Vazios escrita por Shalashaska


Capítulo 27
Devyat' - Parte Três


Notas iniciais do capítulo

Há algo que nos faz frágeis. Há algo que nos faz violentos. Tento passar essa dualidade com a Wanda, sempre tão a beira desses dois sentimentos.
Aos poucos estou colocando os X-Men aqui, e acho que vocês sabem quem vai aparecer depois de um tempo. Sim, perfection.
Magneto.
Assim que as coisas se desenrolarem, vou postar uma linha do tempo pra entender as paradas, porque não tá fácil.



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Eles deram uma breve caminhada pelos jardins do palácio, conversando amenidades enquanto T’Challa mostrava espécies nativas de plantas e como funcionava o sistema sustentável e limpo de iluminação, que era aceso agora no início da noite. Wanda não se lembrava de ter desfrutado de um passeio agradável assim quando chegara, mas para ser justa, não se lembrava de tanta coisa. As memórias fugiam dela em momentos de estresse agudo, diluíam-se umas em cima das outras. Franziu a testa e passou a mão no próprio pescoço, como se a coleira de choque ainda estivesse ali.

E a canção? Que canção era aquela que Wanda murmurara no laboratório sujo da HYDRA, anos atrás? Bucky se lembrava. Ela não.

Shuri aproximou-se dela, mais para trás do grupo.

— Ei. — Ela falou baixo, sem alarmar o resto. — Você está bem? Digo, você a conhece, certo? Ororo Munroe, a Tempestade.

— Ah, sim... Eu só... — Tinha visto rumores sobre alguns feitos de estudantes do Instituto Xavier, mas eles pareciam discretos demais. Discretos o suficiente para pensar que havia dedo de um telepata ali, para abafar o que quer que tenha acontecido. Ela balançou a cabeça, pois o ponto principal da questão não era essa. Quantas vezes teria que afirmar que estava bem para realmente ficar bem? E a quem ela estava tentando enganar? — Eu não sei. Você acha que fiz progresso? Njeri acredita que sim, mas existem coisas que não passam de borrões pra mim e tem coisas que faço e eu não sei o porquê.

A princesa franziu os cenhos, tocando o ombro dela. Parou-a por um momento, incerta do que fazer.

— Você não tem que resolver sua vida inteira de uma vez. — Ela deu de ombros, como se constatasse o óbvio. — Ninguém faz isso. Veja, eu sou uma pessoa que se desligou da própria religião para não lidar com a morte e luto. E odeio ver o meu irmão se exibir para Ororo Munroe porque sinto que ele não fez o suficiente pelo nosso pai.

Wanda deu um passo para trás, a boca entreaberta.

— O quê...? O quê disse?

— Que ninguém faz isso, e para você continuar caminhando. — Inclinou o rosto, com a sobrancelha arqueada. A última vez que Maximoff tinha ficado assustada daquele jeito, tinha atravessado o tempo e o espaço. Hoje, o corte na mão dela não passava de uma cicatriz, no entanto a respiração dela estava curta, afobada. E Shuri nem tinha sido tão grossa agora.— O quê você acha que eu disse?

— Eu preciso voltar para o meu quarto. — Afirmou, os olhos ávidos por uma direção certa, uma saída segura, mesmo que Steve e Sam estivesse logo a frente curtindo o pôr-do-sol. Em resposta, Shuri segurou seu braço com mais firmeza. — Falo com Xavier depois, eu só preciso ficar sozinha. Me solta, por favor. Por favor.

A Feiticeira Escarlate fechou as pálpebras, inundada pelo terror do que aquilo significava. Shuri não dissera nada, mas Wanda entendera tudo. Tudo. Noves ainda brincavam em seus ouvidos, perturbando-a, assim como memórias esquecidas fisgavam-na para lados opostos. Seu estômago parecia se dissolver dentro do corpo, e talvez realmente estivesse, já que seu cérebro estava líquido.

Silêncio.

Depois de alguns minutos imaginando que entrara em outra alucinação, Wanda teve coragem de abrir os olhos. Havia algo errado. Geralmente, suas ilusões fritavam seus sentidos, deixando-a incrivelmente sensível e ao mesmo tempo inerte, entretanto o silêncio era claro, da melhor forma que a ausência de som poderia ser iluminada.

Por quê pensava tantas coisas sem sentido?

Estava parada, a pressão dos dedos de Shuri mais leves sobre seus braços e a face da princesa completamente imóvel. Wanda levantou o olhar e encarou o resto do grupo, as folhagens do jardim e os funcionários do palácio. Só o vento se movimentava, até que o som da cadeira de rodas revelou professor Xavier aproximando-se.

— É difícil enganar a mente de um wakandano, querida. — Ele disse, agora a sua frente. —E agora com sua ajuda pregamos uma peça em pelo menos quinze. Mais Steve Rogers e Samuel Winson. Mas, algo me diz que você já fez isso antes.

O tempo ainda escorria, isso Wanda podia notar. As pessoas permaneceram petrificadas feito estátuas vivas, e os dois eram apenas observadores.

— O que fez?

— Só nos dei tempo. —Ele tinha o rosto sereno. — Apesar de ter feito um ótimo trabalho em me bloquear antes de sairmos, você se distraiu.

 Se tivesse o bom humor de seu gêmeo, ela poderia rir de sua desgraça. A sensação inquietante ainda lhe causava náuseas por debaixo da pele, por sempre ficar tão na borda dos sentimentos dos outros e não raramente saltar da beira daquele estranho precipício. Ainda assim, desconfortável e próxima de outra crise, ela se forçou a responder:

— Você está sendo gentil.

— É, — A afirmativa não foi uma resposta que ela esperava— Estou.

— Então... — Andou dois passos para o lado, cruzou os braços. Sua postura era atentamente acompanhada pelo professor Xavier, que parecia poder enxergar seu interior sem precisar de sua telepatia. Wanda parou, de súbito recordando-se de que Sam havia dito algo semelhante, mas sobre ela. Viu-se despida de máscaras e manipulações, fossem mentais ou gestuais. Não haveria um espetáculo de teatro na frente de um telepata. — Você sabe.

 Ele anuiu, sacudindo a cabeça de maneira breve. Ela se referia à tudo. Tudo. De uma forma que somente quem pudesse ler sua mente e seu coração poderia entender.

— Em parte. — Fez uma pausa educada, pensativo. — Nunca encontrou outro telepata antes?

— Faz muito tempo. — Deu de ombros, desviando o rosto. — E agora ela está enterrada numa vala comum, como todos os outros.

 Xavier franziu os cenhos, suas rugas e vincos no rosto demonstrando dor e entendimento. Havia visto o que ela tinha se lembrado.

— Sua amiga, Emilija. Na HYDRA.

Ela continuou a encarar o horizonte, fazendo força para que suas emoções não rompessem de dentro de si e começasse a chorar. Sentiu os últimos raios de sol beijarem sua face, fechou as pálpebras. Uma lágrima escapou. Nunca falava dela. Nunca falava com ninguém sobre o tempo da miséria e sobre os fantasmas daqueles que conheceu. Algumas noites, não passava de uma lembrança indistinta, uma história tola de terror. Algumas noites, a maioria delas, Wanda permanecia acordada.

Quem tinha uma história semelhante era Natasha, ela e o resto das bailarinas, e assim como a órfã de Sokovia, a russa também se recusava a falar do que perdera e de Yelena.

 — Foi estranho no início , saber onde ela começava e eu terminava, onde estava Pietro no meio de tudo aquilo. E então, um dia o outro lado ficou mudo.

Voltou-se á ele, que abriu a boca antes que palavras saíssem por ela. Então disse, como quem repetia uma frase há tanto esquecida:

— Há mais em você do que imagina. Não só dor e raiva. Morte. Há coisas boas também, eu senti. E quando acessar tudo isso, vai ter um poder que ninguém imagina, nem mesmo eu.

Uma memória atravessou seus olhos escuros, uma memória antiga e que ele guardava com carinho. Wanda inclinou o rosto, seu interior caótico atiçado pela curiosidade, e ela logo se flagrou com íris rubras. Era o lado de fora de uma antiga e elegante mansão, com ares da Inglaterra em pleno solo americano. Xavier era jovem e a sua frente estava um homem, um amigo. Ela fez força para ver sua face e supor quem era na recordação embaçada, na qual ele se referia com toda a sinceridade de seu coração. A postura do homem era altiva, com quê de familiaridade. Quis ir mais fundo, mas logo sentiu ser afastada dali.

— Oh, vejo que está me lendo também. Isso é saudável. —Wanda retornou ao presente, embaraçada.

— Desculpe.

— Não precisa se desculpar. A audição não é um sentido voluntário, não é mesmo? E nos dois sabemos como é ouvir demais. Felizmente podemos trocar de estação no rádio, se é que vocês ainda ouvem rádio hoje em dia. Traduzindo, podemos nos focar em algo diferente e que valha a pena.

 — Eu... Não sei como. Estou piorando.

— Não, Wanda, você não está piorando. Só ainda não sabe muito bem onde você termina e onde as outras pessoas começam. Há muita coisa acontecendo e é como tivesse pupilas dilatadas em um mundo muito claro. Seu poder é um músculo e você deve treiná-lo. Então peço que confie em mim. Foque na minha voz. Isso.

Ela fechou as pálpebras, se achando ridícula. Quantas vezes já tinha tentado sair de uma crise apenas fechando os olhos, apenas respirando e contando dúzias e dúzias de números ou recordando-se de Pietro? Ela resistiu, mas logo sentiu um toque psíquico aliviar sua mente.

 — Você ainda não vai conseguir esvaziar a cabeça e isso é perfeitamente normal. Continue ouvindo minha voz, Wanda, e peço que se lembre de uma memória feliz, a primeira que lhe vier à mente. Então, em momentos em que for arrastada muito fundo para outro lugar, quero que se agarre a ela. Chegará um ponto que não será arrastada por força alguma senão a de sua vontade.

Ela obedeceu e imagens coloriram sua mente, com algo simples.

A sensação morna do toque, de um corpo maior que o seu lhe abraçando forte, tão forte que pensou que iria jamais soltar. Azul, prata. Humor sarcástico, amor incandescente. Pietro.

 — É uma memória muito bonita.

— Sim... — respondeu ela, abraçando o próprio corpo. — Mas não é a memória inteira. Foi a primeira coisa que pensei agora, mas o antes... E o depois são horríveis. Tudo de bom que tem em mim foi seguido de morte. E eu não consigo...

Xavier desafogou mais uma vez a confusão dela, desta vez sentindo certa dificuldade. Sem que ela revivesse aquele momento de novo, ele acompanhou o que precedia sua memória pura do abraço:

Wanda tinha o rosto pálido e olheiras roxas, emoldurando escleras vermelhas de tanto chorar e íris cor de sangue, os quais observavam a porta de sua prisão. Homens passaram em frente, trazendo o corpo frágil de Emilija, coberta por um vestido sujo que mal lhe dava dignidade ou a poupava do frio. A mão frágil dela pendeu da maca enquanto agentes a levavam para fora, indiferente a vida que se fora. Indiferentes a qualquer tipo de sofrimento ou luto. Ela sabia, pelo o que tinha ouvido e visto através dos olhos grandes de Emilija, que estavam pegando aqueles que apresentaram respostas subjetivas aos experimentos, tais quais telecinese, telepatia, manipulação psíquica, energia psiônica. Eram poucos e agora seriam ainda menos. E ela sabia que era a próxima, ali sentada no chão. Esperando. Portanto, ela o avisara. Despedira-se mentalmente, como se pudesse beijar seu coração. Por esta mesma razão, ela o ouvia gritar e implorar na cela ao lado para que não a levassem embora, para que não a matassem.

Este foi o erro de Wanda.

Porquê não havia como Pietro saber o que eles planejavam, e se ele sabia, alguém tinha contado. Sua irmã. E se o gêmeo tinha tal resposta violenta para o que faziam com ela, o que ela, telepata, poderia fazer se o pegassem? Seria uma resposta proporcional à dele ou quieta, tal qual seus lábios arroxeados?

Eles abriram a porta de cela de Pietro. Dois pegaram seus braços, outro lhe aplicou altas voltagens para atordoá-lo. Arrastaram-no, e Wanda ouvia. Aplicaram injeções nele e Wanda sentia. E seus olhos se arregalaram, úmidos. E sua boca se abriu, em fúria.

Ela só conseguia pensar em como queria que as coisas fossem diferentes, em como queria rasgar e remendar o tecido que compunha o espaço e tempo. Picotando-o, picotando-o, picotando-o... Alterar a realidade em que vivia.

 As paredes cederam, metal desintegrou-se. A cela já não mais existia, mas sua prisioneira estava ali, parada, assistindo tudo mais deixar de ser enquanto a cor escarlate a banhava. Os homens que seguravam Pietro foram reduzidos a menos do que pó, menos do que almas saindo da carne. Ele caiu desorientado, depois levantou-se. Correu até Wanda, sempre querendo ser mais rápido e mais rápido, para fugir com ela para onde fossem felizes, para onde fosse seguro. E os dois se abraçaram forte. Sem palavras, sem metáforas, tão desnecessárias para o laço que os unia. Ela chorou até que não enxergasse mais nada, simplesmente sentindo alívio por ele estar ali. Por sempre estar ali, enquanto tudo vinha ás ruínas.

Xavier analisou com cuidado. Havia força e vulnerabilidade nela semelhantes a sua aprendiz Jean, que mais parecia uma versão sua caso a vida tivesse sido amena. Portanto, ele sabia que até ela alcançar plenitude, precisaria de ajuda e não só dele.

Enquanto Wanda estava preocupada em não ser patética na frente do telepata, Xavier aproximou sua cadeira de rodas e encostou o dedo indicador e o do meio nas próprias têmporas. Havia visto o que ela lembrou e, de fato, era terrível tanto pela carga emocional quanto pelo poder que irrompera dela naquele instante. Assustador. Entretanto, Xavier fisgou o momento do abraço de volta á superfície, deixando a sensação do toque nítida e a aura de Pietro mais colorida.

 — Eu sei. — Realçou o que era bom, nublando o que lhe trazia dor. Era uma medida paliativa, mas era o que a sustentaria agora. Aos poucos, ele viu um peso deixar o corpo dela e seus olhos brilharem em paz.

O mundo voltou ao momento presente e todos saíram de sua postura petrificada, retornando às conversas interrompidas e à caminhada. T'Challa mirou para trás por sobre os ombros, compartilhando um olhar com sua irmã, igualmente confusa. Ela estava perto de Maximoff e Xavier, que trocavam palavras  e aos poucos voltavam a seguir o percurso na varanda, junto com o grupo. Mas antes Xavier estava com eles, logo na frente. E o Sol se foi no horizonte, sendo que está prestes a se pôr. A boca do príncipe se abriu, prestes a confrontar os dois sobre que tinha acontecido nos últimos cinco minutos, quando Ororo pousou a mão em seu braço.

— Mal espero pra ver o que nos preparou para jantar, Majestade. Sinto falta da comida típica do nosso continente. — O sorriso dela contava outra história, pedindo silenciosamente para que T’Challa os deixasse em paz por enquanto. O príncipe anuiu, pois sabia que teria a verdade logo em seguida. Outra parte de si estava satisfeita por caminhar com o braço dado à Ororo Munroe.

— Vamos, então. — Ele a conduziu para dentro do palácio. — Uma bela comida os aguarda.


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Notas finais do capítulo

Não se esqueçam de comentar ♥ To pedindo com jeito, vai? hahah
Um beijo e obrigada por fazerem parte dessa aventura.