Vazios escrita por Shalashaska


Capítulo 13
XIII


Notas iniciais do capítulo

Perdão pela demora, mas este capítulo realmente custou a sair e exigiu muita pesquisa da minha parte. Vocês vão entender a razão por trás disso e gostaria que lessem também as notas finais ♥ AH, e viram a capa nova? Tá muito lindinha, cortesia da K Langdon ♥ Obrigada por lerem!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/697672/chapter/13

2 5 / 1 2 /2 0 1 6

O mundo cintilava vermelho.

Não como a organização em que Natasha fora treinada quando criança; Não como a estrela no braço metálico e perdido do Soldado Invernal; Não como o sangue das lutas, o caos que sentia e que batizara sua alcunha.

Não.

Estava vermelho como alguém de azul tanto gostava.

Wanda passou as pontas dos dedos pela saia carmesim e aveludada, na despedida do entardecer de tons quentes emoldurados pela imensa janela. Já era noite. A antessala dos dormitórios de Wanda, Sam e Stevie parecia maior do que realmente era, talvez por encontrar-se vazia, talvez por sua decoração minimalista e geométrica. Os tons neutros dos móveis, na pureza do branco e elegância do preto, bruxuleavam com as nuances acolhedoras de uma vela solitária num candelabro de nove braços na mesa de centro, de frente para a mesma janela que Wanda observara a noite chegar.

Ajeitou-se no estofado lentamente por causa dos hematomas na pele, embora  Njeri houvesse recomendado anestésicos e pastas cicatrizantes mais potentes que o remédio mais caro do Ocidente. A dor ainda estava lá, mas ao menos estava passando. Abraçou uma almofada com força.

Fazia tempo que não acendia o Menorah. Parou de fazer sentido antes mesmo de Pietro partir. Foi antes, bem antes, quando um míssil invadiu sua casa durante o Shabbat e o sobrenome “Stark” a assombrou por dois dias inteiros. Por uma vida inteira. Ás vezes, parecia que fazia mais tempo ainda. Wanda franziu a testa devido a memória que não estava lá.
Havia dito uma vez à seu irmão que algo faltava, só não sabia o quê ou quando aquilo partira. Era uma dor fantasma, uma sensação permanente de haviam peças que não se encaixavam e lembranças que não faziam sentido.

Wanda sorriu com a recordação da risada dele.

Em seus olhos azuis, porém, havia aquele sutil vislumbre de preocupação. Ela sabia o porquê. A possibilidade de suas sensações estranhas e memórias fragmentadas serem causadas pela HIDRA era algo real e muito provavelmente a razão absoluta.

Mas o importante é que ele ria. Ria e afirmava, enquanto punha seus braços ao redor de si:

“Estou aqui, então nada falta.”

 

Pietro morrera. Algo realmente faltava agora e tudo estava vermelho.

Embora... Uma nuance diferente de vermelho. Ao menos hoje.

Serena. Acolhedora. Distante do rugido caótico que sentia. Morna, não abrasiva. Como uma vela. Como aquela primeira vela. Pediu aos serventes wakandanos que lhe providenciassem um candelabro com nove braços, o Menorah. Acendeu o shamash, e com ele acendeu a primeira vela do Hanukka enquanto murmurava as três orações.

A data era para ser azul, azul. E a data era dele também.

Pietro amava a neve desta época do ano e ela ainda podia lembrar-se dos dois correndo no quintal, e  depois o forte resfriado que os acometia. Ele devorava as comidas fritas com entusiasmo e tinha um brilho lindo nos olhos quando Wanda começou a acender as velas da celebração junto à sua mãe.

Ela não sentia exatamente como a data pedia. Não era uma data para se estar sozinho, mas Wanda era a única no cômodo grande e luxuoso do palácio. Nenhuma mensagem ou sinal de Steve e Sam. Nada de Nat. E a ninguém entregara cartões de Natal que Clint prometera enviar. Não sentia-se leve e pura, triunfante após a escuridão. Era pequena e sozinha, tal qual aquela pequena luz que acendera... Entretanto, amanhã acenderia outra e no dia seguinte também.

Wanda deu um meio sorriso.

Haviam mais pessoas no restante do mundo, que assim como ela, acendiam seus Menoroth e desta forma Wanda podia sentir que ainda pertencia a algo. Mesmo que distante, mesmo que há anos não voltasse seu rosto para este lado de si.

O mundo, por oito dias, seria vermelho e cálido como Pietro amava. Como sempre deveria ser.

*****

— Ela está dormindo, Cap. – Wanda ouviu bem ao longe, incerta de que aquilo era um sonho ou não. – Deixe-a.

— Eu sei, eu sei, Sam. – A outra voz veio de perto, próxima ao seu rosto. As pálpebras dela tremeram, ainda pesadas pelo sono e pelo torpor. Franziu a testa, mas suas reações não eram notáveis aos dois. – Mas... Você viu o rosto dela? Ela estava bem quando saímos. Bem. – O coração dela deu um salto, deveras aliviado. Era Stevie. E Sam. Mas, antes que pudesse acordar totalmente, algo parecia errado. A voz de Stevie estava tensa, não contendo sua raiva. Não parecia azul. E ele nunca falava assim.– E eu não aceito chegar e ver hematomas nela. T’Challa vai ter que me responder certas coisas, senão...

Ela abriu os olhos. A sala estava mais escura, a luz da vela quase no fim. Droga, não devia ter dormido. Tinha que apagar a vela, não deixá-la consumir por inteira.  Steve estava perto do sofá, ajoelhado e encarando Sam, que permanecia parado próximo a porta.

— Vocês chegaram.

Sam soltou um bafejo. Sabia que aquilo aconteceria se Steve continuasse a reclamar alto, mas ao mesmo tempo não podia culpá-lo. Wanda tinha marcas roxas nos braços e o rosto inchado, sendo que na despedida parecia bem física e psicologicamente, ao menos dentro do possível. Ainda assim, contrariado e cansado, ergueu somente uma de suas sobrancelhas daquele seu jeito matreiro.

— E acha que perderíamos a chance de vestir Steve de Papai Noel? Olhe só a barba que esse cara está cultivando.

Os ombros do Capitão relaxaram com o som da risada dela, que feito magia, dissipou o clima tenso do ambiente e de si. Ele passou a mão de forma breve pelo queixo, sabendo que a barba estava longe de ser tão grande quanto o Falcão indicara, enquanto voltava seu rosto para Wanda. Ela, ainda com o sorriso aberto, disse baixo:

— Nat diria que está parecendo o velho de noventa anos que ele é.

— E Nat estaria certa. É uma pena que somos procurados por agentes secretos ao redor do mundo inteiro, senão eu mandaria uma foto pra ela pelo Snapchat. E para Sharon.

— Vocês dois se uniram, é?

— Eu te contei, Cap. – Sam tirou o casaco grosso que vestia, dirigindo-se ao painel na parede. Acendeu as luzes artificiais do cômodo, ajustando-as lentamente para que o ambiente permanecesse à meia-luz. Seria mais agradável aos olhos sonolentos de Wanda, e também seria melhor que Steve não visse de maneira mais nítida o inchaço no rosto dela.  – Coisas entre tio e sobrinha. Você fica fora disso.

Ainda com o corpo esticado no sofá, Wanda inclinou seu tronco para frente e para fora do estofado branco. Suas mãos alcançaram os ombros de Steve em um abraço frouxo, estranho. Ele teve medo que a pele dela estivesse mais dolorida do que imaginava e nem esperava tal ato, então demorou alguns segundos para retribuir o gesto.

Havia visto o Menorah na mesa de centro e sabia o que aquilo significava. Lutara há décadas para que pessoas pudessem ainda acendê-los e naquela noite Wanda o fizera.

Apertou-a mais contra o peito, de maneira gentil.

— Feliz Hanukka, Wanda.

— Feliz Natal, Stevie.

Desenlaçaram-se. O Capitão América levantou-se, também tirando a jaqueta grossa e escura, colocando-a em cima de uma das poltronas da sala. Pelas roupas que ambos vestiam, parecia que haviam voltado do frio da Itália há pouco. Aquilo a fez sorrir. Vieram direto para vê-la.

— Gostei do cachecol. Ficou bem em você.

Samuel deu um sorriso.

— É, o cachecol ficou bem comigo. Era o que ele precisava. – Pegou o tecido laranja e o dobrou, também tirando luvas. – E obrigado pelo “Feliz Natal, Sam”. Pensei que era o seu tio favorito.

— Não brigue comigo. – Ela, de maneira consciente, fez a expressão que o atingia. – Venha me dar um abraço também.

E ele foi. Deu abraço nela, lhe desejou feliz Hanukka. Perguntou se havia latkes, as panquecas fritas de batata costumeiras desse festival. Wanda não se sentira à vontade o suficiente para pedir mais coisas aos funcionários do palácio.

— Bom, você... Você quer? – Sam questionou com delicadeza. Não havia notado nenhuma restrição alimentar dela em todo os meses que conviveram, porém se ela hoje acendera um Menorah, também pudesse querer pratos típicos da celebração e comida kosher.

Não era o caso.

— Sim. E biscoitos de gengibre também.

— Agora sim estamos conversando. – Ele se aproximou, com uma pequena mochila nas mãos. Seu rosto era terno, bem como sua aura tranquila. Wanda encolheu o corpo, sentando-se direito para que o outro coubesse junto com ela no sofá, ao seu lado. Em poucos segundos ele já estava sossegado de maneira confortável, embora tivesse soltado uma exclamação dolorida. – E cartões de Natal malcriados de um cara rabugento e um presente misterioso de uma ruiva? Quer?

— Eu não... Pensava que viriam hoje. Me sinto um pouco culpada. – Comprimiu os lábios, deixando a boca meio torta. – Não tenho seus presentes agora.

— Nah, ninguém está de dando um presente porque quer algo em troca. Isso é Natal, não negócios. Aqui, pegue.

— Você não me entendeu! – Disse com um sorriso, aceitando o embrulho. – Não tenho seus presentes agora, mas depois vou buscá-los. Estava na lista de coisas que pedi a você.

— Eu não acredito que você me fez comprar meu próprio presente. Que golpe baixo. E não me diga que foram as ameixas, por favor.

— As ameixas realmente não eram pra você, Sam.

As mãos dela foram rápidas, fisgando o envelope e a embalagem preta. Primeiro rasgou o papel roxo e dali tirou o cartão de Clint;  uma foto de um labrador grande dentro de sua casa, talvez a sala, com uma mesa ao fundo com caixas de pizza em cima.

“Laura resgatou um cachorro. Acredito que seja um parente distante do Rogers. Como tem não tem o olho esquerdo, quis chamá-lo de Boss, mas as crianças insistem em Lucky. Estou tomando café e o Natal será aqui mesmo. Não pretendo voltar tão cedo, então não se matem nos próximos quinze dias.

Babacas.”

Em meio a um riso abafado, Wanda perguntou:

— Vocês viram a Natasha? Foi ela que entregou o cartão de Clint?

Steve, agora mais folgado e na poltrona oposta, soltou um suspiro.

— Nós sabíamos que talvez ela fosse, só não tinha dado certeza. Elas está em posição delicada. T’Challa contou para Ross que ela nos ajudara enquanto as coisas não eram claras e ninguém sabia quem era Zemo. Hoje, a atitude foi legitimada pelo próprio rei. Cada vez mais Natasha tem olhos sobre si. – Deu de ombros. – Não a vimos, de qualquer forma. Mas ela sabe ser dramática. Encontramos uma embalagem preta para cada um em nosso quarto.

— Isso me fez pensar a qualidade do esconderijo. – A voz de Sam foi séria. – Bom, sabe como é, não é mesmo? Se a Romanoff não consegue, então ninguém consegue. E ela conseguiu nos achar. É admirável, mas não uma surpresa.

— Um dia ela me disse que só agia como se soubesse de tudo. Ás vezes acho que isso é mentira.

Ela assentiu, logo tirando o laçarote vermelho da caixa preta. O som da fita desenlaçando-se e o seu tom reluzente de cetim a fez mergulhar numa breve memória de uma menina ruiva dançando balé, e depois treinando a mira com uma arma na mão. Wanda piscou os olhos para livrar-se da visão e forjou um sorriso, o qual em seguida tornou-se mais e mais verdadeiro.

Tinha ganhado um suéter vermelho.

— Ah, você também?

Steve fechou as pálpebras, ao passo que Sam gargalhava.

— Eu adoro o jeito que Nat pode ser uma espiã perigosa e ao mesmo tempo tricota. – Wanda resumiu, erguendo a peça na altura de seus olhos. Era alguns números maiores que o seu, para ficar folgado e confortável. Perfeito. Só não o vestiu porque ficaria quente demais.

— Steve ganhou um daqueles suéteres típicos e bregas de Natal, com o tema da bandeira. Eu quase ouvi a águia americana quando ele abriu a caixa.

— Sabe, eu gosto de verde também.

— Isso não está aberto a discussão. – Sam voltou-se à ela. – E você já viu meu cachecol. Elegante, huh? Ei, deixe me ver a foto do Barton. É alguma coisa com café? Esse cara ama café.

Entregou a foto à ele, com o sorriso mais largo ao imaginar a vida diária do Gavião Arqueiro. Café, pizza, cachorro. A fazenda e seus filhos. Xingamentos murmurados ao vento. Salvar o mundo. Parecia uma vida perfeita.

Então ela levantou o queixo, notando que a atenção de Steve estava sobre si. Tinha a expressão fechada e uma das mãos apoiando as têmporas, tal qual fizera no dia em que apresentaram o Tratado de Sokovia. Encarava mais uma vez o corte acima da sobrancelha esquerda de Wanda.

Antes que dissesse algo, qualquer coisa, a boca dela se adiantou em disparar perguntas sobre o comitê em Veneza. Não havia visto nenhuma notícia alarmante nos noticiários, o que por si já era um excelente sinal, mas não tinha certeza do que se passava por não falar wakandano.

— Os Mata-Capas... Foram legalizados?

— Não. Ainda não. Não houve um consenso, por mais que algumas nações sejam insistentes e... – Soltou a respiração, remexendo-se no assento. Seu foco voltou-se ao nada. O rosto de Sam também tornou-se tenso e ele já não mais sorria para a foto em suas mãos.

— Por favor, Wanda. Nós prometemos falar sobre isso com mais detalhes, mas agora não.

— Tudo...Tudo bem. Vocês devem estar cansados. Desculpe.

— Não, Wanda... – Sam balançou a cabeça. O tom dela havia mais uma vez demonstrado culpa e não era assim que ele queria se expressar. Assim como Steve, ele também não gostara de vê-la ferida e frágil, porém não tinha coragem de lhe dar notícias alarmantes justo hoje. – Não peça desculpas, é que...

— O Comitê foi uma farsa. Haviam outros Aprimorados lá, mandados sabe-se lá por quem ou por qual nação. Eles tinham uma bomba.

Wanda levou uma das mãos a boca. O instinto rubro que adormecera a tanto custo despertara como um raio, atravessando seu coração feito um relâmpago cortando as nuvens. Em meio as piscadelas nervosas, ela via no filtro vermelho de seus olhos imagens de Steve em desespero, lutando por sua vida e pela vida de quem mais estivesse ali. As memórias não estavam claras, talvez nem eles soubessem ao certo como seus algozes se pareciam. Steve ainda se defendia quando Sam estava no chão. O tempo escorria e a bomba ainda estava ativada.

— Não, Steve...

— Nenhum governante ou líder de Estado era o alvo. – O Capitão América continuou. – Stark, Rhodey, Visão. T’Challa. Planejaram matá-los, e a culpa pareceria nossa. Igual no dia em que mataram T’Chaka. E Stark... E Stark não estava lá apoiando os Mata-Capas. Então mudou de ideia quanto ao Tratado, mas... Estava do nosso lado. De alguma forma.

Ocorreu a Wanda que Sam não estava cansado, ou somente cansado. Sentia dor.

— Nenhum deles soube que vocês salvaram a vida deles.

— Não. Mas isso faz parte do trabalho agora. – Ele virou o torso, inclinando-se para o outro lado do sofá. Sim, claramente com dor.

— O mesmo modus operandi de Zemo, mas ele está na prisão. Vocês dois acham que ele teve contato com alguém?

Aquilo gelou o coração dela. Zemo, praticamente sozinho, foi capaz de perceber cada nuance dos conflitos já existentes no grupo inteiro dos Vingadores, e os fez ruir peça por peça e de dentro para fora, como uma trilha de dominós. Um pequeno toque e tudo seguira seu tortuoso curso. Se alguém agora seguira seus passos, o próximo era em escala internacional. Um atentado.

— Isso é só para nos confundir.

— Se os quatro morressem, os Mata-Capas seriam aprovados como uma medida de urgência. Todo país teria seu registro de Aprimorados e talvez o alistamento militar fosse até encorajado ou coagido.

— Podemos não falar sobre isso agora? – Sam foi mais firme, talvez até mais suplicante. Seus olhos estavam fechados. – Ninguém morreu. O esquadrão de elite do T’Challa veio bem a tempo. Estamos de volta. Só nos resta saber quem foi e o porquê e isso nos não descobriremos no Natal. Por favor.

Silêncio tomou conta do ambiente.

— Vou pedir comida. – Sam, ainda que contrariado, deixou passar. Claramente ele não queria debater sobre o ocorrido, mas seu colega ainda estava no clima de guerra. Sua aura azul era puro gelo, e o gelo não perdoa. Devolveu a foto para Wanda. – Volto logo.

A porta se fechando foi o último barulho a ressoar na antessala, um ruído incômodo para uma situação pior ainda. Stevie não era dado ao descontrole, muito menos nutria um ódio grande assim em suas palavras. Tentou captar um sinal de algo a mais em sua expressão resoluta, um vislumbre do que estava pensando.

Um sussurro escarlate respondeu por sua garganta de súbito seca, num suspirar quase mal contido por sua boca.  

— Wanda, o que aconteceu com seu rosto? – A voz dele foi mais macia, mais branda. Controlada.

Os olhos dela encontraram o do homem a sua frente, o soldado fora de seu tempo e sem uma guerra para lutar. As íris dele reluziram com o último movimento da primeira luz do Menorah.

O mundo tremeu um pouco, depois chacoalhou inteiro. Mais uma vez, ela viu Bucky caindo na imensidão da nevasca, momentos antes que seu amigo pudesse alcançar seus dedos. Desta vez, porém, ela viu através das pupilas de Stevie.

O frio da neve inflou seus pulmões com calafrios, seu estômago afundou em adrenalina.

Talvez Wanda tenha murmurado um “não”. Não teve certeza, pois o som dos trilhos e o grito de ambos era muito alto para que pudesse distinguir. Soube que sentira desespero em cada gota de seu sangue, assim como sentira quando Pietro se fora.

Trincou os dentes. Tinha que escapar da mente dele, desanuviar aquela lembrança que era tão vívida e tão letal. Envenenara a mente dele da última vez que a visitara, assombrando-o com a visão de uma vida que nunca teria, com o estresse pós-traumático de uma guerra que marcara gerações. Ironicamente, esta mesma guerra manchou seu país, seu povo, sua família. Piscou uma vez e viu Steve sentado a sua frente, tenso na poltrona branca. Piscou outra vez e ela viu uma memória de somente algumas horas atrás.

Havia uma bomba em algum lugar daquele prédio. Alguém atirava neles. Não sabia se era fantasia, a noite ou alucinação do medo, mas sombras pareciam tornar-se sólidas para lançar seu tentáculos e garras em ambos.

Tony.

Ele corria risco. A cada instante em que corriam, era um segundo a menos na vida de seus amigos. Se ao menos ainda tivesse o escudo de vibranium... Algo se partiu com um rangido metálico. Sam caiu, pois sua asa fora atingida. Steve viu a mesma cena de setenta e dois anos atrás:

Seu braço direito estendido ao nível máximo do corpo, praticamente lesionando os músculos. Seu amigo caindo.

Suas mãos vazias.

— Não o quê, Wanda?

— Não...Eu também não quero falar sobre isso. – Deu de ombros, esperando que ele não tivesse visto suas íris verdes tornarem-se escarlates ou o tremor de seus dedos. – Estou bem.

O ardor de seus olhos talvez fosse um castigo apropriado para seu interior caótico e insistente, batendo à porta de outras memórias e de outras cabeças. Quis chorar, cansada de tanto sofrimento. Agarrou o suéter de tricô contra o seu corpo, de repente sentindo também frio.

A neve daquela tarde de 1944 parecia invadir seus ossos, como se ela estivesse lá. Então a tremedeira em sua voz e sua garganta pioraram, quase naquele acesso de choro e lamentos, pois o Menorah estava aceso e ela sem seu irmão, pois Stevie estava rubro e alguém golpeara Sam, pois aquela guerra matara seus antepassados pelo simples motivo dele serem assim como ela era hoje:

Diferente. Talvez até peculiar.

Seus dedos inquietos eram um reflexo pequeno de sua mente tão agitada. Por fora, seu semblante permanecia melancólico e plácido, tal qual uma menina adorável e frágil com seu suéter. E ela não podia se odiar mais por isso.

— Stevie... – Testou a voz arranhada. Pediria algo que muitas vezes pedia à Pietro, quando o mundo era mais do que ela podia suportar: uma história. – Conte alguma memória sua. Algo... De Natal.

Ele riu, depois passou as mãos pelo rosto. Wanda sentia que ele queria tirar o cansaço de sua face e de seu corpo, e que queria sorrir de forma mais verdadeira à ela. Encarou um ponto distante, vendo seu próprio passado.

— O ano era 1932 e esta é uma das histórias mais embaraçosas da minha adolescência.  – Havia um sorriso mal contido ali, o azul mais uma vez jorrando de sua expressão. Parecia que tinha sido ontem. – Pense em um inverno estupidamente frio, mas que neva só depois das seis da tarde. Era perfeito para guerras de bolas de neve, mas você sabe... Eu tinha quatorze anos na época e uma saúde péssima. Minha mãe ficava louca da vida nessa época do ano, querendo me manter em casa a todo custo e, bem, Bucky tinha quinze e estava atrás de uma garota.

Dito isso, ele deu de ombros.

— Ela era nova no bairro, tinha se mudado há pouco... Não sabíamos ainda o nome dela, mas a chamávamos de Greta Garbo por causa do seu jeito distante e misterioso. Não pergunte. Bucky tinha certeza de que ela estava afim dele e a verdade é que menina não conhecia ninguém, mal tinha amigas. – Ele balançou a cabeça. – Naquela noite de Natal, Bucky me convenceu a sair de casa e atravessar quase que o bairro inteiro durante a neve para ver a tal da Greta Garbo. Ele a tinha visto de manhã no mercado e a mãe dela acabou o convidando para passar um pouco da ceia com eles, para fazer amigos e por incrível que pareça, também disse para que ele chamasse seu “amigo magrrrinho e bonitinho”.

— Está zombando do meu sotaque?

— Não, digo... Eles eram estrangeiros. Não me lembro se era poloneses ou algo assim. Sei que tinham uma loja de instrumentos musicais. E você tem um sotaque diferente, que alias já sumiu bastante.

Aquilo a entristeceu um pouco. Era estranho não conversar com alguém há tanto tempo em sua língua materna e ela não queria que seu sotaque desaparecesse.

— Certo, “magrrrinho”. E depois?

— O nome da menina era Myrthes Larson. Não sei como chegamos lá, mas pareceu a eternidade. E a cada instante que eu reclamava e dizia que iria morrer antes de encontrar a casa dela, Bucky encarava um embrulho na mão como se ele pudesse sumir só do vento bater. E então, quando afinal estávamos na porta e meu nariz doía de tão gelado, Bucky teve a brilhante ideia de tirar o que quer que tivesse nas mãos e pendurar acima da porta dos Larson.

Wanda abriu a boca.

— Ah, não. Não acredito. Era um visco?

Steve apenas assentiu, a boca comprimida e as sobrancelhas erguidas.

— Myrthes que abriu a porta, graças a Deus, e não outra pessoa. Vestia um vestido verde e impecável. Elas nos cumprimentou com cordialidade e sua timidez adorável, tinha uma bandeja de biscoitos nas mãos, e eu não sei até hoje o quê da visão inteira que fez Bucky babar. Os biscoitos ou Myrthes? Sendo franco, eu estava meio desorientado e sabia que minha mãe perceberia minha febre na manhã seguinte. Quase nem prestei atenção no que ela disse. Enfim, com o máximo de masculinidade que um garoto de quinze anos podia ter, Bucky apontou o visco acima dos dois.

— Ai.

— Myrthes deu um sorriso, daqueles em que qualquer um de quinze anos poderia pensar que ela realmente era Greta Garbo. E depois, – Ele deu uma pausa, as palavras difíceis para escaparem. – Ela me beijou.

A boca de Wanda formou um “O” perfeito. Alguns segundos se passaram antes que ela pudesse responder algo. Ela riu, parou e riu de novo. Pensou em parar, mas o rosto de Stevie jazia em seu sorriso meio incerto e envergonhado, um pouco corado até, e ela não podia fazer mais nada além de rir.

— Eu realmente acabei de ouvir a história do seu primeiro beijo?

— Sim.

— Eu não estava preparada para isso. Acho que nem você. – Encarou o chão, ainda com ar de riso e surpresa, coisa que o Capitão agradou-se em assistir. – Céus, e James? Coitado!

Steve recuou o rosto com a expressão franzida, como se a voz de Wanda fosse um arranhão desafinado numa lousa escura. Estranhou ter seu amigo chamado pelo primeiro nome e não por seu apelido. Então, em poucos segundos acostumou-se com a ideia.

— Ele me perdoou com o tempo, mas não a Greta.

“Magrrinho e bonitinho”. Não era só a mãe dela que gostava de você. O que aconteceu com ela depois?

— Os Larson se mudaram de novo. Nunca mais soube de nenhum deles. Nem dela, nem de seus dois irmãos. Espero que tenham se mudado para Greenpoint. Tinha uma comunidade polonesa lá.

Ambos não quiseram pensar se algo ruim havia acontecido a eles. Sim, estavam no Brooklyn antes da Segunda Guerra começar, mas eram poloneses e aquela era uma época terrível para ser desta e outras nacionalidades.

— Pobre Bucky.

— Natal era importante pra ele. Todas as luzes e canções, a neve... A Greta Garbo do bairro não iria sozinha quebrar o encanto desta data. Não quando ele amava as bengalas de açúcar. – Outra lembrança passou pela sua cabeça. – Wanda, você não tem noção de como ele era capaz de visitar todas as casas da vizinhança só por uma ou duas bengalas de açúcar. Era vergonhoso!

Wanda ficou a observar a voz dele voltando a ser macia e azul, e depois melancólica e grave. Ele encarava o nada, um ponto vazio muito longe de si no tempo e no espaço.  

— Não podíamos comprar muitos doces, então a ceia de Natal também era marcada pelas frutas da época. Peras, frutas secas, e Bucky também gostava muito de...

— Ameixas.

— Sim. De Ameixas.

Stevie inclinou o rosto, ainda taciturno, porém com certa curiosidade. Tentava se lembrar quando já havia dito este pequeno detalhe para ela, se é que tinha dito, ou se talvez Wanda tivesse deduzido pelo fato de Bucky ter sido localizado na Romênia comprando as ditas ameixas. Havia a possibilidade também de que ela sondasse levemente sua consciência agora, o suficiente para captar palavras que estava há poucos segundos de dizer.

Então ela falou:

— Eu... Eu deixei uma ameixa para ele. – Wanda brincou com o tecido do suéter. – No dia 21. Não comi todas que Sam trouxe para mim, e aquele dia começava o inverno, então... – Sorriu, sem graça. – É, eu sei que é ridículo. Não é como se ele pudesse comer agora.

— Ele está bem?

A garganta de Wanda ardeu com todas as palavras e emoções entaladas no esôfago.

Eu o vi. E ele me viu de volta. Vi Natasha. Eu também te vi.

Ainda não havia contado sobre seus pesadelos com a Viúva Negra e nem mencionara o fato de visitar Bucky vez ou outra na câmara de criogenia, já que se sentia sozinha e a companhia de alguém tão silencioso quanto ela vinha à calhar.

Não contara que vivenciara memórias terríveis pelos olhos de James,vendo o mundo tornar-se uma nevasca e a figura de Steve cada vez mais distante na queda em 1940; não contara que tivera a mesma experiência também através das pupilas dilatadas do Capitão América. Wanda suspirou.

Por mais que Bucky estivesse vivo, era como se parte dele não estivesse. As coisas haviam mudado muito e ele não era mais o mesmo rapaz que se alistara no exército e tinha um paladar sedento por doces ou uma notoriedade leviana com garotas.

Bucky voltara após muitos anos e muita dor para a vida de Stevie, mas nada mais seria igual para nenhum deles.

Ambos ali naquela sala entendiam o peso disso.

Ela mordeu os lábios, notou que isso era outro sinal de nervosismo e parou pouco depois. Não podia dizer à ele. Não. As palavras eram ácidas e não saiam da língua. Respirou fundo. Expirou forçado. Com sua permissão, dada a duro contragosto, o caos tomou posse de suas mãos e seus olhos; saindo então em uma névoa reluzente como sangue. À Steve, porém, era invisível.

Embora não por muito tempo.

Há quase dois anos ela visitara a mente dele. Fizera estragos. A cena que lhe mostraria também era dolorosa, mas....

Mas, se Pietro pensara a mesma coisa naquele instante exato em partira deste mundo, Wanda gostaria de saber. Precisaria disto. Então, em meio ao conflito de pensar que aquilo traria dor e traria alívio, seus lábios foram mais rápidos.

Uma vez ele dissera que o soro do supersoldado, além de condições físicas, lhe dava certas condições mentais: clareza de pensamento, uma espécie de foco aguçado; raciocínio rápido e poder de decisão ágil; uma memória estupidamente vívida. Steve quase revivia uma lembrança por inteiro quando se passava em sua mente e Wanda só podia imaginar a dor que aquilo poderia trazer para um soldado. Visão, olfato, tato. E ela esperava que se confundisse com o que veria. Ao menos um pouco.

O cômodo transbordou em carmesim.

Por um segundo, por um breve e terrível segundo, Stevie franziu a testa numa expressão de choque e pôde enxergar o mundo vibrar com o ritmo do trem e o vento do inverno. É claro que reconheceria o cenário daquele pesadelo, pois o remoera na memória por muitos e muitos anos depois.

 “Graças a Deus sou eu, e não você.”

 Os olhos dele se encheram d’água. Wanda fez força para não desandar em prantos e pedir desculpas.

No segundo imediato, Stevie estava ali na sala e sem saber o que se passara. Encarou Wanda, que retribuiu o olhar como quem nada quer, como nem nada sabe. Ah, mas como ela sabia! Com toda a naturalidade que era capaz de fingir enquanto engolia o choro, a Feiticeira Escarlate assegurou ao Capitão:

— Ele está bem. Dormindo.

Sam entrou na antessala logo em seguida, falando alto e com bandejas de comida nas mãos. Tomou toda a atenção dos dois para si e a visão não havia sido nada mais do que um devaneio doloroso para Steve, uma memória forte a ponto de parecer acontecer diante de seu nariz.

Tinha dado certo.

Ele estava confuso, mas comia com entusiasmo. Tinha dor, mas brincou mais uma vez com Sam que era o Papai Noel e tomou um copo de leite. O pior de tudo: tinha saudades, mas algo havia sido tirado de sua cabeça. Um peso talvez, uma sensação não dita, uma culpa mal pesada.

E Wanda, por mais que não houvesse verbalizado nada do que ocorrera, nada que James havia pensado, olhou para ele e vira sua aura azul tornando-se ora rubra, ora de uma nuance azul gelo e afiado. Wanda compreendeu o que não havia sido dito ou pensado, compreendeu o vazio latente no peito de aço do Capitão. Se ela entendia seus medos, conhecia também alegrias e partes ocas. E, por mais que jamais existisse alguém que pudesse trazer de volta este pedaço faltante para si, para ela, decidiu que seria melhor entregá-lo para Stevie.

Para que fosse sempre sereno e sólido.

Para que fosse azul, pois ela era escarlate.

E hoje, isso não parecia tão ruim.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Referências, referências, referências!
*Hannuka é um feriado judeu, que dura aproximadamente 8 dias. Não é equivalente ao Natal; os judeus usam um calendário lunar e a data do feriado muda de acordo com o ano. Em 2016, coincidirá com o Natal cristão. Teremos mais algumas explicações sobre.
*Menorah é o candelabro aceso neste feriado, com nove braços.
*Menoroth: plural de Menorah.
*Shamash é um dos braços/vela do Menorah, que serve somente para acender as outras oito velas.
*Kosher: comidas específicas do costume judeu, usados mais por ortodoxos atualmente.
*Latkes são panquecas de batata.
*Clint realmente tem um cachorro nos quadrinhos, chamado Lucky. E como ele não tem um olho, coloquei a referência "Boss" por causa de um personagem do Metal Gear. Me julguem.
*Coloquei "peculiar" em itálico em uma alusão besta ao "Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiaries", que li esta semana e achei o contexto da Segunda Guerra e judaísmo bem legais para inspiração.
*Eu gosto do headcanon da Viúva Negra tricotar... hahah
*Existe também um headcanon que Steve consegue praticamente reviver suas memórias, o que tanto uma benção quanto um fardo. Poor Stevie.
*Greta Garbo foi uma atriz famosa nos anos 30, polonesa.

Caso tenha ficado alguma coisa confusa ou algo assim, me digam! E também me falem seus headcanons. Adoron ♥