Vazios escrita por Shalashaska


Capítulo 12
Gruzovoy vagon


Notas iniciais do capítulo

Peço desculpas pela demora, mas trago 3.714 palavras pra vocês ♥ Espero que gostem. O final foi meio desafiador de escrever, mas curto cada instante dessa fic. Em resumo, teremos mais drama, como bem podem captar através do título do capítulo e da imagem.



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Gruzovoy vagon

 

"Vagão de Carga”

 

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Sonolência e dor tornavam as delicadas pálpebras de Wanda cada mais pesadas; seus cílios pareciam acorrentados a grilhões de chumbo. Piscou demoradamente, embalada em fadiga. Franziu a expressão, sentindo a brisa saudar seu rosto jovem e abatido.

Não sabia dizer quantas vezes as árvores e as pedras de Wakanda haviam testemunhado sua figura triste a encarar um ponto vazio no horizonte, ou se a natureza em si já percebera o estado de seu coração e, talvez em razão disso, lhe mandava sopros mornos e gentis. Ergueu um pouco mais o queixo, em direção ao Leste.

O nascer do Sol estava lindo.

No pouco que dormira, sob efeitos de anestésicos administrados por uma preocupada Njeri em seu quarto, fora visitada por imagens diversas, desconexas e de fina crueldade.

Pesadelos.

Reflexos das tormentas que rufavam dentro de si, desabrochando em terríveis flores. Sim, à despeito da estação em que se encontravam neste final de ano, dentro de seu peito florescia uma primavera de espinhos e tempestades.
Pensara ter saído desta fase, mas sempre voltava à ela.

Com um suspiro, ela pegou uma caneca que trouxera antes, bem antes. O líquido jazia frio e já no final, descendo insosso em sua garganta. Apoiou a porcelana no prato, o som desse pequeno gesto sendo o único retinido no ar. Por fim, passou a mão na testa, na parte inchada e arroxeada de sua face, em sua sobrancelha esquerda. Agora, assim como a maioria das manhãs, o Sol dissipava os pesadelos e aquelas terríveis flores não passavam de pétalas murchas.

Mas...

Ventava. E o vento rodopiava essas pétalas.

A madrugada não fora somente branca e azul, morna e cheia como muitas madrugadas eram até que Wanda sentisse a ausência de tudo isso. Esta madrugada também fora vermelha e preta, além de gélida. Lembrou-se de ter visto galhos escuros, recobertos por gelo, em contraste com o fundo inteiro de neve. Os acordes de piano eram fracos, mas estavam ali, vivos como uma fraca pulsação. Seus olhos transbordando carmesim assistiram garotas trajando vestes pesadas e coturnos.

Uma ruiva. Uma loira.

“Yelena.”

“Natalia.Vá.”

E então mais nada.

Ligara a televisão em seu quarto, mesmo sem entender wakandano. Trocou de canais, cansou-se da luz artificial das imagens. Não lembrava de Stevie ter dito que Natasha ia ao comitê em Veneza, mas talvez ela fosse. Talvez algo tivesse dado errado. Céus, Stevie e Sam estavam lá. Precisava saber de algo. Passou ao menos um hora em frente á tela, procurando o rosto de falsa inocência de Nat. Primeiro, Natasha Romanoff revelara todos os segredos da SHIELD e da HIDRA na web, desnudando arquivos sujos e fragmentos do passado que ninguém queria enxergar. Governos foram rápidos em banir certas informações, embora outras já circulassem até por boca a boca. Depois, ela anuiu com o Tratado de Sokovia.

Era uma elaborada teia, embora imprevisível a outros olhos além dos azuis da Viúva Negra. Mas, o que essa trama queria tanto capturar?

Redenção?

Honra?

Paz?

.

.

.

 

.

Yelena?

— Veio cedo.

O rosto inchado de Wanda virou-se para a mulher à distância, que aproximava-se com uma expressão neutra tantos nos lábios quanto nos olhos. Assim como no dia anterior, vestia uma calça colada ao corpo e botas escuras até pouco acima da canela, mas sua blusa hoje era confeccionada de um tecido mais reforçado nos ombros e antebraços, quase como um sutil estofamento para possíveis impactos. Aquilo fez Wanda querer sorrir, mas conteve-se.

Ela não levantou-se do apoio de pedra, onde repousava brevemente do treinamento de arco e flecha que também não usara. Vista cansada e borrada, dedos doloridos, músculos cobertos por hematomas. Não conseguira resgatar forças para prosseguir com sua promessa a Clint, tanto é que Agneta nem havia sentido o sabor de uma única flecha.

Encarou Deka. O que lhe deixava naquele estado não era o seu físico debilitado.

Um pouco a mais de força e poderia ignorar a fadiga de seu corpo, uma vez que nem passara no ambulatório. Njeri que a abordara no corredor e insistira em um anestésico. No fundo, Wanda agradeceu por ter sido ela que a encontrara. Não queria ter o desgaste de se apresentar para qualquer outro enfermeiro. Só tomara um banho quente e enfaixara os ferimentos mais graves. Njeri se assegurara que estava bem dentro do possível, e que ao contrário do que a Feiticeira pensara, seu rim e vértebras permaneciam intactos.

Embora o corte acima da sobrancelha estivesse com uma aparência horrível.

Se fosse só isto, estaria tudo bem. Talvez ignorasse Deka e simplesmente se esquivaria até que tivesse a oportunidade de encontrar T’Challa e afirmar, que não, Deka não aprenderia nada com ela. No entanto, a noite havia sido mais severa do a aprendiz wakandana e aplicara golpes nas feridas que ainda sangravam.

Além de Natasha, Wanda havia sonhado com Pietro. Com o dia em que desintegrara robôs, cópias acéfalas de Ultron, enquanto caía de joelhos numa ruína de Sokovia. Sonhou com suas mãos arrancando o coração de metal dele, sentindo que o seu próprio havia sido também arrancado do peito.

Quer saber como eu me senti? Eu me senti assim.”

Deveria ter sido ela.

Passou as mãos no cabelo, prendendo-o num rabo-de-cavalo alto.

Ver Deka acendia algo violento dentro de si. Algo que estava preso e necessitava ardentemente romper as grades da gaiola.

Wanda não tinha mais condições de dizer não.

— Você sabe que madrugo. Eu disse que teria a tarde livre. – A Feiticeira respondeu, inclinando seu rosto. – Então, você veio cedo.

Então  a outra pousou sua atenção no começo do corte na testa da wakandana. Deixou o foco dos seus olhos por segundos a mais do que seria considerado normal, e então lhe ofereceu um sorriso.

— Você não me parece muito ocupada agora.

— Não, eu não pareço.

A Feiticeira Escarlate estava disposta a deixar a conversa desintegrar-se no ar, com suas palavras indiferentes pairando junto a tensão entre as duas. Com seus dedos ainda doloridos, percebeu que era tolice querer feri-la, por mais que algo em sua aura despertasse tal sede. Seu comportamento no dia anterior havia sido infantil ao ter permitido a aura agressiva da outra afetá-la tão violentamente. Quando T’Challa retornasse, o que esperava que fosse logo, desculparia-se por ter abortado a missão.

Deka sentou ao seu lado, agora encarando Agneta com sua expressão desdenhosa.

— Eu li seus arquivos. – Continuou, sua voz macia como um ronrom. – Telecinese, telepatia e manipulação de energia pura. De Sokovia. Pensei que uma pessoa como você, de onde vem, assinaria o Tratado.

— Não assinei.

Através de sua visão periférica, Wanda viu o sorriso felino de Deka se alargar por breves segundos. Obrigou-se a permanecer olhando o horizonte verde e sereno, o Leste cheio de luz.

Lapsos rubros manchavam a cena.

— Sei que não. Apesar de meu foco ser minha formação e assuntos devidamente engrandecedores, você tem relação direta com os política internacional de minha nação dos últimos... Oito meses. Alguns dizem que você não assinou o Tratado porque não queria ser parada por uma assinatura num pedaço de papel. Outros dizem que a ocorrência na Nigéria foi proposital. – Ela deu de ombros. – Você é sokoviana, Zemo também era. Há quem encontre uma relação entre um ponto e outro. Meu... Meu rei morreu e agora Wakanda entrou em uma situação instável no cenário político.

Wanda não respondeu. Mordeu os lábios, apertou o assento abaixo de si até que os nós dos dedos ficassem brancos. O amanhecer já não preenchia seus olhos.

 – Antes... – Deka alongou as vogais em seu timbre grave, como se o que descrevesse não fosse mais do que uma história banal. – Eu achava que não tinha assinado por medo. Medo de se comprometer. Fraqueza.

Então Wanda soltou uma curta e seca risada.

— Medo? É sempre esta a questão?

— Ontem eu percebi que não era medo. – A aprendiz virou-se diretamente para ela, após alguns segundos considerando o riso e a resposta da estrangeira. – Talvez até seja um pouco de medo, não importa. Mas eu quero saber a resposta da sua boca.

— Você não quer isso. Você quer socar a minha boca e ter a certeza de que a culpa é minha. Então por que não vai até seus “arquivos” de novo e lê que eu não assinei o Tratado em razão de não concordar com seus termos? Parece justificativa o suficiente para o resto da equipe.

Deka recostou-se no lugar.

— Está certa. Eu quero mesmo socar a sua boca. Veja, é só o que eu sei de você. A garota que ronda o palácio de noite e se recusou que qualquer equipe médica a ajudasse. Dispensou a ajuda de psiquiatras três vezes em oito meses afundando em comportamento impulsivo. Que é, em parte, responsável pela catástrofe do próprio país e a morte do governante do meu. Que nem pela possibilidade de ajudar com o desenvolvimento da ciência aceita exames e testes de seus poderes.

— Tudo isso o que sabe de mim é o que você leu sobre mim. E a oportunidade que teve de realmente me conhecer foi aproveitada em mais de quarenta minutos explorando onde podia me causar mais dor. Deka, com todo o respeito... Você não quer saber minha opinião. Nós duas sabemos disso. E eu não quero arquivos seus ou sua descrição completa. Uma tarde em sua companhia foi uma amostra suficiente de quem você é.

Silêncio.

Wanda voltou seu rosto para frente. Sua energia fora drenada pela última frase, embora com certo alívio. Foi bom extravasar tais palavras sem ter a necessidade de usar os punhos e joelhos. Mas... Ela acabara de ofender, de novo, uma cidadã da elite wakandana. O que diabos estava pensando?

Teve a urgência súbita de sair dali. De simplesmente desaparecer.

— O que acha de um aquecimento antes?

Deka levantara-se, alongando os braços e estralando o pescoço.

— Acho que já nos aquecemos o suficiente.

— Bom. – A outra anuiu com a cabeça, juntando as diminutas tranças de seus cabelos em um rabo de cavalo. – Nos dá mais tempo na arena.

** **

Ao menos Deka havia dado tempo para que pudesse se vestir de maneira apropriada, com roupas que deixassem o movimentos de seus braços e pernas livres. Uma calça semelhante a da aprendiz, justa e preta, e uma blusa vermelha de frente única e bem presa na altura do pescoço. Colocou luvas também, protegendo as palmas das mãos, embora os dedos permanecessem expostos.

Estava pronta. Estava na arena. E já estava apanhando.

As Dora Milaje interrompiam vez ou outra o treinamento para que pudessem assistir a nativa de seu reino triturar a órfã de Sokovia. Conversavam entre si, encaravam os golpes tão precisos e rápidos da aprendiz, Deka.

Ás vezes, sorriam.

Não que Wanda pudesse se dar ao luxo de prestar atenção nos detalhes, pois sua visão estava embaçada o suficiente para que tudo não passasse de um borrão. Levantava-se de um último golpe, um chute dado com a base do calcanhar direto em um nervo que Wanda nem sabia que existia na perna. Ela grunhiu e segurou a maré caótica de seus poderes, prestes a irromper as barreiras que tão fortemente construía todos os dias.

Tomou ar enquanto cambaleava.

Por sua vez, a oponente distanciou-se do centro da luta, exclamando algo para uma das Dora. Disse algo em voz alta, a outra respondeu em sua língua mãe. Houve alguns risos abafados. Em pouco tempo foi lançado um par de garrafas d’água em direção à Deka, que as pegou no ar sem qualquer dificuldade.

Ofereceu uma a Wanda.

— Com o que treinava nos Estados Unidos? Naquela base de vocês, no norte do Estado de Nova York...

Sua respiração estava acelerada demais para que pudesse responder ou tomar um gole d’água. Quis responder à outra para que lesse de novo o maldito arquivo que se gabara tanto de ler, quando então uma luz incidiu sobre sua consciência:

Poucos sabiam que a base fora estabelecida naquele local, embora a torre de Stark fosse quase um ponto turístico na cidade de Nova York. “Poucos”no sentido de órgãos governamentais e provavelmente pessoas de alto escalão.

Deka, uma aprendiz do outro lado do Atlântico, teria acesso a dados restritos?

Interessante.

Mas não teria acesso a informações inteiras, senão não teria perguntado. Parecia sondar as respostas da Maximoff.

Ficou em silêncio enquanto tomava fôlego, ao mesmo tempo pensando nas possibilidades. Sim, a Viúva Negra havia revelado dados gigantescos e absurdos que a SHIELD tanto segurara para si e para seu parasita, a HIDRA. Mas não é como se todos os dados fossem acessíveis para uma busca rápida em um site de pesquisa. Haviam códigos, criptografias e coisas que alguém comum não conseguiria destravar sem um quantidade razoável de conhecimento e recursos; e geralmente alguém com os dois é alguém com poder.

Será que Deka...?

— Nós, hum... Treinávamos com Alvos. Metal. Concreto. – Chacoalhou os ombros, para disfarçar os minutos a mais que em refletira sobre o assunto. Neste meio tempo, já havia um brilho de suspeita nos olhos escuros da outra, um brilho sutil feito uma lâmina reluzindo. – Mas na época eu não usava meus punhos. – Referiu-se aos seus poderes. – E aqui?

— Quase a mesma coisa, como vê. – Deka fez um gesto largo para o resto da arena, onde as Adoradas treinavam entre si ou contra modelos de robôs feitos de sílica e metal, usando armas brancas, os braços e outros exercícios. Wanda não pôde deixar de vê-las como a personificação das amazonas, das valquírias. Talvez uma lenda poderosa e local que o resto do mundo ainda não vira, algo ainda mais mágico por se tratar da realidade. – E nós usamos os punhos.

As pálpebras de Wanda demoraram-se no piscar de olhos, remoendo a provocação. O caos rubro respondeu por ela, num tom debochado.

— Pensei que usavam estrangeiros de vez em quando.

Ambas riram por motivos antagônicos.

— Deusa, não! – O riso da wakandana era verdadeiro. Jogou a garrafa de volta para a mulher que lhe entregara, falando mais uma vez em sua língua. Depois voltou-se à Feiticeira com a face mais inocente que podia exibir. – Estrangeiros são só para diversão.

As duas calaram-se enquanto uma tentava acertar a outra. O torpor no corpo de Wanda impedia que fosse mais rápida ou mais forte, mas ao menos notou que sua adversária não mirava nos mesmos pontos em que desferira golpes antes.

Era bom porque o ferimento acima da sobrancelha estava, de novo, cicatrizando, e não queria ter hematomas piores do que já tinha. E era ruim porque mais áreas de seu corpo iriam tingir-se de roxo e depois de amarelo. Desviou para direita, agachou um pouco para não levar um tremendo baque na parte superior do torso.

Só para depois levar mais um golpe ao lado do quadril.

Impediu que um grito escapasse de sua boca, ao passo que tentava recuperar o fôlego. A movimentação tornou-se mais lenta e o mundo ao seu redor convertera-se numa imagem nítida e filtrada por um tom vermelho. Sua pele arrepiara-se da base da coluna para cima.

Enxergou os pés de Deka. A esquerda girou dentro de seu próprio eixo devagar, inclinando sua ponta para fora; já o pé direito levantou-se com a graça de uma bailarina. O corpo dela verteu-se para o lado, apoiando-se justamente na perna esquerda, ao mesmo tempo em que a direita ia para frente e para o alto.

Sentiu a deslocação rápida no ar.

O mundo então acelerou-se de súbito, somente para que o choque entre a bota de Deka e o torso de Wanda fosse mais doloroso. Não aguentou o impacto e foi de joelhos ao chão, novamente as mãos indo de encontro com a aspereza do solo.

— Me pergunto a razão de meu... – A wakandana forçou a palavra sair da boca. – Rei querer que eu treine com você. Mal sabe usar o braço.

A outra demorou-se mais um segundo agachada, concentrando-se na dor e na aura rubra que crescia dentro de si. Piscou os olhos na tentativa de apagar o filtro vermelho e vivo com que enxergava o mundo.

— Talvez seja por isso. – Disse com a voz entrecortada. – Ele quer que eu aprenda como revidar e você quando não usar os punhos.

— Acha que T’Challa quer que eu te ensine?

— Na verdade ele disse que você poderia aprender comigo.

Mais uma vez o vento trouxe a risada ácida de Deka.

— E julga que pode realmente me ensinar algo?

Naquele instante as duas apenas se encaravam. Mais alguns olhares estavam voltados à ela, a arena então mais silenciosa. Wanda a atingira somente com sua voz ferida, seu timbre cansado.

— Não. – Afirmou transparente, sem qualquer pretensão. – Mas achei a situação um tanto curiosa para deixar passar. Veja, eu sou a estrangeira fraca aqui...E ainda assim, seu rei acredita que posso passar algum tipo de ensinamento ou qualquer outra lição que vossa Majestade imagina. Me deu esta missão com você como aprendiz. Isso deve significar algo, não?

O sorriso de Deka era uma apenas uma sombra de expressão em seu rosto, os lábios puxados para cima eram mais como um rosnado do que qualquer outra coisa. Não era mais humor que a alimentava, tampouco desprezo.

Era a mais pura agressão.

— De fato. Uma situação muito curiosa. – Ela estralou o pescoço, mexeu os ombros delineados. – Admito que te julguei mal, Maximoff. Será um prazer treinar com você.

O corpo de Wanda sentiu a maré de ira inundando-a.

— Tenho certeza que sim.

** **

Estava frio ali dentro.

Talvez pelo ar climatizado do ambiente, talvez pela câmara criogênica de James; talvez por mais uma vez se sentir vazia ou quem sabe pela simples razão de nascer em Sokovia e o frio ser inerente a si. De qualquer maneira, a sensação parecia errada devido ao inchaço morno de sua pele, esmurrada com maestria pelos punhos e chutes de Deka. Estava zonza e desorientada, tanto que a mesma cena se repetira:

Tivera que ser amparada por Doras Milaje, que a acompanharam até a Ala Médica e encontraram Njeri. Mais pontos no ferimento acima da sobrancelha que, após a última pequena conversa entre Wanda e Deka, fora mais uma vez golpeado e aberto. Novamente tomara anestésicos e anti-inflamatórios, os quais eram potentes e tão rápidos que só a mente da sokoviana existia naquele instante.

Mal sentia o corpo, o contato com a cadeira e a posição largada em que se encontrava.

Mas sentia o frio.

Esperava sentada a enfermeira retornar com outras ataduras e remédios, já que as demais salas estavam ocupadas de estudantes em visita e ciência de verdade. Não havia orgulho em mostrar uma refugiada de guerra ferida aos wakandanos jovens e cheios de sonhos e ambições. Sobrara a sala de criogenia de James, porém. E ela se sentia à vontade lá.

O que estava pensando ao ofender Deka? Sabia que apanharia mais depois, e que a misericórdia antes concedida não existiria mais. Céus, era tão estúpida. Stevie estava certo. Wanda estava se destruindo.

Ela suspirou, então encarando James.

Queria ser posta numa câmara igual e só acordar quando, de alguma forma, Pietro estivesse lá para recebê-la, para abraçá-la, para ler histórias e contos infantis após os terríveis pesadelos da irmã. Só desejava existir num mundo em que ele também existisse.

Ele existiu. E Wanda ainda tinha dificuldades de colocar qualquer verbo no pretérito quando se referia ao irmão.

Ela pôs a mão na cabeça, como se esse tolo e dolorido gesto pudesse arrancar o pensamento de seu crânio. Enquanto lágrimas saiam doloridas de seus olhos inchados, ela murmurava baixo coisas em sua voz rouca. Não entendia bem o que. Não queria entender. E o resto do mundo em silêncio era uma resposta que bastava.

Tudo estava escarlate, não azul. Jamais azul.

— Deveria ter sido eu, não ele. Eu.

O caos vibrou as paredes, vibrou o mundo. Tudo chacoalhava de maneira ritmada, com um som alto e incessante. Soube que era o caos, soube que era o chamado de seu rugido vermelho. Frio tomou conta da sala e de seus ossos, uivando como uiva só no inverno. Quando abriu os olhos, ela viu Stevie.

Nevava. Estavam em movimento, em alta velocidade. O som era do metal raspando os trilhos, o vagão de carga recém escancarado por rajada de energia, vinda da arma de mais um soldado da HIDRA.

Stevie lançava o braço através da abertura, gritava a plenos pulmões. Seus músculos doíam de tão estendidos, mas ele não conseguia alcançá-lo.

O ano era 1944.

As mãos de outra pessoa enfim largaram a haste de metal, já meio solta da casca do vagão. Seu corpo ficou solto, livre, ao sabor da única e absoluta lei que era a gravidade. Ele ouviu o grito distante de Stevie. Ele ouviu o próprio grito.

Tudo era branco e gélido enquanto caía.

“Graças a Deus sou eu, e não você.”

Em meio a flocos da nevasca e o vazio abaixo de si, ela sentiu a gratidão que ele sentiu. Depois, sentiu o impacto contra o solo.

Um arquejo escapou dos lábios dela, ao passo que a cor rubra de seus olhos se desvanecia. Encarou o Soldado Invernal, permanente em seu semblante distante e sereno. Nada acontecera. Ainda estava em Wakanda, anestesiada em uma cadeira e aguardando o retorno de Njeri. Quietude, apesar dos bipes de máquinas e painéis dentro da sala. Aquilo fora somente uma visão.

Franziu os cenhos.Engoliu seco. Não costumava ser tão descuidada com seus poderes. Antes não desejava partir pessoas ao meio, antes não entrava sorrateira na mente dos outros quando não queria. Céus, estava piorando a cada dia.

Tony estava certo. Ross estava certo. O mundo estava certo.

Ela era uma ameaça.

— Eu sinto muito, James... Eu sinto...

Parou. Uma faísca acendera em si, um toque de curiosidade a distraiu de sua dor. Seus olhos, agora verdes e arregalados, focaram-se no rosto de Barnes.

“Graças a Deus sou eu, e não você.”

Remoeu o pensamento, quase sem acreditar. Não. Não era somente uma visão. Era uma lembrança, a última antes de James Buchanan Barnes se tornar o Soldado Invernal.

E era também uma resposta.

A Feiticeira Escarlate levantou-se em um só ato, prendendo a respiração. Esperou. Esperou tudo e nada, um sinal físico de que ele a entendera e que ele respondera, de fato. Esperou em vão.

Wanda olhara dentro das memórias de James, e de algum jeito, James olhara de volta.

Saiu da sala antes que Njeri retornasse.


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Notas finais do capítulo

Acabei de escrever, então se avistarem algum erro de digitação ou até mesmo coerência, me avisem! Algumas coisas escapam das mãos, assim como Bucky escapou das mãos do Stevie.
#Sad.
Espero que tenham gostado!