando uma promoção de supermercado de 2015.

Ele ainda não estava num país próximo como a Romênia, mas recordava-se da época em que isso aconteceu. Filmagens de destroços. Corpos, robôs. Nenhuma pessoa sabia o que era Sokovia até essa nação virar pó por conta de sua capital. Bucky, na ocasião ainda tentando distinguir seu eu do Soldado, do recurso, do instrutor americano, assistiu todas essas notícias pela televisão sem entender.

Também não se sentia muito bem no momento presente.

 

Wanda desviou de um eletrodoméstico enferrujado, um fogão talvez, e andou mais um punhado de passos. O cheiro de fuligem ainda estava ali, mesmo após dois anos e todas as suas estações. A cratera também. Ela aproximou-se da borda, seu peito vazio. Ao lado, James Barnes.

 

— Ali era o orfanato. — Ergueu o braço e apontou para um ponto distante no horizonte, no antigo centro da cidade. — Onde eu e Pietro crescemos depois de… — Deu de ombros.— Você sabe. Do outro lado, mais ao Norte, onde tem ainda aquelas estruturas de metal, vê?

— Sim.

— Era um bairro romani, na periferia. Minha casa ficava lá. Nós comprávamos doces na esquina de baixo e o meu pai vendia bonecos entalhados a mão na feira. Às sextas...

Ela começou a lacrimejar, tremendo.

— Wanda…

— Às sextas-feiras nós comemoravamos o shabat.— Uma pausa. — Não tem nenhum Memorial para as vítimas, James. Não existe nenhuma ajuda humanitária. E eu… — Lutou para continuar coerente. — Eu contribuí pra tudo isso. A “Feiticeira Escarlate” se encontrou com um monstro de metal ali, na igreja exatamente no centro da cidade há dois anos. E o que eu fiz para… Não sei, reconstruir? Nada. Só sei destruir as coisas.

— Isso não é verdade.

Ela parou um instante. O que ele dissera foi gentil, mas inocente. Talvez pensasse da mesma forma sobre si mesmo, mas Bucky não tinha escolhido sua vida de Soldado Invernal. Ela sim.

— Olhe ao seu redor, James. Isso é uma cidade fantasma. Uma cidade morta. Passei dois anos depois disso tudo, achando que faria alguma diferença e… Aqui só existe miséria. Minha própria casa.

Bucky demorou para responder.

— Eu sei. Eu sei. Mas não foi sua culpa. Ou só sua. — Ela tentou argumentar, mas foi impedida quando ele pegou sua mão. — Todos tiveram parte nisso.

Wanda fechou as pálpebras, mordeu os lábios. Fazia força para não tornar-se apenas lágrimas e lamentos na frente dele.

— Mas… Mas por que só eu paguei por isso?

Então ele a abraçou, apertando-a bem contra seu peito e sua jaqueta amarela ridícula. Suas palavras eram vazias, embora seus pensamentos pesassem. Não disse nada, pois não sabia o que dizer. E o que mais haveria para se falar? Acariciou com cuidado os cabelos dela até que seu choro sossegasse.

Os olhos de Wanda Maximoff se fecharam devido ao toque morno. Ela franziu a testa e permitiu-se chorar mais um pouco, pois era somente uma mulher assistindo as ruínas do que conhecia. Fez força para lembrar-se mais uma vez que a estação mudaria logo e o terreno tornaria-se verde,o vento traria o aroma das flores e as manhãs mais quentes. Orou para que a primavera chegasse para todas as coisas, inclusive ela.

Inclusive Sokovia.

 

O mapa não mostrava onde era o novo cemitério de Novi Grad, mas não foi difícil encontrar. Ficava apenas alguns minutos de onde os dois estavam e, além do auxílio de mais um par de placas no trajeto, Wanda ergueu seu pulso e murmurou palavras mágicas. Logo veio uma runa cintilante, apontando o caminho correto.

Durante o trajeto, a Feiticeira pegou algumas pedras no chão. Bucky suspeitava o que ela faria com isso, portanto deixou-a escolher com cuidado as que chamavam sua atenção. Era um simples ritual, um costume judeu de colocar pedrinhas em cima de um túmulo para simbolizar que a pessoa jamais seria esquecida e sua alma era eterna, diferente de flores que murcham e apodrecem.

— Ali, — Ele disse, indicando um ponto próximo a base de uma árvore. — Uma no formato de triângulo.

A Feiticeira assentiu e aceitou a oferta, pegando-a também. Agora tinha quatro pedras pequenas, escuras e lisas, típicas pedras da borda de lago. Bucky perguntou se poderia escolher uma também, em sinal de respeito. Ela assentiu.

O lugar foi demarcado por cercas e uma placa em memória daqueles que se foram na tragédia da capital. Era rústico e de madeira, assim como muitas coisas da região, e não havia mais outra alma viva naquela tarde para lhes fazer companhia ou perturbar o espírito. Bom. Não precisaram se preocupar com inimigos, governo, polícia ou HYDRA. Wanda adiantou-se com dois pulos a frente, parando apenas para ler o nome de alguns conterrâneos nas lápides. Existiam algumas mais elaboradas do que as outras, com estátuas a mais ou a menos, embora não houvesse algo tão complexo quanto mausoléus ou criptas. Ao fundo, encontrou a área onde se enterraram os judeus que morreram naquele dia.

A esquerda, uma lápide simples: apenas um retângulo escuro incrustado ao chão, levemente inclinado para que pudesse ler as inscrições em hebraico e a estrela de Davi.

Pietro Maximoff.

Ela se ajoelhou, sua expressão torta. Nao se importou com a sujeira do solo e a umidade da neve. Pensou em dizer “oi”. Então lágrimas escorreram sua face novamente. Engoliu seco, murmurou dizeres próprios para a ocasião. Ela tentou não se recordar de que junto com a cidade, o cemitério anterior tinha sido destruído e aquela lápide de seu irmão era a única que podia expressar seu luto. Algo dentro de si dizia de forma maldosa que Wanda não completara o ciclo do funeral de forma apropriada, mesmo que Pietro tenha passado pelo Tahara através do Chevra Kadisha da comunidade judaica local e sido enterrado de acordo com todos os ritos. Ela discursara até, arrancou um pedaço das próprias vestes. O problema é que fizera tudo isso sozinha e tal fato parecia um prenúncio do resto de sua existência. Solidão e enterros. Fez o que pôde, embora de alguma forma sempre sentisse que nunca era o suficiente para honrar seu irmão. Honrar sua morte, sua breve vida.

Colocou as pedras uma a uma. Para seu pai, sua mãe, seu irmão e ela.

— Posso…?

— Sim.

Bucky sentou-se ao seu lado.

— Eu não o conheci, mas… — A frase pairou no ar, assim como o gesto de James Barnes. Segurava uma diminuta pedra na mão, hesitante se deveria ou não repetir o que ela fizera.

— Está tudo bem. — Wanda guiou a mão dele com a sua, repousando a quinta pedra sobre a lápide. Eles continuaram de mãos dadas.

Silêncio.

A Feiticeira inspirou e expirou o ar de seu país naquela tarde, de forma lenta e um tanto saudosa. Fechou os olhos. Viu a cor azul, como se diante de si e vivo, tão vivo que ela não sentiu tanta dor quanto achava que sentiria. Parecia que podia tocá-lo, mas ele era muito rápido. E então sentiu um abraço forte, um que sua alma sentiria por tdo eternidade ou outras vidas, se isso existisse.

Lembrou-se de sua risada. Seu gosto musical, seu humor ácido, suas mentiras tolas e discussões estúpidas. Dos momentos pesados, dos leves, dos insustentáveis. Lembrou-se de cada aspecto de Pietro Maximoff, seu irmão, seu gêmeo, parte de si.

Não foi uma experiência em que ele apareceu em espírito e lhe revelou um segredo, palavras de encorajamento e alívio, mas foi um instante em que as memórias banharam seu corpo - e não eram mais as cenas de seu corpo frio, baleado.

E aquilo era um começo.

— Wanda?

— Sim? — Ela piscou, enxugando a umidade de suas bochechas com as costas da mão direita, a que não segurava os dedos da mão de seu parceiro de memórias tristes. Seu rosto estava inchado e vermelho, sem falar que era uma decisão burra sentar-se no chão do cemitério e chorar enquanto o frio ainda reinava. — Desculpe. Eu estou chorando de novo.

— Não, é… — Ele deu de ombros. — Você está sorrindo.

— Oh.

Wanda sorriu mais e soltou um par de lágrimas ao mesmo tempo. Ainda não estava inteira ainda, talvez jamais remendasse seu coração. De qualquer modo, era bom saber que seus lábios sorriam sem que ela os forçasse.

Depois de mais algumas preces, Wanda e Bucky se levantaram. Ela usou a água do cantil para lavar as mãos antes de sair do cemitério, ele fez o mesmo. Outro costume que ela ficou feliz de seguir, embora houvesse a necessidade de enxugar logo os dedos para que não sofresse de hipotermia. Em frente ao cercado e tingido pela luz opaca do entardecer, um gato preto pulou de um túmulo e aproximou-se com urgência.

— Não voltem por onde vieram.

— Ebony! — Wanda correu até ele. — O que houve?

— O gato fala, Wanda. — Bucky comprimiu toda sua expressão. —  O gato fala mesmo.

— É ele. O amigo que falei, do truque da moeda.

— Chega disso, vocês dois. — O gato preto soltou um rosnado.—  Estão em perigo. Os homens responsáveis pelos Sentinelas estão vindo.

— Como nos acharam? — Bucky deu um passo, tentando ignorar o fato que se direcionava a um felino de no máximo três quilos e olhos muito grandes.

— Wanda. Ela é… mutante. Possível de rastrear. Conseguiram o sinal dela depois que entraram no perímetro de Novi Grad, ou foi o que entendi da conversa dos soldados. — Ebony respondeu, com cautela e urgência. — Vocês precisam sair daqui. Agora.

— Aqui é solo sagrado. Não podem simplesmente…

Houve um som de disparo e um arquejo de Bucky Barnes. O tiro passou de raspão por seu braço esquerdo, metálico. Danificou somente a jaqueta que usava. Ele e Wanda trocaram um rápido olhar e começaram a correr para o fundo do cemitério, o gato preto aparecia a cada esquina que viraram, sempre surgindo adiante em cima de lápides como se indicasse um caminho seguro.

A trilha acabava nos limites da floresta. O sol se punha entre as árvores e ele ouviram mais disparos arrancando lascas dos túmulos e estátuas. Era impossível dizer se existia uma equipe inteira atrás deles ou somente um franco-atirador, mas de qualquer modo estavam vulneráveis ao ataque, mesmo que corressem um tanto agachados. Pararam atrás de uma cripta de pedra cinzenta, os pulmões gastos da adrenalina. Wanda viu o braço metálico dele cintilar por debaixo do tecido amarelo ao seu lado.

— Não iria adiantar. — Ele explicou, captando o seu olhar e entendendo imediatamente o que queria dizer. O braço dele tinha a nova tecnologia wakandana de absorver e redirecionar energia, poderia servir de arma. — Eles teriam que estar muito mais próximos para atingi-los e… até lá nós dois morreríamos. Precisamos avançar entre a floresta e tentar dar a volta.

— Não ouviu o que o lenhador disse? Coisas estranhas acontecem fora da trilha depois do entardecer.

Bucky encarou o gato no chão, estupefato além de exausto.

— Você… Você nem estava lá! — Exclamou, com a certeza de que não vira nenhum gato consigo enquanto Piotr lhe dava instruções de como dirigir a velha caminhonete.

— Estou em muitos lugares ao mesmo tempo, soldado.

Bucky e Ebony trocaram palavras ásperas um com o outro. Por mais que o rapaz criado no Brooklyn durante os anos 20 não fosse dado a misticismo e superstições, o soldado que se tornou nos anos 40 tinha consciência de que era não era sábio ignorar os conselhos de um nativo quando a região era desconhecida. Talvez realmente não fosse bom caminhar entre a vegetação de Sokovia depois do pôr do Sol. Animais e ilusões criadas pela mente os aguardavam.

Talvez outras coisas mais palpáveis também.

De repente pareceu bom ter uma feiticeira e um gato falante ao seu lado.

— Quietos, vocês dois. — Wanda soltou a frase entre um sussurro e um rosnado urgente. — Não veem que estou tentando algo aqui?

O gato e o homem voltaram a atenção a ela, cujos cabelos ondulavam mesmo sem vento e os dedos brilhavam vermelhos. Gesticulava de forma delicada, a moeda de Ouroboros parada a sua frente e suspensa no ar. Por vezes saíam riscos, linhas tortuosas como relâmpagos e rubras como sangue, do espaço vazio em torno da moeda como se a realidade entrasse em colapso.

Bucky soltou o pior xingamento que conhecia.

— Wanda. — Ebony aproximou-se. — Não sinto que esteja preparada para nos teleportar no seu estado atual e… Surgir no meio de concreto ou outro ser vivo pode ser uma experiência deveras desagradável.

— Sabe outra experiência desagradável? Morrer.

— Wanda…

Um tiro atingiu onde existia o gato, mas não o atingiu de fato. A bala foi parar no chão como se tivesse atravessado uma sombra.

— Certo. Isso foi outra experiência desagradável.

A Feiticeira soltou um arquejo, expandindo seu gesto e abrindo uma janela que feria todas as leis da física. Enxergou possibilidades estranhas, indo desde realmente morrer a destruir tudo o que existia ao seu redor. Wanda quis escapar por brechas finas. Seus olhos iluminavam o cemitério com luz vermelha, a moeda suspensa no ar afinal caiu no chão com a face do olho para cima.

De repente, as estátuas de expressões vazias do cemitério não enxergavam mais os visitantes, nem mesmo o sol poente arrancava suas sombras no solo. Os três desapareceram assim como a moeda de prata, cuja a figura do imenso olho piscou antes de desfazer no ocaso.

Estavam parados ao lado da caminhonete.

Wanda sentiu sua consciência ir e vir enquanto Bucky proferia xingamentos pesados ao vento, misturando termos modernos e gírias antigas. Ela apoiou-se com uma mão na lataria do automóvel e virou-se para o outro lado, curvando-se enquanto segurava o próprio cabelo.

Vomitou a pouca comida que tinha no estômago.

Ebony, por sua vez, só piscou os olhos.

— Ah, chega. — Bocejou. — Nem parece que estou falando com o Sargento James Barnes e a Feiticeira Escarlate. Menos. Tiveram sorte de não terem misturado o corpo um no outro.

Bucky passou as mãos nos cabelos, segurando a própria cabeça.

— Eu acabei de me teleportar. — Sussurrou mais impropérios, deu passos sem rumo. — Tenho o direito de surtar aqui.

Wanda ia dizer alguma coisa, mas tapou a boca para evitar outra onda de ânsia.

— Urgh. — O gato suspirou enojado. — Vocês dois se merecem. Que tal entrarem no carro logo e saírem daqui antes que aqueles caras venham?

— Espera. Cadê minha moeda?

— Oh, deixe-me ver no meu bolso. — O felino olhou para o próprio corpo. — Ah, sim! Gatos não têm bolsos, mas bruxas sim. Olhe onde você deixou pela última vez.

Ela colocou a mão no bolso dianteiro da calça, no lado esquerdo, e dali puxou a moeda de prata. Não entendia como isso poderia acontecer ou como afinal tinha feito o truque. Pareceu natural e a mesmo tempo terrível.

— Você tem tanto a aprender.

— Como é? Você mesmo disse que não tinha segredo nisso. “Apenas faça, se divirta” ou qualquer porcaria que tenha falado. E eu consegui, droga. Pare de dizer o quanto tenho que aprender se você só fala coisas vagas. E onde está Agatha para me ensinar, então?

— Ela está… — O gato soltou um sibilo irritado com a língua. — Em Wundagore. Ocupada.

Wanda aquietou-se.

— Wundagore? O que diabos ela está fazendo lá?

— Quem é Agatha? — Bucky balançou a cabeça.

— Ocupada e é só o que vou dizer agora. Eu levei um tiro e…

— Mas você morreu? — A Feiticeira deu um passo a frente, cruzando os braços.

— A questão é que eu levei um maldito tiro, senhorita Maximoff. Entrem logo no carro. Farejo inimigos. Saíam daqui antes que consigam rastrea-la de novo.

Os dois afinal deram partida na caminhonete e seguiram o caminho de volta. O sol já havia caído e a luz faltava na estrada, portanto estavam a mercê dos faróis do automóvel e as estrelas. Bucky queria ir direto até o chalé de Belova para não ter a necessidade de andar mais alguns minutos no escuro, porém Wanda o lembrou que se levassem a caminhonete, teriam que explicar algumas coisas a Steve, Sam e até mesmo Yelena.

Estacionaram na frente da casa de Piotr, no vilarejo. Bucky tamborilou seus dedos depressa e de forma desritmada no volante por mais minutos do que o normal, a jovem ao seu lado dobrou o mapa de volta e o guardou no espaço lateral do passageiro. O caminho de Novi Grad àquele vilarejo foi seguro, contra as expectativas de ambos. Talvez tenha sido acaso, talvez sorte vinda do gato preto que dormia no colo de Wanda.

Piotr acendeu as lâmpadas de sua varanda e veio mancando recebê-los. Por mais que os dois negassem com todas as forças e argumentos mal pensados, o lenhador conseguiu convencê-los a entrar e tomar uma bebida quente, comer algo para forrar o estômago. Wanda e Bucky lembraram das bolachas velhas e café que os esperavam no chalé de Yelena Belova e afinal adentraram no lar do velho.

Comeram na sala, de frente para uma humilde lareira que esquentava a casa. Ebony deitou-se de forma displicente, enquanto a Feiticeira acariciava um ponto atrás de suas orelhas, sentada também em cima do tapete. Já havia comido um pão um tanto duro e rústico, agora tomava uma bebida que envolvia álcool, gemada bem doce, noz moscada e leite. Era difícil não fechar os olhos em puro êxtase ao tomar aquilo, passado tanto tempo sem comer direito.

Wanda, em um momento de silêncio em que Piotr não amolava Bucky com piadas tolas, notou que o velho em questão não era exatamente um lenhador ou somente lenhador, apesar de sua constituição física e roupas xadrez, sem falar da expressão fechada e severa. Mexia com madeira, isso era óbvio e até mesmo típico para a região de lenhadores, mineradores e operários, no entanto seu ofício era mais delicado. Existiam muitas peças entalhadas, miniaturas de animais da fauna local e decorações de aspecto rústico em sua casa. Aliás, sua casa era repleta de artigos de madeira, talvez até em excesso.

— Gostou de algo, menina? — O velho sentou-se na poltrona à sua frente, jogando todo seu peso para trás. Era a décima quinta vez que ele a chamava assim, enquanto dizia “filho” para se referir a James Barnes. Wanda perguntou-se onde de fato estava o filho biológico dele, mas não queria bisbilhotar sua cabeça de novo.

Ela lhe ofereceu um sorriso.

— O lobo. — Disse ela, apontando para a miniatura em cima da lareira. A figura não era tão bem detalhada, por mais que fosse óbvio que se tratava de um lobo uivando, e a madeira clara conferia um tom amador à peça.

— O lobo? Oh. Dentre tantas coisas, justo esse?

— Tem valor sentimental para você?

— Nem eu sei. Não ficou bom, mas não consigo jogar fora. Acho que estava esperando a dona aparecer.

— O que?

Ele levantou-se, pegou a miniatura e entregou nas mãos de Wanda. Bucky voltou da cozinha nesse momento, depois de ter lavado a louça do jantar dos três e o pote em que Ebony tomou seu leite morno.

— Você, cuidado. — Piotr ergueu uma sobrancelha e passou uma das mãos gordinhas e calejadas sobre a própria barba. — Essa garota doma lobos. Há algo feroz nela também.

O soldado engoliu seco, sem querer recordar-se do apelido dado a ele em Wakanda ou como as mãos dela traziam um confortável silêncio ao tumulto de sua cabeça. Não podia lembrar de tais coisas com ela ali presente, seus olhos muito atentos e ouvidos apurados, capazes de ouvir segredos que James Barnes nem sabia que tinha e que guardava de si próprio. Wanda e Bucky cruzaram um olhar estranho enquanto o lenhador ria.

Até que o riso dele cessou e Piotr o convidou a se sentar com eles.

— Por que tem sido tão gentil conosco? — Bucky perguntou, intrigado a ponto de não refletir se tal frase soava rude ou não. Talvez a gentileza do homem se tratasse ainda da magia da Feiticeira, que ocultava suas identidades. Os dois não eram rostos tão desconhecidos assim, ainda mais ela em seu país natal. De qualquer modo, Bucky não tirou a jaqueta. Não tinha necessidade de mostrar seu braço metálico.

 

— Dois garotos indo visitar o cemitério de Novi Grad, sem carro, sem carona, sem nem malditas botas decentes pra seguirem na trilha? Acho que a vida já foi dura demais com vocês, hã?

— Mas você falou de gente que usava heroína. — Wanda interpôs. — E nós sabemos que existe outros que estão só atrás de restos do que… Do que aconteceu na capital.

— O menor dos problemas é esse tipo de gente. Causam problemas? Sem dúvidas. Mas enquanto pegarem só o que é metal, posso relevar. Só mais alguns carniceiros, coisa de sempre. O que me preocupa são esses… — Piotr ergueu um pouco o pescoço, encarando um pouco a janela, e depois disse mais baixo: — Esses homens armados. Perturbam a paz de gente que já sofreu tanto, interditam áreas inteiras sabe-se o porque… Ouviram falar da fábrica que foi atacada ontem a noite?

— Sim… — A frase morreu na boca do soldado. Ele sabia que era melhor escutar o que o outro tinha a dizer. A Feiticeira ficou dura e as orelhas de Ebony abaixaram-se.

— Então, não era uma fábrica, uma empresa farmacêutica ou o que diabos inventaram por aí. Todo mundo sabe que coisas estranhas acontecem em volta de Novi Grad. Até hoje lembro daqueles adolescentes que se voluntariaram para experimentos há alguns. Pobres coitados. — Ele deu de ombros, soltando um bafejo sem humor. Wanda engoliu seco. — Eu não sei o que houve nessa tal fábrica, mas sei que esse grupo armado está furioso atrás dos responsáveis. Pelo jeito trabalhavam em algo grande. Algo bem grande. É bom ficarem quietos por um tempo, usem só rotas conhecidas, tentem ir em grupos… E não saiam das trilhas depois do entardecer.

— O que acontece depois do entardecer?

Piotr olhou para Bucky, depois para Wanda, que estava quieta. Voltou de novo a Bucky.

— Você não é daqui, hã? O sotaque… Meio russo. Mas ela sim. Diga, menina, o que acontece depois do entardecer?

A boca dela tremeu. Não eram acontecimentos tão comuns, tão frequentes… No entanto, eram o suficiente para que cada um na região de Novi Grad soubesse. Era superstição, boatos ou desculpas para aqueles simplesmente fugiam, enlouqueciam ou simplesmente eram pegos? A verdade jamais foi clara e talvez as pessoas preferissem assim.

— Vozes estranhas na noite. Vozes familiares. Pessoas e animais que nunca mais são vistos, mas isso é melhor. Melhor do que quando somem e voltam, porque já não são mais os mesmos.

Bucky nada disse.

— Eu tenho medo, menina. Evitei a Montanha Wundagore a vida inteira e parece que a Montanha vem até nós.

— O que você sabe sobre a Montanha Wundagore? — Foi o turno de Wanda questionar. Muitos citavam o lugar recentemente e tal fato não podia ser uma mera coincidência. Sentiria-se mais segura se juntasse informações, mesmo que esparsas, do que as pessoas tinham a dizer sobre a Montanha Amaldiçoada. — O que qualquer um sabe sobre lá?

— Eu sei que um dia ela se abriu. — Piotr encarou-a. —  Foi nessa mesma época do ano, fim do Inverno, há uns vinte anos. A diferença é que chovia. Eu estava em viagem, era caminhoneiro na época e não me interessei muito pelos avisos dos romani que encontrei por ali. A estrada que cortava a montanha era mais rápida, eu tinha um prazo curto… De repente uma luz branca cobriu todo o céu, me cegou. Eu bati numa árvore. Meu filho morreu. E eu… nunca me curei do que houve.— Indicou a perna direita com qual ele mancava. —  Mas me recordo muito bem de gritos. A última coisa que vi antes de desmaiar foi uma mulher saindo de uma fenda de luz. Fogo. E outra ficando para trás.

Ebony não ronronava mais.

 

Piotr insistiu que dormissem ali, talvez assombrado com a memória e temendo pela segurança deles. Wanda e Bucky foram firmes e afirmaram, mentindo, que a casa onde moravam não era longe.

O vento era frio e uivava, mas os dois estavam acostumados. Ebony não esboçou comentários sobre a conversa com Piotr, não explicou nada sobre a Montanha Wundagore ou o que Agatha Harkness fazia lá. Isso por si só já servia de resposta para Wanda, que agora estava certa de que algo muito errado de fato acontecia na montanha ao Norte. Ele dormia em seus braços enquanto a Feiticeira andava, moeda de prata num bolso e lobo de madeira no outro. Em seus dedos, magia para iluminar a trilha.

Bucky não viu bons presságios em caminhar até o pobre chalé. O trajeto demorava meia hora para ser cumprido, se o ritmo fosse bom e a neve não os atrapalhasse mais. Imaginar o que acontecia depois do entardecer não ajudava. Sabia que podia ser apenas impressão, mas figuras pareciam encará-lo entre as árvores, à espreita. Quando virava seu rosto para vê-las, já não estavam mais lá. Seriam espíritos, criaturas? Ou fantasmas criados pela sua própria cabeça?

Não saberia dizer. Seguia apenas o seu caminho, Wanda Maximoff na frente guiando-o com sua feitiçaria escarlate. A noite era negra e vermelha.

Chegaram. Bucky foi dormir na sala, Wanda voltou para o quarto e Ebony desapareceu. Nada indicava que os dois tinham ido ao cemitério e escutado histórias de terror, tamanha a paz no chalé. A Feiticeira, porém, demorou um pouco mais para cair no sono. Segurava a miniatura de lobo com as mãos, girando-o, admirando seus entalhes mesmo com pouca luz. Algo em seus poros a fazia se sentir muito consciente de sua própria respiração, da respiração calma de Bucky Barnes ao cômodo ao lado. Ela franziu o cenho quando seu tórax palpitou, pulando uma batida. Tentou não pensar no nome daquele sentimento.

Mas não conseguiu deixar de pensar no toque das mãos de James ou sua expressão um tanto tola quando não sabia o que estava acontecendo. Seu silêncio que a convidava a se abrir e sua voz grave a dizer coisas doces, a dizer “boneca”.

Engoliu em seco e afundou o rosto no travesseiro.

Eles eram conhecidos. Amigos, amigos que conheciam bem as partes vulneráveis um do outro. Agora cúmplices. E somente, certo? Somente. Somente.

A noite respondeu por ela.

Viu que a luz da sala não se apagava ainda depois de uma hora e o burburinho de uma televisão antiga transmitia notícias esparsas e indistintas, quase sem sinal. Ele não conseguia dormir também, o homem que arriscara sua própria vida para levá-la ao cemitério, a pessoa que a vira chorar e se desfazer quase por completo em seu pior, e mesmo assim apenas a abraçara forte, perto do coração.

Wanda levantou-se da cama, saiu do quarto ainda com a miniatura de madeira nas mãos. Foi até a sala logo ao lado e ali o encontrou imóvel, sentado no sofá enquanto assistia uma imagem chuviscada da televisão. Ela se aproximou devagar, sentou-se ao seu lado esquerdo.

— Você se arrepende? — Perguntou e Bucky afinal repousou seus olhos em si, como se ela de repente tivesse aparecido. Levou alguns segundos para processar a questão, portanto a Feiticeira se sentiu impelida a continuar. — De ter ido comigo? Tiros. Magia. Histórias que não nos deixam mais dormir.

— Não. — Ele disse, muito simples. — Essa… Insônia é antiga.

Deu de ombros.

— Eu sinto muito. — Wanda murmurou.

— Eu também. Mas… — Ajeitou-se no sofá, para encará-la mais de frente. — Vá dormir, precisa descansar.

— Parece injusto dormir quando você não consegue.

Ela pegou a mão metálica dele com a sua e voltou sua atenção para a tv, como se aquele ato fosse banal. Demorou alguns instantes a mais para sentir a pressão gentil em seus dedos de volta, recíproca. Silêncio dos dois lados.

Wanda Maximoff era uma jovem tola. Por que surpreendia-lhe que alguém poderia encarar todos os seus demônios e amá-los quando ela fazia justamente isso?

Aquele sentimento, aquela palavra que não parecia caber na sua boca e no seu coração. Não tinha coragem de saber a resposta ao invadir a cabeça de James Barnes.

Eles não eram somente amigos e não muito mais do que isso, mas o que eram exatamente não tinha nome e sinceramente não importava. Apenas eram, com suas não-conversas.

E isso era o suficiente.


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Notas finais do capítulo

"Mas você morreu?" hahaha eu adoro esse meme.

*Piotr é o nome de um personagem do livro "Kate Somente", que é uma obra que recomendo demais. Eu chorei mais de uma vez lendo, gzuis. O personagem é pai da protagonista, um entalhador.

*Tahara = preparação do corpo segundo a crença judaica.

*Chevra Kadisha = parte da comunidade judaica que se dispõe a cuidar de ritos fúnebres.

*o costume de colocar pedrinhas no túmulo é real, bem como arrancar uma parte das vestes.

*A fanfic se passa antes de Guerra Infinita. Dificilmente irei mudar o rumo do enredo por conta do filme, mas se algo me der um insight legal, posso pensar no caso.

*Bucky já percebeu que é diferente com Wanda e nesse capítulo a fiz notar que isso era recíproco. Foi um ponto interessante de escrever, esses sentimentos não admitidos ou negados... Até mesmo conversei com a leitora queridíssima Switchblade sobre isso.

*O Leste Europeu, onde supostamente fica Sokovia, é recheado de histórias inexplicáveis e recomendações sobre a floresta depois que o Sol se põe. Quis explorar esse misticismo um tanto folclórico aqui.

*Agradeço muito o meu squad que me inspira a escrever; Seus headcanons estão no meu coração.

*Ontem escrevi uma oneshot AU - Enfermeira & Soldado - Winterwitch. Caso gostem desse tipo de coisa, é só dar uma olhada aqui:
https://fanfiction.com.br/historia/759467/Maos_Seguras/

*O capítulo foi revisado, mas existe a possibilidade deste arquivo ser sabotado pela HYDRA. Caso encontre algum erro, favor reporte à Shalashaska.