Vazios escrita por Shalashaska


Capítulo 38
XXXVIII


Notas iniciais do capítulo

Como o prometido, aqui está o novo capítulo! Na verdade ele era somado ao anterior, mas decidi cortá-lo para não ficar cansativo - assim como fiz com alguns capítulos antes. Agradeço muito o apoio das pessoas que disponibilizaram tempo para deixar comentários tão gentis, então aqui vai meu agradecimento especial a Nath Weyes,
Dhowechelon, madiejasper, MimisaRi e LadyStark!
Boa leitura!



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Wanda tinha a inconveniente teima de se negar a fazer o que lhe era dito dependendo da situação, traço compartilhado por seu gêmeo e até mesmo acentuado nele. Não era preguiça ou escárnio para fazer o que era necessário, era apenas aborrecimento por seguir ordens de alguém. No entanto, lhe sobrava ainda o mínimo de discernimento para saber que deveria completar sua nova agenda de deveres estabelecido pelo rei de Wakanda, ainda mais que este não esboçara um único comentário de repúdio pelo o que acontecera no laboratório, nem mesmo mencionara os custos de equipamentos quebrados ou exames feitos por James, que acordara no meio daquela confusão.

Ás vezes ela se flagrava divagando, pensando se ele acordara por conta de algum código acionado pelo dispositivo de Zola. Outras vezes questionava se existia a possibilidade dele querer protegê-la. No fim sabia que aquilo era fruto apenas do caos, um resultado aleatório de uma situação infeliz.

Talvez mostrasse o caderno à James, sobre as coisas que ela anotara e as palavras que o atingiam em cheio para o transformar numa máquina. Ela se lembrava que anotara mais palavras do que chegara a testar de fato na conexão psiquica e nas memórias, mas não imaginava que deveria testar mais coisas. Um dia talvez no futuro, se ela sentisse que ele não teria nojo dela por ser uma criatura de mente dividida e tão invasiva.

Com pensamentos infelizes, Wanda chegou rápido aos aposentos da princesa. Encontrara muitas Dora Milaje no percurso, que pareciam ter retirado qualquer simpatia pela estrangeira por conta do incidente. A Feiticeira compreendia a reação, pois ninguém deveria ferir a herdeira do Trono, que dirá uma refugiada de guerra como ela. Ela bateu à porta, murmurou seu nome.

E a porta foi aberta.

 

Foi um sistema automático, sem nenhuma recepção. Ela já estivera ali para estudar livros de psicologia e misticismo junto com a princesa, mas agora o cômodo parecia ainda maior e impessoal, a estatueta de gato, de Bastet, a julgava com seus olhos brilhantes. Parecia ter passado tanto tempo.
Quando pensava em sair ou procurá-la além do hall de entrada, Shuri veio da porta que dava ao seu dormitório propriamente dito, apoiada em uma muleta.

Sua face parecia melhor, no sentido de sua pele ter se recuperado de forma evidente de seus hematomas, tantos os causados por Avalanche quanto os da briga há sete dias. Wanda gostaria de ter um organismo que a limpasse de feridas tão rápido assim.

— Veio rir da minha muleta?

— Eu só riria se tivesse um cone no pescoço, Alteza.

Shuri riu pouco, andando alguns passos até desabar no sofá. Acima de tudo, estava cansada.

— Essas piadas envolvendo gatos nunca vão parar, vão?

Wanda repetiu o gesto e sentou-se numa poltrona do outro lado da mesa de centro. Desejava que sua postura fosse despreocupada, mas ainda assim estava próxima da borda do estofado e de quando em quando lançava olhares à porta. Esperava quando Shuri a mandaria embora, talvez enxotando-a com sua muleta ou jogando a estatueta.

— Não me parece realmente ofendida.

— De fato, não estou. Não por isso. — Ela deu de ombros. A pergunta seguinte referia-se à tudo: À briga no laboratório, aos duelos na arena das Dora Milaje, às trocas de insultos em toda a oportunidade possível. — Você está?

— Eu queria dizer que sim, mas não consigo ficar realmente brava com você.

— Desgraçada. Eu digo o mesmo.

Elas compartilharam mais uma vez um riso sem um pingo de humor.

— Acho que aprendemos dessa forma a não reagir com violência física.

— Ao menos não nos alvos errados. — Shuri argumentou. — Quantas vezes nos batemos porque queríamos bater em outra pessoa? Se você não tivesse sido meu alvo, talvez eu tivesse matado meu irmão. Temos o péssimo hábito de descontar nossas frustrações uma na outra.

Wanda quis dizer que se não fosse para trocar socos com a princesa ou com as Dora Milaje, talvez ela tivesse cometido uma violência permanente contra a si mesma. Permaneceu em silêncio, porém, já que a despeito de todas as circunstâncias Shuri estava de bom humor. Não era justo e nem de bom tom macular tal momento.

— Que tal não partir mais para a violência? Podemos descontar tais frustrações em… sei lá, comida.

— Argh, pare. Agora sei que a profecia de meu irmão caiu sobre nós. Lembra-se do que disse? Algo como T’Challa querer que você aprendesse a usar os punhos e eu quando não usar.

Alguns minutos se passaram antes que Wanda respondesse.

— E nós aprendemos isso?

— É, acho que sim. Que seja.

Shuri espreguiçou-se no sofá, entediada e aborrecida. Wanda compreendia aquilo também, o fato de tentar fazer coisas diferentes, corretas e melhores e falhar miseravelmente nisso. Ao menos agora podia relaxar na poltrona, sem se preocupar em ter uma estatueta de gato arremessado contra seu olho. Era estranho, mas ela sentia que essa era uma possibilidade muito real e que talvez acontecesse em outra vida.

A princesa afinal parecia centrada e serena. Wanda soubera através de outra curta mensagem dela, enviada pela pulseira kimoyo antes mesmo de ter acompanhado Barnes na consulta, que sua mãe Ramonda voltara de Birnin Azzaria, ou simplesmente Azzaria.Birnin” significava “cidade” na língua local e Azzaria era um nome dado em homenagem à um Pantera Negra ancestral. Disse que ela, madrasta de T’Challa, estava um tanto decepcionada por sua filha ter se tornado cega com sua ambição e impulsividade, mesmo que as consequências da briga no laboratório não tenham sido tão catastróficas quanto poderiam.
Shuri confidenciou à Wanda que afinal aprendera a ser cautelosa. “Uma pantera somente alcançaria a casa se tivesse as patas leves e astutas.” Disse ela, surpreendendo a Feiticeira Escarlate por fazer uma metáfora e não uma analogia com fatos científicos. A sokoviana também não pôde deixar de notar que existiam outros livros na mesa de centro e outros um tanto bagunçados nas prateleiras. Todos sobre a cultura, todos sobre lendas.

— Como está sua perna?

— Quebrada. — Ela apenas piscou. — Os médicos disseram que vou me recuperar rápido, se isso te tranquiliza. Encomendei um acessório de polímeros para acelerar a regeneração da tíbia. Vai ser tipo um gesso, só que equipado com pulsos de ultrassom e de estética agradável. E você?

— Tiveram que retirar alguns cacos de vidro das minhas costas e costurar de novo meu ferimento no tronco. E acho que minha pele vai ficar roxa para sempre.

— E essas marcas no seu pescoço?

— Fui eu. Acordei pensando que… — Ela pôs a própria mão na altura da garganta, num gesto instintivo embora delicado. — Que eu tinha uma coleira.

— Oh. — Shuri então abriu bem as pálpebras, endireitando-se no sofá. Seus olhos escuros reluziram em uma tonalidade triste e alerta, mas Wanda estava certa de que não ouviria um pedido de desculpas. Tecnicamente, aquilo não havia sido culpa dela mesmo. A princesa a analisou durante alguns instantes e depois de considerar o assunto encerrado, desviou para outro. — E Barnes?

— Confuso, mas bem. Acabou de receber uma prótese nova.

— E ele sabe que você… Sabe?

— Sim. — Ela mordeu os lábios. — Não conversamos muito sobre isso. Aliás, não conversamos muito sobre nada.

— É uma boa ideia dar um tempo para ele, mas é nosso dever saber o quanto Barnes sabe e o quanto esteve ativo de forma consciente naquelas, hã, conversas entre vocês dois. Ou o que quer que chame. Senhor Stark gastou um bom dinheiro com apenas uma memória naquele projeto B.A.F.O. dele e você obteve resultados talvez ainda melhores com um gesto das mãos.

O projeto B.A.F.O. era a sigla de Binária Argumentação de Frame Ornamental, tecnologia criada por Stark para recriar memórias e talvez digeri-las melhor. Era uma comparação interessante e enjoativa.

Wanda sentiu o impulso de corrigí-la e tentar explicar como seus poderes escarlates funcionavam, mesmo que não soubesse exatamente por onde começar, lembrando-a que todo o processo custou pedaços importantes de sua paz de espírito. Novamente, ela se conteve e apenas perguntou:

— Isso é um elogio?

— É uma constatação. E não se acostume. Eu te fiz perder o shabat, nao é mesmo? — Ela citou o descanso semanal que a religião de Wanda pedia que fizesse do pôr-do-sol de sexta-feira ao de sábado. — Desculpe.

Ela sorriu, sua boca balbuciou para agradecer e aceitar o pedido de desculpas. Era um momento raro que guardou em seu coração. Shuri, tão sólida quanto um rochedo, poderia ser tão compassiva quanto um quartzo rosa. Havia notado que Wanda desejava voltar aos poucos aos seus ritos e costumes da infância e para ela aquilo significava muito. Talvez aqueles livros que via na mesa significasse que Shuri desejava fazer o mesmo.

Não era correto brigar no shabat — não estava explícito no Talmude, mas era óbvio que não era de bom tom tirar sangue do outro com os próprios punhos em data alguma.

— Escute, — Começou uma nova frase de repente. — Meu irmão me impediu de acessar os arquivos confidenciais por um tempo. Não ligo tanto, mas ele quer que eu me afaste dos deveres reais por um tempo. Isso explica o porque não te passei muitas mensagens e porquê não vou conseguir te ajudar na busca por resultados da base da HYDRA e nem sobre o que diabos Zola quer ou o quê está fazendo. Mas ouvi ele dizer sobre pulsos eletromagnéticos ao redor do mundo e algumas notícias na televisão. O que está acontecendo?

— Oh, eu… Bem, quem mais explicou foi professor Xavier. — Wanda respondeu, recordando-se da breve reunião que aconteceu no quarto da ala médica, enquanto ainda estava hospitalizada. Foi uma conversa breve entre Steve, Natasha e o telepata. — Disse que não é coincidência.Todos os apagões aconteceram do Sul da Índia para cima. O último foi na fronteira da Ucrânia com a Polônia. O primeiro não teve um epicentro corretamente localizado, mas seus efeitos foram sentidos no leste da África, entre o Quênia e a Somália, na mesma data em que plugamos o dispositivo de Zola no painel. Acha que encontraram Magneto, mas não sabe dizer porque estão discretos ainda.

— É, isso realmente não faz sentido.

A Feiticeira concordou.
A calmaria tomou conta dos corredores e cômodos do Palácio Real e aparentemente do resto do mundo também. Não houve notícias de outros ataques violentos de causa mutante, nem mesmo boatos novos sobre aparições dos antigos Vingadores. Até mesmo o plano Sentinela parecia empacado no congresso dos Estados Unidos. As reportagens na mídia perderam fôlego, repassando mais sobre ataques cibernéticos envolvendo dados pessoais e extorsão em bitcoins, fatos que traziam alívio e sombras de desconfiança ao grupo exilado em Wakanda. Não era comum um tempo tão longo para se respirar com folga, porém todos receberam tais dias livres com regozijo e um tanto de descanso.

Xavier, no entanto, continuava alerta. Preparava seu retorno ao Instituto, mas ainda assim queria ser útil aos seus novos aliados. Mesmo que silencioso na maior parte do tempo, seu semblante era de uma quietude nervosa e suas palavras eram levadas a sério. Ele chamou a atenção de todos para a frequência de apagões causados por fortes pulsos eletromagnéticos.

Steve e Sam despendiam suas tardes em conversas com o monarca T’Challa, repassando missões concluídas e tentando antecipar o próximo passo de Zola e seus novos aliados mutantes. Wanda sentia que eles também tinham planos próprios e agora ainda mais urgentes, mas não queria se preocupar com eles por hora. Aproveitava para se recuperar da surra que levara no laboratório e conversar um tanto mais com Natasha, atividade que poupava a médica Njeri de sua função de psiquiatra. A russa também revelara que partiria em breve, pois não era saudável sair dos olhos das Nações Unidas e atrair a atenção de Stark.

Wanda não podia deixar de sentir que se tratava da calmaria antes da tempestade e clamava por desta vez estar errada.

Despediu-se de Shuri. Antes de se dirigir aos jardins de acordo com o combinado com o monarca, Wanda passou em seu quarto e pegou a foto - a única foto - que tinha com seu irmão e seus pais, pois lembrava-se que Natasha havia dito que professor Xavier gostaria de dar uma segunda olhada nela, fosse lá o motivo.

No caminho, pensou em como falara tão pouco sobre o quanto ela e Shuri se feriram. Tão poucas palavras, um pedido de desculpas pífio e ainda assim tudo tão pesado e significativo. Era ridículo como ela e a princesa agiram como selvagens e não foram dadas ao diálogo, de modo que Wanda só podia pensar em quantas outras vezes poderia ter sido mais sensata. Por quê sentir tanto? E como não sentir demais?

Estava satisfeita por ter dado tudo certo, por mais que soubesse suas próprias incongruências e hipocrisias. Ela era capaz de violência e sabia disso. Sabia que muitas vezes o desejava e por fim o tinha em suas mãos.

E era, de forma análoga ao axioma hermético que lera em livros sobre misticismo, que “assim como em cima, é embaixo; assim como dentro, é fora.” Wanda era capaz das mais belas violências, e o mais temíveis amores.

Wanda sabia o quanto sua ira poderia ser despertada em menção àqueles que amava.

 

* * *

As tardes em Wakanda eram as mais belas, pois o sol se derramava cálido em todas as coisas antes de desaparecer no céu azul marinho. O verde do jardim encontrava tais tons alaranjados do ocaso, o púrpura das nuvens e a Feiticeira Escarlate podia sentir um pouco de paz. O caminho era extenso e ela ainda não via Professor Xavier, de modo que se pôs a admirar mais um pouco a vegetação tropical e o cuidado em que havia sido construido tal jardim. Sentou-se em um dos bancos de pedra e largou os olhos no horizonte, contemplando a quietude e o calor.

Até que ela viu um gato.

Um gato preto.

“É claro que é um gato”, parte de si disse. “E é claro que é preto. Que lugar melhor do que Wakanda, país que cultua a deusa pantera, para ter gatos e ainda por cima gatos pretos?” A outra parte de si remanescia surpresa, com o ímpeto infantil de estender os braços e murmurar palavras doces para o felino, chamando-o feito uma criança.

Ele, que estava descendo uma das árvores do jardim e quase esbarrando em uma samambaia, simplesmente parou no chão e a olhou, sem se aproximar. Foi Wanda que saiu de sua confortável posição no banco e agachou-se perto do animal, ainda um metro distante dele. Ela sorria e tentava conversar com ele em sokoviano, língua que parecia mais própria de gatas por contas das sequências mais truncadas e quase ronronadas. Sem alcançar interesse do gato, ela tentou algumas termos desajeitados em wakandano.

— Qual é o seu nome?— Ela perguntou, tentando pronunciar corretamente. Ele a encarou com seus grandes olhos amarelos em resposta, de forma paciente, e em seguida Wanda ouviu uma voz em sua cabeça. Era uma voz de pensamento, como se ouve em lembranças ou até mesmo se raciocina, mas a voz que veio era masculina.

“Gatos não têm nomes”

Wanda engoliu em seco, já o gato soltou um bocejo cheio de descaso. Ela olhou para os lados para se certificar que não era Xavier lhe pregando uma peça, mesmo que a voz fosse diferente. Ele ainda não estava lá. Voltou-se mais uma vez para o gato e dessa vez pensou a pergunta:

“Não?”

“Não” respondeu o gato. “Agora, pessoas têm nomes. Isso é porque vocês não sabem quem vocês são. Nós sabemos quem somos, portanto não precisamos de nomes.”

“Oh.” Wanda piscou. A afirmação do gato a atingiu como um soco no estômago, mas logo um riso veio aos seus lábios. Viu-se tola por não ter percebido antes: estava recriando o mesmo diálogo que Coraline travou com o gato preto. “Para citar livros assim, deve ser Ebony. Agatha te mandou, certo?”

Ele miou em resposta, dessa vez mais como gato do que entidade.

“Esplendido ser uma pessoa culta. Tive medo que Agatha quisesse uma aprendiz qualquer.” disse, depois de se esfregar um pouco em sua perna. Apesar de gostar dos livros do autor em questão, ela se indagava se poderia considerar-se culta por ter lido Coraline enquanto ainda morava no Estado de Nova York. Não era exatamente um clássico. Ela se levantou e ficou de pé, pois seus joelhos cansaram-se, e ela e o gato puseram-se a andar no jardim. “ Se leu o livro, então deve saber qual será minha primeira lição, correto?

“Bem, eu.. Li há um tempo. Não lembro tanto assim de detalhes e… Ebony?”

O gato havia desaparecido depois de passar por detrás de um tronco. Por um segundo que pareceu durar mais, Wanda indagou-se mais uma vez se tinha perdido de fato sua sanidade mental, até que ouviu o farfalhar das árvores mais uma vez e o gato reapareceu em um galho acima da cabeça da Feiticeira Escarlate, balançando a cauda.

“Pelo visto, ainda tem o que aprender. Vá até a Biblioteca depois, até a sétima prateleira à esquerda e pegue o nono livro à direita, na altura de de seus ombros.”

“Se for uma cópia de Coraline ou Alice no País das Maravilhas, vou ficar possessa.”

O gato não respondeu. Apenas soltou um suspiro entediado e subiu mais um galho, parecendo pensativo.

“Tem certeza de que não quer vir conosco? Me acompanhe e estará fora de Wakanda.”

“Eu disse para Agatha. Ainda não.”

“Há algo vindo, você também sabe” A voz dele em sua cabeça era agourenta, enquanto seus olhos eram muito tranquilos e refletiam o sol poente. “Estaria segura em nossa casa. Agatha pode ajudar.”

“Não demoro, mas devo explicações a outras pessoas. Não posso sumir de repente.”

Ele deu de ombros, da maneira que era possível gatos fazerem tal gesto. Balançou o rabo e despediu-se com um ronrom mais alto. Quando passou de atrás de outro tronco, não saiu do outro lado, apenas desapareceu.

De fato, havia algo vindo. Não sabia se a ansiedade que subia no seu esôfago era o medo por Magneto ou fascínio por ele, se era receio de que Barnes a odiasse ou outras tantas questões não resolvidas. Mas, era certo: algo se aproximava e ela só podia imaginar como Agatha se preparava para isso e qual era o motivo de sua insistência em levá-la para casa.

O que mais Agatha aprontaria?

 

Como se fosse cronometrado, Xavier apareceu no instante seguinte. Não estava próximo de Wanda, entre as plantas, mas sim na varanda. Ele a chamou pelo nome e parecia forçar um sorriso, pois o suor em suas têmporas não mentia sobre seu nervosismo. A Feiticeira ouviu seu chamado e logo o atendeu, cumprimentando-o de maneira breve e de forma alguma pretendendo citar a conversa que tivera com um gato.

Ela se sentou no chão da varanda, numa situação semelhante a de dias atrás, quando ela, Xavier e Ororo conversaram no final da tarde. Ele perguntou educadamente se sentia-se bem - devido a briga com a princesa de Wakanda e todo o caso anterior envolvendo a Mística - e ela respondeu que sim, esperando o que vinha a seguir. A aura do professor estava trêmula aos seus olhos, tanto que se perguntava a razão que o impedia de ir direto ao assunto, mas ela sabia que certas conversas não deveriam ser precipitadas.

— Não tenho intenção de alertá-la, — disse ele, muito brando e cauteloso. — Mas quero saber se tem a foto contigo. Digo, aquela que me mostrou antes, com seu irmão. Tenho a permissão de vê-la novamente?

— É claro. — Wanda tirou a fotografia de seu bolso e o entregou com cuidado. Parte de si tinha preocupação exacerbada pelo item, de modo que seus olhos acompanhavam os movimentos do telepata com grande atenção. Seus poderes escarlates também trabalhavam, erguendo uma muralha psíquica impossível de ser destruída, mas ela não sentiu nenhuma tentativa por parte do professor. Isto a fez se sentir culpado e não demorou em relaxar.

Charles, por sua vez, tinha a postura rígida e o rosto, sempre tão cordato, torcido numa expressão assombrada. Wanda podia jurar que ele assistia a um fantasma do passado, do modo que empalidecera.

— Professor? Está tudo bem?

— Eu preciso repetir a pergunta, minha cara. Você lembra-se de ter algum parente mutante? Alguém chamado Magnus? Ou uma mulher chamada Magda, talvez uma tia-avó, talvez até mesmo sua avó?

Ela negou com um gesto, agora assustada. Algo cresceu em seu estômago, algo que lhe derretia de dentro para fora. Seus lábios tremeram e havia sede em afinal valer-se de seus poderes para arrancar a verdade dele.

— Disse que não queria me alarmar, mas está me assustando.O que… O que quer?

— Não desejo nada senão paz. — Sua voz era distante. Wanda piscou uma porção de vezes, quase levantando-se para chamar alguém, algum funcionário, talvez ajuda médica. Ele estava perturbado, até que por fim cedeu a sua costumeira expressão resoluta - por mais que não houvesse alegria ali, apenas resignação e dor. Charles não estava em si. — Toda essa ira que você tem, eu já senti. Em outra pessoa. O rosto de seu irmão tem semelhança assombrosa com um amigo que para mim é um irmão, um que eu amava muito e que seguiu outro caminho.

— Erik Lensherr. — Ela completou a sentença num sussurro. Sua memória corria para lembrar-se de algum parente parecido, um nome distante. Todos nômades, pela cultura romani e pela etnia e religião que provocavam repulsa nas cidades que habitavam. Sabia de uma tia, apenas. Natalya, ironicamente. Mandava cartas e alguns presentes, até que nunca mais se ouviu falar dela, antes mesmo da explosão que destruiu seu telhado, sua sala de jantar, sua família e sua vida. Wanda sacudiu o rosto, retraindo-se. O rosto de Pietro, sua expressão dura com as sobrancelhas e riso matreiro nos lábios. A face de Magneto, o homem das fitas e da visão dos anos 60, seu queixo bem delineado e os olhos da exata cor de seu irmão.

— Você vê a semelhança. E sei da empatia que tem pelo ódio que ele sente.

— O que está dizendo não faz sentido. — Ela não conseguia sentir o chão abaixo de si, apesar de grata por já estar sentada no piso de madeira. Sua voz era um ganido e seus olhos tinham lapsos vermelhos, banhados em lágrimas precoces. Se não acreditava, porquê chorava? — Por quê está falando isso? Por quê?

— Ele está acordado, eu senti. E ele soube da morte da filha, Lorna. Esses pulsos eletromagnéticos não tem acontecido por nada, Wanda. Nós sabemos disso. E algo me diz que você sabe também.

— Pare. — Ela implorou, pois o vermelho tomava conta de seus olhos e emoções transbordavam de dentro para fora e de fora para dentro. Seu desespero, o de outros. O de Erik, quilômetros e quilômetros dali. A morte dela, de Polaris, tão jovem e tão querida, há tantos anos.

— Ele acordou no dia em que sentiu mais ira e você é tão parecida com Magda… Pietro é a cópia perfeita de Erik. — Charles estava tão chocado quanto ela. Era uma ideia terrível, uma ideia que não parecia possível até que ele enumerasse os fatos e afinal os verbalizasse pela própria garganta. Não via, porém, o quanto causava dor. —  Eu não sei como isso funcionou, como aconteceu, mas a relação entre vocês é inegável. Os únicos a sobreviverem aos experimentos da HYDRA. O último pulso eletromagnético destruiu todos os arquivos eletrônicos e dispositivos na fronteira da Ucrânia com a Polônia, na última base conhecida da antiga SHIELD.

Polônia?

— Sim. Seu país.

A melodia da música que Wanda não deveria saber -  mas sabia — numa lembrança que deveria guardar - mas não tinha— inundou-lhe os ouvidos, deixando-a doente. James havia mostrado à ela, o quanto ela própria, em trapos e no chão de um laboratório, cantarolava algo em polonês, uma música de ninar.

Ela colocou ambas as mãos na cabeça, na tentativa de deixar sua sanidade no lugar.

— Oh, Deus…

A sensação de familiaridade, desde a primeira vez que o vira. A voz, as palavras, o discurso que ele proferira e que parecia algo que ela diria sobre o próprio irmão:

 

Eu não vou vê-los terminar como cinzas…

 

O ódio. Os gestos das mãos. A canção. Até mesmo a religião.

A vingança.

A cor escarlate.

Wanda segurou as lágrimas o tanto que pôde enquanto as peças se encaixavam no lugar, caóticas e tão bem emparelhadas. Havia algo certo naquilo e tal fato era tão errado. E de tanto segurar tais lágrimas, desandou num soluço incontrolável. Ela se levantou de súbito, sem perceber que professor Xavier chamava seu nome num tom de súplica, pedindo-lhe desculpas, desculpas, desculpas.

Saiu correndo. Foi até seu quarto, trancou a porta. Sua pele estava eletrizada e ela gostaria de sair do próprio corpo e nunca mais voltar, pois ela já era uma casca oca. Vazia.



James Barnes estava no hall dos dormitórios quando assistiu a Feiticeira vir correndo como se fugisse de algo terrível. Sozinho e quieto, ele fechou o livro - finalmente em inglês - que tinha em mãos e aproximou-se do quarto dela. Sua mão ergueu-se sozinha, de forma automática, para bater à porta e chamá-la, entretanto ele ouviu um lamento grave, incessante, que o fez parar, tão congelado quanto em criostase. Algo dentro dele, que ele nem sabia que restava dentro de seu peito, se partiu. Deveria bater, entrar, consolá-la. Mas ele não a chamou.

 

E nem saiu de sua porta.


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Notas finais do capítulo

*A parte em que cito as cidades de Wakanda pode ser encontrada em "Pantera Negra: Uma nação sob nossos pés". São três volumes incríveis que eu recomendo muito, mostra muito da estética, filosofia e cultura de Wakanda ♥
*O diálogo entre Wanda e Ebony é praticamente o mesmo diálogo entre Coraline e o Gato, no livro "Coraline". Sim, eu amo Neil Gaiman haha
*No capítulo seguinte teremos mais explicações do porquê Xavier pareceu mais urgente.
*O capítulo foi revisado, mas existe a possibilidade deste arquivo ser sabotado pela HYDRA. Caso encontre algum erro, favor reporte à Shalashaska.



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