Vazios escrita por Shalashaska


Capítulo 28
Devyat' - Parte Quatro


Notas iniciais do capítulo

Olá! Agradeço o acompanhamento, principalmente os comentários gentis da LadyStark, Switchblade e da Luna ♥ ♥ ♥ Vocês foram adoráveis! Espero que gostem desse aqui, que além de enorme, me diverti bastante escrevendo! Meu irmão me deu uma excelente ideia e o resultado vocês poderão ver ao final do capítulo...
Agora já não tenho algo pronto, embora o próximo capítulo já esteja em fase de desenvolvimento. Espero vê-los na semana que vem! ~~ e nos comentários, né ~~ hahah



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A viagem de Professor Charles e Ororo Munroe precisava ser rápida, pois os dois não podiam se afastar por muito tempo do Instituto Xavier e nem o grupo refugiado em Wakanda podia se manter parado enquanto hacks ainda aconteciam e vida de pessoas corria risco. Apesar da fachada de intercâmbio estudantil, eles precisavam agir.

O jantar foi agradável. Ororo e Sam concordavam em basicamente tudo relacionado a discos e álbuns dos anos oitenta, e talvez por esta razão T’Challa tenha acompanhado o semblante sisudo de sua irmã, soltando poucos comentários e focado mais em sua própria comida. Para a preocupação de Steve, Wanda e Charles participaram de uma conversa nada comum, pois parte era verbal e parte era mental, ambos rindo sobre o quanto Steve Rogers queria tirar o refrão de “Star Spangled Man” da cabeça, afinal, já fazia setenta anos que a canção estava ali.

Os dois, porém, deixaram a música onde estava.

Depois se direcionaram ao escritório destinado à eles para pesquisa.

Durante o trajeto, Wanda se flagrou mais leve. Havia algo na forma que professor Charles a fizera recordar do abraço do irmão que a fizera ficar alegre, como se a qualquer momento ele pudesse aparecer ao seu lado e pegar sua mão. Dentro dela, porém, existia também medo que a sensação a abandonasse e de novo fosse entregue à sua própria tormenta.

Agora, sentada num banco com apenas o telepata a sua frente, paciente, Wanda não tinha mais certeza da paz em seu coração. O restante do time estava separado daquele cômodo vazio e branco através um vidro blindado, tal qual cientistas esperam a reação de suas cobaias.
Não, era maldoso pensar assim. Wanda sabia disso, mas não podia evitar que o coração injetasse pânico nas veias ao lembrar-se de laboratórios, ao lembrar-se de coleiras. Não podia deixar de ser cética e sentir ira quando era posta no meio de quatro paredes para que pessoas a observassem.

— Wanda, eu estou aqui. — Disse ele, agora ponto a mão sobre a sua. — E nós só vamos dar uma olhada nessa lembrança que você viu. Pense nisso como uma simples conversa, como tivemos no jantar.

— Não podemos fazer isso outro dia? Amanhã cedo mesmo. Eu só... Eu só preciso me preparar para isso.

Ele suspirou, mas Wanda supôs que ele faria sua vontade. Seria leniente. Ele fechou os olhos e girou sua cadeira de rodas alguns graus para a direita, encarando o vidro. Antes que pudesse dizer algo, a voz de T’Challa soou pelo sistema de som.

— Eles fizeram uma longa viagem, senhorita Maximoff. E precisamos de respostas. Por favor, ao menos tente.

Houve um barulho estranho, uma batida no microfone talvez. Depois veio Sam:

— Você consegue, garota.

Ela se sentiu tola e derrotada. Soltou um suspiro, abaixou os ombros tensos. Passou os dedos nas têmporas, tentando se concentrar no que tinha pensado para se conectar à mente de Bucky Barnes, ou melhor, no que tinha sentido.

E não eram coisas boas.

Pensara em como era inútil. Como sempre, sem exceção, conduzira às ruinas tudo o que lhe era bom. Sua vontade de mudar o mundo para melhor não passava de um desejo de vingança coberto por vaidade e tolice, e não importava o quanto ela queria reparar o mal que havia feito, não importava quanto tentasse... Encontrava a morte.

Wanda optou por ignorar o quanto seu coração estava pesado, conduzindo Xavier para a memória que não era sua. Passou rápido pelo início, querendo poupar a dignidade de James pela indiscrição, mas ele gritava alto demais. Foi doloroso assisti-lo novamente tomar choques, ver seu rosto inexpressivo e a boa entreaberta. Algo disparou em Wanda, algo escarlate.
De novo podia sentir o corte feito pela navalha em sua mão, enquanto a visão de si corria confusa pelo laboratório da HYDRA, assustada pela cena de tortura e o rosto arrogante de Alexander Pierce.

Os gritos e os sons eram distantes e talvez sua mente fizesse isso para poupá-la. Por mais que quisesse lembrar aquela canção polonesa e a razão de ter se esquecido de tanto, Wanda refletia o quanto seria bom continuar revirando lembranças enterradas. E nisso, os devaneios a levaram para lugares distantes e confusos.

A montanha envolta em névoa, dos seus sonhos. A canção estranha e a lareira. Noves.
Noves?

Wanda, pode me ouvir?

Ela mostrou a rua que tinha visto através dos olhos tempestuosos do Soldado Invernal. Ao mesmo tempo em que sentia sua própria cabeça dissolver, precisava mostrar a memória à Xavier. Descreve-la não seria o suficiente. Precisava também mostrar que o grupo poderia contar com ela no que pudesse ser útil, já que não era valiosa em combate ou fundamental em estratégia.

Era dispensável.

Eu a estou perdendo.

O cenário cheio de luz emoldurado através de uma mira. A sensação gelada da arma nos braços, junto com a poeira e o cheiro de livros nos pulmões. A comitiva do presidente Kennedy vinha, já podia ver o traje rosa de sua esposa, Jackie.

Então veio o som dos disparos e um grito. O Soldado Invernal olhou de esguelha para a figura alta que tinha gritado “não” e que estranhamente tinha os braços estendidos, como se as mãos pudessem puxar as balas de volta para o cano da arma. Foi neste instante que a memória desacelerou e Wanda pode enxergar com mais detalhes o rosto do homem, o mesmo que falara coisas tão estranhas em fitas.

Encontrei.

Estrutura óssea forte no rosto, com queixo quadrado e maçãs do rosto altas. Seu semblante era sério, sua expressão de choque e concentração. Seus olhos claros estavam acesos e focados nos movimentos de suas mãos, nos projéteis que estavam prestes a encontrar o crânio do presidente americano. Assim como havia se lembrado, gotas de suor desciam suas têmporas, mas não rápidas o suficiente para chegar ao queixo.

Novamente a sensação de familiaridade floresceu dentro de Wanda. O gesto de seus dedos, a ira em sua aura... Quem ele era?

Fragmentos da música polonesa macularam a memória de sua nitidez original, assim como o sussurro do número “nove” foi mais alto do que o som da bala. A Feiticeira Escarlate continuou encarando o estranho, sentindo como se em algum momento tivesse o conhecido.

Nós precisamos trazê-la de volta... Wanda.

Seu foco magnético nas balas o distraiu por uma fração de tempo longa o bastante para que o punho do Soldado Invernal o atingisse. Wanda sentiu o impacto como se seu próprio braço fosse de metal e atingisse a carne de seu oponente. Por fim, ela e Xavier voltaram ao tempo presente e á iluminação indiferente das lâmpadas frias.

— Então... — Wanda abriu os olhos devagar, depois piscou. Franziu os cenhos ao ver que Charles Xavier estava lívido, mais próximo dela. — Você acha que podemos descobrir quem é esse homem? E por que, hum, esses hackers parecem procura-lo?

Ele não respondeu. Foi difícil conduzi-la de forma segura pela memória revivida e por vezes ele a perdeu. Havia algo selvagem que o repelia, algo tão vivo e tão vermelho quanto os olhos dela ao exalar poder. Em Jean Grey tratava-se de uma força poderosa e que ele suspeitava ser uma divindade, mas em Wanda Maximoff... Parecia ser justamente o contrário.

E, apesar de todas essas considerações, não foi isso que o deixou sem ar. Xavier primeiro recostou-se a cadeira, depois virou seu torso e olhou o vidro espelhado, sabendo que encarava sua aluna, Tempestade.

— Erik. — Disse, a voz um tanto baixa. — Era Erik. Ororo, ele... —Retomou a fala, desta vez mais alto. — Era Magneto.

O desfecho daquela experiência foi estranho para Wanda Maximoff. Cada integrante do grupo parecia perturbado e confuso, e mesmo que não entendesse completamente o que estava acontecendo, ela foi tomada por receio de ir mais fundo e ler os pensamentos que transitavam na cabeça de todos.

Estavam reunidos na sala; Xavier com um copo de água na mão e Ororo ao seu lado, agachada com um dos joelhos no chão e afagando suas costas. Os rostos de ambos carregavam um tom grave. O brilho pacífico da aura dele estava eclipsado por algo que Wanda ainda não entendia bem, mas ao menos havia um nome, aliás, dois:

Magneto. Erik.

Ela sentiu olhares intrigados sobre si e aquilo a feriu. Precisava-se de muito para que Charles Xavier se abalasse e bastaram poucos minutos dentro de sua cabeça para que sua serenidade inteira se esvaísse de súbito. Engoliu seco, esperou.

— Preciso pensar com calma sobre isso. — Ele levantou a face, erguendo um pouco o queixo para os que estavam de pé. — Ainda não sou capaz de compreender bem, pois... Eu o conhecia.

Wanda sentiu o peso daquela frase, e também sentiu que ardeu mais em Steve.

— Nós nos conhecemos em 1961, no evento da Crise dos Mísseis e ocasião que me fez paraplégico. Era uma amizade improvável e nós discordávamos em vários assuntos. O encontrei poucas vezes depois... Até que em 1963, deixei de ter notícias. Veja, é difícil esconder coisas para um telepata, mas do pouco que descobri, ele matou JFK. Foi estranho que tivesse sido morto pelo governo da época, então eu esperei. E esperei. Depois de tantos anos, achei que em algum ponto outro mutante tivesse o pegado. Agora, sei que as coisas foram diferentes...

Seu sorriso era educado e bondoso, mas não seguro. Infelizmente, ele a bloqueou antes mesmo que o impulso de Wanda fosse mais forte para saber o que o telepata escondia.

— Mas, — Sam interviu, quebrando o silencio que caíra sobre o grupo. — Onde ele estava durante esses anos todos?

— Bom, a memória que Wanda me mostrou indica apenas que ele não matou JFK e depois foi abatido pelo Soldado Invernal. Nada comprova que ele realmente está vivo, de alguma forma. E se está, também tem tanta idade quanto eu.

Aquilo deixava Xavier triste, era visível em seus olhos.

— Ainda assim, — Ororo falou, levantando-se do lado de Xavier. T’Challa, silente até então, lançou lhe um olhar direto. — Não é coincidência. Hackers aparentemente indetectáveis com dados sobre 1963. Última aparição conhecida de Erik, 1963.

— Eles não estão fazendo uma mera pesquisa. Essas pessoas são profissionais, tem um objetivo. O Pentágono sofreu outras três tentativas de hacks. É justamente isso, Sam. — Steve cruzou os braços. — Esses hackers também querem saber onde Magneto está.

— E nós vamos descobrir primeiro. Seja numa lápide ou em algum outro lugar.

Por mais que todos pensassem como Shuri, sua frase nada amigável dela deixou o clima pesado. T’Challa registrou dados manualmente em sua joia kimoyo, os olhos baixos e avisando silenciosamente à sua irmã para tomar cuidado coma língua, enquanto conversava com Ororo.

Wanda pôs a mão sobre o coração, vendo que havia muito que se pensar. Por um lado não queria ter visto aquela memória, por ter sido difícil e dolorosa e não só para ela. Por outro, havia um quê de orgulho em seu peito, por finalmente ter trazido alguma informação relevante ao seu grupo.

No entanto, ao ver o semblante de Charles, sua parte orgulhosa calava-se. Não valia a pena. Aproximou-se da cadeira de rodas e então, com a voz miúda e arrependida, perguntou a ele:

— Poderia... Poderia James ter sido a última pessoa que o viu?

— Eu não sei, querida. Talvez. Mas não precisa pensar nisso agora. Amanhã tudo vai parecer mais claro.

Ele segurou sua mão por um breve momento e ela soube que Xavier tinha muito mais o que falar. Entretanto, como um bom professor, aguardava para Wanda estivesse pronta para ouvir.

Assim como irmão, ela não era paciente.

A sala foi esvaziada em seguida. T’Challa saiu primeiro, acompanhando seus novos convidados até seus dormitórios. Parecia entretido com o que pesquisava na pulseira azul no braço esquerdo, pouco atento no que Ororo e o professor conversavam.

Eles seguiam a direção oposta do corredor em que o grupo de Wanda iria, em outra ala do palácio. Shuri estava logo atrás de si, trocando palavras técnicas sobre o que tinha ocorrido no laboratório com Steve, sendo parcialmente ironizada por Sam. De qualquer forma, nada daquilo a interessava, pois mais adiante Charles Xavier estava distraído.

E a sua conversa mental estava aberta e de fácil acesso. Ela aguçou seus sentidos escarlates, sabendo que não deveria invadir tal conversa privada, mas também sem resistir ao impulso.

— Eu quase a perdi, Ororo. Havia algo mais do que telepatia. Ela é uma Nexus.

— Tem certeza? Parece... Parece pouco provável e é uma afirmação prematura, não acha?

— Eu não sei. Pensei que só encontraria Jean em minha vida inteira, mas...

Ela encarou surpresa o longo corredor. Dali, Tempestade virou seu torso enquanto empurrava a cadeira de rodas, apenas acenando sem saber que Wanda escutara.

** ** **

 Era mais uma noite daquelas em que ela não conseguia dormir, mas desta vez não eram as lembranças que deixavam seus olhos despertos: era a falta delas.

O que é uma Nexus? Ela se perguntava enquanto encarava o teto, sem bem focar na música que tocava baixo em seus fones de ouvido. Tinha levantado a possibilidade de ser uma mutante no dia em que ela e Shuri conversaram na Biblioteca, mas até então não aceitara a oferta de fazer exames e também não recordava-se de seus pais terem poderes. Este último fato fazia sentido, na verdade. Se já eram perseguidos por serem romani, caso mostrassem poderes legítimos já teriam sido expulsos antes mesmo de mísseis atingirem sua casa.

Não se lembrava da canção, não se lembrava da mais simples menção a algo fantástico e nada natural de sua família. Mas os noves insistiam perturbar seus ouvidos.

Ela suspirou, ainda atordoada pelo movimento do dia e virou de lado na cama. Por mais que agora soubesse o nome do homem que cantara nas fitas e pudesse ter visto seu rosto, novamente sobraram mais perguntas do que respostas.

Erik. Magneto.

Por que Xavier ficara tão transtornado? Wanda não conseguia entender. Não tinha sido, nem de longe, tão intenso quanto da primeira vez. Talvez fosse porque ele era amigo desse Erik.

Deitada na cama, ela ergueu a pulseira azul para si e tocou em uma das miçangas azuis, projetando um holograma sensível ao toque. Shuri a ensinou como usar sua joia kimoyo, por mais que não estivesse sendo tão útil nesse momento. Só conseguira resultados de marcas de processadores de computador e celulares com o nome “Nexus”, e fora isso um hotel. A definição em latim dava a dica que se remetia à “conexão” e isso não explicava nada.

Pesquisar por “Erik” e “Magneto” também lhe trouxera poucos frutos. Sabia que iria repetir a pesquisa nos dias seguintes com Steve e Sam, mas ela não conseguia esperar. Encontrara notícia ou outra, depois de muito avançar em inúmeras páginas, sobre justamente JFK. Decidiu acessar remotamente os dados que eram da SHIELD/HYDRA e que já tinham sido descriptografados pelos computares potentes da Sala de Inteligência.

E então as coisas começaram a ficar interessantes.

Relatos sobre mutantes. Dúzias deles, em várias regiões do mundo. Parte dos dados tabelados como puramente da SHIELD registravam brevemente missões que descobriam tais pessoas extraordinárias, mas elas sempre acabavam foragidas ou mortas quase como encontros imaginados em contos de fadas. Não existiam recrutas para preencher o plano voluntário de pesquisa e treinamento.
No entanto, a outra parte dos dados mostrava uma realidade bem diferente, da qual Wanda conhecia bem. Sabiam quem eram, quais poderes tinham e onde estavam. Existiam sim, centros de experiências e treinamento, embora não tão voluntários assim. Criavam problemas para oferecer soluções.

Wanda engoliu um engasgo ao ser pega de surpresa pelas fotos de autópsias de Angel Salvatore, uma jovem com asas de libélulas, e depois de outros órgãos sendo examinados. O estômago dela deu um giro completo dentro do corpo, enquanto ela se apressava em ver outros tópicos e passando rápido demais pelos nomes para que não pudesse grava-los.

Relatórios da HYDRA indicavam dificuldades. Ataques sofridos por outros mutantes, fugas. Resistência.

Mutante e com orgulho, dizia um panfleto amassado.

 

Mas a HYDRA era maior do que qualquer slogan criado pelos mutantes da época, pichados em lugares improváveis. O que sobrara de arquivos mostrava apenas que aqueles citados foram enumerados, caçados e depois desmembrados. Os agentes da HYDRA agiam silenciosamente e executavam seus planos com precisão.

Fechou as páginas e desligou a pulseira. Seus olhos doíam com essa única fonte de luz no escuro, além de algo dentro de si ter se ferido ao ler o número estimado de mortos. As informações eram confusas e talvez manipuladas. Telepatas e grandes corporações não teriam dificuldades em dobrar verdades.

Dentro de tantas dúvidas, algumas coisas eram certas:

Ela precisaria ouvir mais de Xavier. Mais do que ele acreditou que ela seria capaz de ouvir e sondaria a mente dele caso necessário.
E se a HYDRA mais uma vez fosse a responsável por tudo aquilo, Wanda teria que checar uma fonte assustadoramente sincera: James Barnes.

Wanda sentou com as pernas cruzadas na sua cama. Usar seus poderes era algo natural ao seu corpo, mas que lhe trazia um frio no estômago por todas as experiências passadas. Ela hesitou, os olhos ainda verdes. Os eventos recentes trouxeram resultados positivos ao vislumbrar dentro da cabeça dos outros, mas isso não fazia menos questionável a sua decisão. Então se levantou de repente, acendeu um incenso e deixou o quarto à meia luz.

Voltou a sentar-se com as pernas cruzadas.

Palavras de Clint a ancoraram na Terra, por mais que seu interior rubro quisesse levá-la para longe. “Está focando mais no alvo do que em si.” Ele disse, pois mesmo com o alvo na mira, seus dedos faziam com que a flecha desviasse, ou voasse muito fraca ou muito forte. Ela manteve-se ciente durante todo processo, seus olhos abertos e vivos, transbordando vermelho. A postura estava ereta e suas mãos repousadas com delicadeza sobre os joelhos, bem como sua respiração acompanhava um ritmo suave e profundo. Os fones ainda estavam em seus ouvidos, tocando uma longa música orquestrada, da qual ela programou terminar no mesmo instante em que terminava sua sessão...

Sessão de quê? Perguntou-se. Como ela poderia chamar aquilo que os outros diziam ser uma anomalia? Não era uma meditação. Não era exatamente telepatia. Wanda gostaria de usar a palavra “magia” para se sentir etérea, não sombria.

No fundo, estava seguindo o conselho de Charles Xavier, pois ele afirmara que seu poder era um músculo e Wanda prometera para Clint Barton que treinaria duro.

Ela inspirou ainda mais fundo.

Sentiu vibrações diferentes vindo de todas as direções. Era possível detectar o ressoar suave de uma ideia fixa no andar de cima, de vislumbres de devaneios no cômodo ao lado. Tudo a instigava a ir mais fundo, sugando-a para dentro de mentes distintas simultaneamente, e parte de si queria ir. Desejava saber de tudo, virar uma criatura onisciente daquilo que todos lembravam, sentiam, imaginavam.  Desejava compor tudo e ao mesmo tempo desfazer-se de sua individualidade.

Soube se afastar dessa ilusão tola e foi mais abaixo, para o laboratório criogênico. Lá era silencioso e ameno, pois existia somente uma consciência ali, quase como se sonhasse durante a madrugada. Wanda não conteve o arrepio na coluna. À medida que se aproximava dele, as vibrações desritmadas aumentavam até a beira do caos. Seus sonhos não eram doces, ela sabia, e estava acostumada com seu próprio amargor e a ser azeda.

Dentro de seu quarto em Wakanda, ela franziu os cenhos e entreabriu a boca. Suas mãos traçavam gestos delicados no ar.

 O número nove foi mais alto do que a música, e neste instante a Feiticeira Escarlate estava dentro. E ela viu:

Tentáculos vermelhos e caveiras. O símbolo da HYDRA agitando-se como um verme dentro de sua cabeça, enquanto nove cabeças erguiam-se para observá-la. Para observá-lo.

Wanda encontrou dificuldade em separar seu eu emocional com o do corpo em que agora habitava, pois as memórias exumadas por seus dedos eram podres e o cheiro delas acre. A experiência era habitar uma casca e vê-la mover-se sem sua vontade... E talvez fosse assim para Bucky quando escutava as palavras entoadas feito um cântico e tornava-se o Soldado Invernal.

Wanda, imaterial e tão estranhamente presente, foi arrastada por cacos de memórias diferentes, em tons distintos e completamente opostos. Havia um quê de doçura e de cor, para em seguida não existir nada. Assim como concluíra há dias, a mente dele era um mosaico caótico que a levava de fragmento a outro sem explicações.
Mas hoje ela estava desperta e mais forte. Desviou dessas marés e tateou no escuro e no vazio, procurando.

Noves. As nove cabeças da HYDRA. Algo que também pudesse contribuir com as informações que tinham.

O interior dele agitava-se, um corpo tentando resistir com o resto de vida que tinha. À sua frente, as silhuetas viscosas de tentáculos tomaram primeiro a forma de uma caveira, que depois se transfigurou em um rosto redondo e de meia idade, nítido aos seus olhos. Suas palavras alcançaram seus ouvidos como se sua voz fosse distante, carregado por sotaque e orgulho evidente.

O Soldado Invernal conhecia aquela face, principalmente aquela voz. E como ele sabia, Wanda também soube: Arnim Zola. Um de seus criadores.

— Eles estão aqui. — Disse ele, os lábios repuxados num sorriso estranho. Conversava animado em alemão, como se Bucky fosse programado para responder de forma espontânea. O rosto dele tinha rugas e Zola também andava com dificuldade em direção a sua maleta, em direção oposta a porta dupla que inicialmente encaravam.  — Talvez tenham vindo salvar o que resta de sua espécie. Eu entendo. É um instinto de um grupo ameaçado, mas não é racional. Afinal, nós estamos esperando. Mentes tão limitadas. Veja, até dão nomes comerciais uns aos outros. Magneto, Erik Lehnsherr. Mística. Sem falar nos outros que catalogamos...

O local era opaco no restante da lembrança, embora os sons de estrondos e tiros estalassem vivos nos tímpanos de James Barnes. A luz artificial mal dava cores aos utensílios de inox ou aos corpos estirados sobre macas, de modo que Wanda pôde ver somente de relance uma figura deitada de bruços, com asas de inseto esticadas e presas por hastes de metal. A visão foi interrompida, pois os olhos do Soldado Invernal voltaram-se à suas armas, enquanto ele as engatilhava. Estava indiferente. Suas mãos seguravam um fuzil, e em sua cintura e tronco havia o peso de munição e granadas.

 — É uma pena que eu não possa ver o rosto deles quando perceberem que o líder não está aqui. E será um desperdício ainda maior não poder assisti-lo em ação, Soldat. Estou indo e aguardo novas cobaias em breve. Tente mantê-los vivos, principalmente a tal “Sereia Azul”. — Suspirou, colocando um casaco cinza. — Tenho planos para ela.

Escoltado por outros agentes, ele deixou o ambiente pelos fundos com uma despedida dita em um tom casual, como se logo fossem se reencontrar:

—Auf Wiedersehen!

 O Soldado Invernal respirou fundo, por mais que não estivesse nervoso. Deu dois passos para trás, virou uma das macas vazias para montar uma barricada, enquanto minutos escorriam de seus dedos de metal.
A porta da frente se abriu em seguida, revelando a imagem pequena de Arnim Zola. Suas vestes eram diferentes e azuis, o lado de onde vinha era completamente o oposto com o que saíra. Era
outro Zola. Ele mal deu um sorriso afetado ou disse algo ao entrar no cômodo, pois logo veio o disparo abafado por um silenciador:

O segundo Arnim Zola foi atingido no ombro por um dardo tranquilizante. Seu rosto torceu-se em choque, um arquejo estranho escapou de sua garganta ao mesmo tempo em que seu corpo sofria um espasmo. Sua pele esticou e contraiu-se, bem com sua altura e suas feições. O Soldado atirou novamente, desta vez atingindo seu quadril e obrigando-o a cair de joelhos.
A pessoa que o encarou com raiva já não era mais um velho homem suíço, mas sim uma figura feminina de uma profunda cor azul e recoberta de escamas. Ela rosnou, e então gritou:

— Onde ele está?

Ele demorou um segundo a mais para interpretar o inglês, mas logo não faria diferença. Seu alvo entraria num sono de duração de quatro horas, devidamente neutralizada e pronta para extração. Não respondeu e ela gritou novamente, tirando os dardos da pele. Frente ao silêncio dele e ao som de tiros aos fundos, se viu derrotada.

— Azazel!

Uma pequena explosão se fez próximo ao seu alvo primário, e ele abaixou-se para o abrigo da maca. Pelo o que parecia, poderia ser apenas uma granada de efeito de luz ou gás, mas o impacto que inevitavelmente deveria tê-lo atingido não veio. Levantou-se rápido com a arma preparada, encarando somente uma leve fumaça vermelha e aspirando o cheiro de enxofre.

Ela permaneceu encarando os últimos segundos desta memória, cuja imagem tornava-se mais um borrão indistinto na mente de James Barnes. Não dizia muita coisa de maneira explícita, mas era importante saber que em algum momento o Soldado Invernal encontrou supostos mutantes e viu experimentos com eles. Poderia ter testemunhado outros acontecimentos importantes, como o paradeiro final daquele homem, Magneto.

Enquanto refletia sobre isso, Wanda se sentiu observada. Não em seu quarto, onde estava sentada na cama e com suas íris rubras e acesas, mas dentro de si, como se pudesse ter sido flagrada em sua própria cabeça. Um sopro gelado formou-se na altura de seu estômago e ela soube que era adrenalina.

Mesmo que sob aquela forma imaterial, ela observou seu arredor para saber o que a assistia. Lembrou-se dos olhos da HYDRA e tremeu, pensando que mais uma vez se perdera nas memórias de Bucky. Havia somente o vazio escuro, um abismo infinito.

E o abismo a encarou de volta.

— O que... ? — Ouviu um murmúrio rouco, quase sonolento. — O que é você?

Ela puxou o ar pela boca quando o viu. Seus olhos arregalaram-se em choque, enquanto ela era observada com um misto de desentendimento e apatia.

Wanda se viu com peso e tingida pela noite. As laterais de seus olhos enxergavam embaçadas, mas ela entendia que estava na calçada, próxima de um poste. O homem a sua frente estava com os braços cruzados, abraçando a si próprio para afastar o frio e a solidão do beco.

— O que... O que está fazendo aqui? — Ele voltou seu rosto cansado à Wanda, que em resposta tinha a boca aberta num engasgo mudo, sem palavras. Suas pernas tremiam. Era pior do que ser lida por Xavier, de quem ela podia esperar tal coisa.

Viu-se sem a proteção de seu corpo, de um rosto afável e gestos para esconder a verdade. Mesmo com tecido revestindo sua pele, estava menos do que nua pois a cor vermelha e pesada de seu interior estava exposta como um coração batendo e sangrando. Visceral, cheio de ira e cheio de compaixão.

Bucky franziu o cenho, depois sacudiu a cabeça levemente.

— Por favor... — Pediu, tão ferido. Wanda sentiu sua hesitação ceder lugar a uma súplica de desculpas, pois era claro o quanto ele estava marcado. Pensara que era mais um artifício da HYDRA para desintegrar mais e mais o que ele era e já deixava de ser, e que a garota estava ali para machuca-lo, para confundi-lo e obriga-lo a fazer coisas que não queria.

 Ele estava exausto e esperou. Esperou mais um pouco e nada aconteceu.

Ela deu dois passos para trás, indo para frente da rua. Então soube onde estavam:

Em casa. Brooklyn, na atmosfera amena dos anos quarenta.

Mães e filhos, casais, e cada individuo caminhavam com postura altiva e ritmo cadenciado, fuzis na mão e olhos vidrados. Wanda apertou as pálpebras, o coração quase escapando pela boca. Tentou enxergar melhor:

Suásticas. Nas faixas vermelhas nos braços de homens fardados, em bandeiras em frente de casas. As pessoas que ali andavam viravam o rosto e o corpo rápido demais, como se procurassem. Como se soubessem.
Fragmentos de uma guerra que não era sua assombraram seu espírito. Ela se viu ali, pequena, judia e romani.
Wanda encarou por tempo demais, a ponto de raspar o olhar com um menininho loiro, segurando a mão de um oficial, com uma expressão indiferente. Sua boca pequena demais, de repente grande demais. Ele entreabriu os lábios e arregalou seus olhos azuis, prestes a lhe denunciar.

— O que pensa que está fazendo? — Ele a puxou para o abrigo do beco, longe do olhar dos nazistas. As pernas dela tremiam enquanto Bucky a segurava.

O soldado regressara, mas o Brooklyn ali não era o seu lar. Era algo degenerado e vindo de seus piores pesadelos e Wanda testemunhara como a mente dele o iludia.

James Barnes jamais estaria exatamente em casa.

Ela encarou seu rosto abatido, desejosa em extrair toda a sua dor, pois sabia o que era não ter a quem voltar. Se ao menos ela fosse mais forte, se ao menos pudesse ter mais controle...
Interrompeu seu impulso estranho de abraça-lo e o encarou fundo.

— Eu te conheço. —  James disse, um brilho em seus olhos. — Eu...

 

 

A cor escarlate voltou ao centro de seus olhos, apagando-se por fim. Sua respiração estava ofegante, diferente da postura sóbria que tomara no começo de sua projeção mental. Piscou diversas vezes, cogitando ter imaginado todo o diálogo com Bucky porque ela era desequilibrada e doente, mas no fundo sabia que era verdade.

Ela estava no quarto e agora sozinha, com o verde assustado de seus olhos. Foi difícil dormir, mais do que antes. Sabia que no dia seguinte deveria contar a Steve e Sam que Arnim Zola estava envolvido com o mistério de Erik Lehnsherr e a caça a mutantes.

Ele era o nove que James sussurrava.

Mas não sabia se diria exatamente como obtivera tal informação.

Ou se mencionaria que James Barnes estava, de alguma forma, consciente.


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Notas finais do capítulo

♥ Se acharem algum erro gramatical ou de concordância, favor reportar à Shal! Falhas serão devidamente corrigidas.
E também me contem seus headcanons ♥ ♥ ♥ Essa fic é cheia delas huahuea



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