A Sombra do Pistoleiro escrita por Danilo Alex


Capítulo 22
Fim da Linha


Notas iniciais do capítulo

Olá, meus queridos!

Cá estamos nós para saber se Enrico e Davis conseguirão de fato impedir Colton Slater de chegar à cidade de Dark Horse para contratar, a mando de Herrera, uma legião de pistoleiros que porão um ponto final nos planos de vingança do jovem mexicano.
Sem sombra de dúvidas esse é um dos capítulos mais longos da fic - se não for o maior - então me desculpem. Culpem o Matheus! kkkkk
Espero que não seja uma leitura cansativa. Para compensar o tamanho exagerado do capítulo, tentei recheá-lo com bastante ação e humor, procurando criar uma perseguição épica que nos remeta às boas e velhas histórias de faroeste que conhecemos, ainda que seja um conhecimento vago.
Agradeço o carinho de todos que estão chegando até aqui comigo.
Quero dedicar esse capítulo especialmente ao meu amigo Matheus Braga, que além de pessoa excelente é um escritor muito talentoso; foi o primeiro amigo que fiz aqui no Nyah! É alguém que sempre vê potencial nos meus rabiscos e consegue me ajudar das mais diversas formas em todo tipo de situação.
Graças a ele, escrevi esse que pode ser considerado um capítulo bônus, porque ele é muito fã de veículos em geral, sobretudo de trens. rsrs E as locomotivas a vapor são realmente emblemáticas no meio western. Obrigado, Matheus! Espero que goste!
Enfim, chega de papo né? Como dizem aqui na região onde moro: " já falei mais que o homem da cobra." kkkkk

Boa leitura!



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Já conseguiam ver com clareza a frente bojuda da locomotiva robusta, que se deslocava em velocidade moderada. Conforme a máquina corria pela planície rebocando um conjunto considerável de vagões os quais totalizavam cerca de vinte e cinco toneladas, e onde se transportava aproximadamente uma centena e meia de passageiros, uma grande nuvem de vapor e fuligem emergia da chaminé, lançando ao ar um colossal penacho de fumaça, que se levantava com imponência da pradaria e poderia ser avistado a milhas de distância.

Os trilhos agora chacoalhavam com estardalhaço sob o peso descomunal da máquina que se aproximava.

Davis e Enrico divisaram a locomotiva se agigantando diante deles; era uma máquina tipicamente americana, do tipo mais popularizado na época, de grandes dimensões, potente, com funcional limpa-trilhos, grande farol dianteiro, balão de chaminé e um nome lateral, o qual ainda não era distinguível. O sol matutino rebrilhava na cabine ocupada por quatro condutores, ao passo que a carroceria abrigava a monstruosa caldeira em ebulição devido à queima constante de carvão, engenhosamente transformando a energia da combustão em trabalho mecânico, alimentando o motor potente, fazendo funcionar os oito eixos da máquina.

Assim que a locomotiva passou sacolejando pela altura do esconderijo deles rebocando o conjunto de vagões, mesmo estando a pouco mais de cem passos, ambos puderam sentir o vapor quente emitido, o calor gerado pelo atrito das rodas contra os trilhos, e tiveram seus tímpanos torturados pelo som rascante dos vagões chacoalhantes e o gemido do metal contra o metal.

— Não se esqueça que há muitos inocentes a bordo, meu amigo. — preveniu Davis empunhando o revólver — Por isso, mais do que nunca devemos caprichar na pontaria.

Ergueram-se a um só tempo detrás dos arbustos, segurando os animais pelas rédeas e fazendo-os levantar-se também. Os cavalos sacudiram-se majestosamente para livrar-se da relva que lhe impregnava o pelo e as crinas, ao mesmo tempo em que bufavam e suspiravam. Ato contínuo, seus cavaleiros acomodaram-se nas rédeas e os fizeram galopar com vigor rumo ao trem que passava por eles.

Havia uma pequena probabilidade de que Slater suspeitasse de que algo parecido com aquilo pudesse acontecer. Por isso levara consigo cerca de dez pistoleiros tarimbados. Essa suspeita dos perseguidores foi confirmada quando distinguiram um homem meio agachado sobre o teto de um dos últimos vagões do comboio. Ao vê-los galopando furiosamente rumo ao trem, o sujeito, que empunhava um rifle, levou a arma ao ombro.

Poderia ter derrubado um dos dois da sela se quisesse. Entretanto, a bala sibilante cravou-se a poucos centímetros da pata dianteira de Nightmare, a montaria de Davis. Era um tiro de advertência. Um aviso claro para que desistissem de se aproximar do trem.

Percebendo que os dois homens sobre os cavalos prosseguiriam com seu objetivo, a sentinela colocada ali por Slater fez pontaria no rosto de Enrico, mas antes que tivesse chance de disparar, Peter Davis colocou uma bala certeira de seu revólver bem no meio de sua face, fazendo seu olho esquerdo explodir na órbita. Com um gemido abafado, o homem desequilibrou-se violentamente, rolou pelo teto e caiu do trem. Já era um cadáver quando tombou à margem dos trilhos.

Foi então que a coisa toda começou e o Inferno pareceu desabar sobre eles.

Os capangas de Slater passaram a surgir no teto e nas janelas. Usavam a coronha das armas para estilhaçar os vidros dos elegantes vagões feitos de madeira. Os canos de suas armas apareciam com frequência, vomitando chumbo e fogo sem parar.

Abaixando-se nas selas, Enrico e Davis galoparam em ziguezague para escapar dos tiros, ao mesmo tempo em que incitavam suas montarias a manter o ritmo acelerado.

 — O comboio está aumentando a velocidade. — Davis gritou para ser ouvido acima do som da fuzilaria infernal — Obra de Colton Slater, certeza! O desgraçado quer nos deixar para trás, alcançando logo a descida rumo ao Vale do Rio Vermelho. Nossa ação está limitada pela presença de passageiros inocentes no trem, enquanto eles atiram livremente contra nós. Precisamos subir a bordo o quanto antes.

— Verdade. E os cavalos já estão começando a cansar. — observou Enrico, também gritando.

Passaram a responder o fogo inimigo enquanto cavalgavam com perícia, desviando seus animais das irregularidades do terreno. Se um dos cavalos pisasse em falso ou em um buraco, poderia quebrar uma pata e lançar longe seu cavaleiro. Seria o fim da perseguição. Uma montaria de pata quebrada teria que ser sacrificada. Um cavaleiro arremessado da sela naquela velocidade poderia terminar de pescoço partido.

Conforme Muchacho e Nightmare reuniam forças para continuar correndo e se mantendo próximos do comboio barulhento que ganhava cada vez mais velocidade, seus cavaleiros empenhavam-se na luta.

Segurando as rédeas com apenas uma mão, Davis empunhava e disparava seu revólver com a outra. Quase todo tiro desfechado por ele era acompanhado de um grito de dor e morte procedente do trem, que seguiam correndo paralelamente.

A arma de Peter Davis era o típico revólver de seis tiros. Quando se esgotou a munição, devido às circunstâncias da perseguição e do tiroteio, seria impossível a ele introduzir as seis balas uma por uma na câmara do tambor. Como bom atirador precavido, ele simplesmente abriu a arma, retirou o tambor vazio e rapidamente o substituiu por um reserva e cheio de munição, que sempre trazia no bolso da calça para evitar perda de tempo em eventualidades como aquela. Conforme ele recarregava, galopando ao seu lado, Enrico lhe dava cobertura, abrindo fogo sem parar, alternando seus dois Colts.38 nos disparos, impedindo que os pistoleiros alvejassem seu companheiro enquanto ele municiava a arma rapidamente.

Os atiradores apareciam na janela e iam morrendo aos punhados, caindo como moscas, forrando o chão elegantemente atapetado dos vagões. Os perseguidores perceberam que calcularam errado. Slater tinha bem mais que uma dezena de pistoleiros mercenários a seu dispor. Precisavam realmente levar a luta para bordo do comboio.

Quando a munição dos Colts de Enrico se esgotou, ele simplesmente os devolveu aos coldres diante do peito e, virando o corpo para trás, esticou-se a fim de apanhar o rifle no estojo de couro cru atravessado na sela.

Um cavaleiro mediano, depois de muito treino e concentração, poderia até se aproximar do que Davis fazia, disparando o revólver ao passo em que galopava desenfreadamente. No entanto, jamais seria capaz de imitar o que Enrico estava prestes a fazer. Aquilo era para poucos.

Trançando as pernas ao redor da barriga de Muchacho a fim de firmar seu corpo sobre a sela durante o galope impetuoso, o rapaz mexicano largou as rédeas e deixou ambas as mãos livres para manusear seu infernal Winchester 73.

Como os cavalos já demonstravam sinais de cansaço e começavam inevitavelmente a perder terreno, a dupla de cavaleiros percebeu que não havia mais tempo, e que precisavam entrar no comboio naquele momento. Por isso, Davis conduziu Nightmare para bem perto da janela do penúltimo vagão, ajeitando-se na sela, preparando-se para saltar. Nesse ínterim, o Winchester trovejava escoiceando sem parar nas mãos de Enrico, enviando para o outro mundo os pistoleiros que surgiam nas janelas tentando derrubar Peter Davis à bala.

Assim que dispôs de uma brecha, o americano se jogou da sela em direção ao trem, pendurando-se na janela do vagão. Um momento depois, estava a bordo do comboio, trocando tiros com os atiradores que voltaram a surgir.

Sentindo Muchacho bufar de exaustão embaixo de si, o jovem De La Cruz aproximou-se da janela e preparou-se para pular. No exato momento em que se arremessou da sela, seu alazão resfolegante e encharcado de suor passou a desacelerar, esgotado, o que prejudicou o salto de seu cavaleiro.

Enrico teria caído violentamente na planície e jamais alcançado o trem se o braço musculoso de Davis não o amparasse em pleno ar. Segurando o pesado amigo com apenas uma mão, o americano ajudou Enrico a se pendurar na janela, distraindo-se por um instante do corredor pelo qual chegavam os pistoleiros. Isso custou-lhe caro, porque uma bala veio assobiando, cravando-se em seu ombro direito porque ele ainda girou o corpo no último momento. Agilmente atirou de volta, antes que o homem tivesse tempo de fazer novo disparo.

Agarrado à janela do trem em alta velocidade, lutando para subir a bordo, Enrico preocupou-se ao ouvir o disparo seguido de um grito de dor do companheiro.

— Davis! Você está bem?

— Estou sim, irmão.

— Foi ferido?

— Só uma picada de mosquito aqui no ombro. Nada grave. Não se preocupe.

Finalmente saltando a janela e adentrando o vagão, o mexicano viu seu amigo com a manga empapada de sangue, mas que, apesar da careta de dor, parecia bem.

O fluxo de pistoleiros diminuíra bastante. Os passageiros, apavorados, estavam deitados no chão, as mãos protegendo a cabeça. De armas em punho, a dupla seguiu passando de um vagão para outro em direção à locomotiva do comboio.

Quando chegaram ao vagão-restaurante, Enrico voltou-se para fitar o companheiro:

— Melhor você ficar por aqui e descansar, meu amigo. Já fez o bastante por agora. Está ferido, e a porta que nos separa do último vagão antes da locomotiva está trancada.

Davis fez menção de protestar, mas Enrico o deteve com um gesto da mão:

— Nem tente contestar. Vou ali na frente acertar as coisas com Colton Slater e já volto para darmos uma olhada nesse ombro. Realmente não parece ser grave. Ainda assim, está perdendo uma quantidade preocupante de sangue.

Embora contrariado, Davis assentiu com a cabeça e sentou-se a um canto segurando o ombro ensanguentado.

Enrico De La Cruz aproveitou o momento para recarregar seus Colts e simplesmente deu as costas para o amigo, encaminhando-se rumo ao vagão seguinte, cuja porta havia sido trancada e bloqueada do lado de dentro pelos homens de Slater. Agilmente o mexicano alcançou o teto do trem, por onde se moveu em direção a locomotiva a vapor, agora bastante próxima. Os pistoleiros refugiados no interior do vagão ouviram o som das botas de Enrico no teto e sem perda de tempo mandaram bala para cima.

Sapateando como um dançarino profissional enquanto gingava sem parar a fim de escapar da chuva de tiros que vinha de baixo de si com o intuito de transformá-lo em um queijo suíço, devido à velocidade e aos solavancos do comboio, o jovem pistoleiro acabou por se desequilibrar e caiu de costas sobre o teto do vagão, rolando de modo involuntário e perigoso para a borda.

Conseguiu milagrosamente pendurar-se na beirada do teto. Numa fração de segundo, antes que os pistoleiros pudessem alvejá-lo, Enrico provou mais uma vez que era o tipo de homem cuja maior das habilidades consistia em transformar azar em sorte: com a quase queda do trem, ao pendurar-se na lateral, ele aproveitou o impulso para estilhaçar o vidro com a sola das botas e se lançar para dentro do comboio. Passou pela janela como um cometa e aterrissou meio agachado, já atirando com o par de revólveres, como se fosse o próprio mensageiro demoníaco da Morte. Ele entrou por uma janela e três pistoleiros saíram por outra do lado oposto, estilhaçando vidros, arremessados pelo impacto das balas que os feriram mortalmente.

Protegeu-se atrás de um dos assentos e abriu fogo quase sem mirar nos atiradores remanescentes. Instantes depois, o vagão era uma desordem só, com sangue aspergido nas paredes, as janelas estilhaçadas, o teto coalhado de marcas de bala, inúmeros corpos empilhados e passageiros amedrontados que tinham se jogado ao chão na hora do tiroteio.

Com um pontapé determinado, Enrico escancarou a porta e surgiu no umbral empunhando ambos os Colts fumegantes. Viu dois funcionários da Ferrovia trabalhando ininterruptamente na alimentação da fornalha. Claramente estavam exaustos; todavia, um tipo repugnante os coagia a continuar apontando-lhes uma arma. Slater queria velocidade na máquina, mesmo sabendo que De La Cruz já estava a bordo. Talvez acreditasse que seus capangas dariam conta do recado. Ou que talvez ao menos pudessem atrasar os invasores até que alcançassem a malfadada cidade de Dark Horse.

Com uma expressão facial que se aproximava muito do enfado, o mexicano cuidou primeiro do pistoleiro que obrigava os homens a trabalhar sem parar na fornalha.

Depois, ainda bastante sereno, voltou-se para o homem de loiro cabelo longo e desgrenhado que, na cabine, fizera de refém um dos quatro condutores da locomotiva. Escondia-se atrás do pobre e trêmulo homem, cutucando-lhe a têmpora com o cano do revólver, um imenso Remington 44-40 preto fosco com detalhes dourados.

— Você deve ser Colton Slater. — rosnou Enrico para o loiro.

— Em pessoa. — devolveu o homem lançando de lado uma cusparada escura, envolta no que parecia um naco de fumo mastigado. — E você deve ser De La Cruz, o homem que meu patrão quer ver comendo capim pela raiz.

— Errado. — negou o rapaz com um meio-sorriso divertido — Eu sou o bilheteiro deste comboio, e te digo que sua passagem não é válida. Sua viagem acaba aqui. É literalmente o fim da linha para você, amigo.

— Se acha muito engraçado... — bufou Slater irritado — Vamos ver se vai continuar rindo assim quando, dentro dos próximos sessenta segundos, eu apertar este gatilho e fizer voar por essa cabine os miolos desse pobre maquinista que me está servindo de escudo humano.

— Você não quer fazer isso. — sibilou Enrico entre os dentes — Seu problema é comigo. Herrera pagou você e mandou que buscasse um exército de pistoleiros para me matar. Deixe esse condutor fora disso. Ele é só um pai de família tentando defender o pão de cada dia. Você vai morrer, Colton Slater. E vai morrer agora. Que vantagem terá se arrastar junto consigo para o Inferno alguém que nunca segurou uma arma na vida?

— Ele é meu trunfo, De La Cruz. Pode acabar comigo como diz que fará, mas em sua consciência ficará registrado o fato de que um inocente morreu por sua causa.

— Pare de ser estúpido. Herrera não paga você para matar quem não tem nada a ver com essa história. Você foi incumbido de ir a Dark Horse buscar pistoleiros de aluguel para me matar. Não posso permitir tal coisa. Você quer me ver morto. Vamos resolver isso agora. Como homens.

Surpreendentemente Enrico repôs os Colts em seus devidos lugares, ou seja, os coldres cruzados diante de seu peito largo. Olhando para Slater, declarou:

— Solte o maquinista. Darei uma vantagem. Você já está empunhando sua arma. Eu ainda terei que sacar as minhas. Se é a minha vida que quer, pode tomá-la. Só precisa libertar esse homem e, claro, ser mais rápido que eu.

— Está muito confiante, De La Cruz. Isso me leva a desconfiar que trama algo. Ninguém pode ser louco a ponto de achar ser capaz de sacar e disparar antes de alguém que só precisa levantar uma arma. Perdeu o amor à vida, rapaz?

— Viver ou morrer. Tanto faz. Homens como eu não tem mais nada a perder, Slater. Já você tem muito a ganhar se conseguir depositar meu cadáver marcado de chumbo aos pés de Francisco Herrera. Provavelmente uma fortuna que garantirá o resto de sua vida vivendo tranquilamente em alguma fazenda, com tantas cabeças de gado que seria difícil contar.

Colton Slater pareceu seriamente em dúvida.

Como os homens que alimentavam a fornalha estavam fatigados e tinham cessado de trabalhar, o trem agora se deslocava muito devagar, quase parando, bufando e gemendo como um touro doente. Pouco à frente se encontrava o início do declive que Davis mencionara.

— Decida-se, homem! — provocou Enrico — Não temos o dia todo!

Como se atingido por um raio, Slater empurrou o condutor bruscamente para um lado e levantou seu canhão de mão, apontando-o determinadamente para Enrico. Mirou o peito do mexicano, cuja mão se movera tão rápido que seus olhos perceberam apenas um borrão. Aquilo não estava certo. Era impossível um ser humano sacar com tal velocidade.

Ainda assim, Colton Slater teve a impressão de haver disparado primeiro. Quando seu revólver descomunal retumbou em sua mão direita, ele pensou ter ouvido logo em seguida o estampido de uma arma de calibre pouco menor que a sua.

O titânico Remington 44-40 é uma verdadeira obra-prima entre as armas de fogo. Imenso. Potente. Majestoso. Quando o criminoso o disparou, um grande clarão encheu a cabine, cegando momentaneamente os presentes. Como estavam em um espaço pequeno, o som muito alto reverberou com violência, fazendo zumbir os ouvidos do atirador, que se mostrou desnorteado por um instante. A visão de todos estava turva devido à sufocante e fétida nuvem de fumaça escura de pólvora produzida pelo disparo.

Assim que a fumaça se dissipou, Slater não foi capaz de crer em seus olhos.

Enrico estava de pé, sereno. Ileso. Boa parte da porta de madeira atrás de si desaparecera, transformada em mil lascas e chuva de serragem quando a bala do Remington a atingira. O bandoleiro franziu a sobrancelha intrigado. Havia algo errado. Ele tinha certeza que acertara o adversário. Impossível ter errado.  

Os devaneios de Colton Slater foram interrompidos tão logo ele percebeu, de olhos arregalados, que uma mancha vermelha e escura se formara na altura de seu ventre. Quase ao mesmo tempo se deu conta da ardência infernal que irradiava do ferimento, como se ele fosse um novilho sendo marcado por ferro em brasa pelo capataz. Incrédulo, deu um passo cambaleante para a direita, sentindo as tripas destroçadas pelo chumbo quente cozinharem dentro de si.

Estupidificado, levantou os olhos para o adversário. Depois de expelir uma golfada de sangue pela boca, conseguiu dizer de forma pausada e resfolegante:

— Moleque dos diabos! Estou indo então para a cova. O que me consola é saber que, mesmo tendo dado cabo de mim e meus companheiros, e me impedindo de recrutar ajuda em Dark Horse, você e seu namoradinho branquelo não serão capazes de chegar ao senhor Herrera, porque um batalhão de pelo menos trinta homens está em Brave City para garantir que...

— Chega de papo, abutre. — cortou Enrico — Adiós, muchacho.

E um dos Colts. 38 estalou em sua mão direita.

Colton Slater, abrindo e fechando a boca algumas vezes, ainda fez menção de dizer mais alguma coisa. No entanto, se calou definitivamente quando a bala certeira abriu caminho por entre seus olhos para chegar zumbindo ao fundo de seu cérebro.

Vendo o morto cair com estrépito, Enrico De La Cruz implacavelmente assoprou o cano fumegante de sua arma antes de girá-la duas vezes no dedo com artes de malabarista. Devolveu o Colt ao coldre, deu uma olhada nos condutores, virou-se e retornou ao vagão-restaurante para se encontrar com Peter Davis.

Deparou-se com o amigo meio pálido, exibindo uma careta de dor.

— Teremos que tirar essa bala daí. — sentenciou Enrico seriamente — Está fazendo você perder muito sangue.

O rapaz olhou ao redor, passando a vista pelos passageiros assustados e caminhou até o armário de bebidas. Retirou de lá uma garrafa de uísque. Voltou para junto de Davis e estendeu-lhe a bebida, instruindo:

— Derrame um pouco no ferimento para desinfetar isso aí e depois tome um gole.

O americano obedeceu. Grunhiu alto de dor quando o uísque entrou na ferida:

— Diabos! Arde como o Inferno!

E a seguir levou o gargalo à boca com um resmungo descontente.

Nesse meio tempo Enrico encontrou uma faca numa gaveta, cuja lâmina tratou de esquentar na cozinha.

— Isso vai doer. — garantiu a Davis ao passo em que aprontava o utensílio para o rústico procedimento — É melhor encontrar algo que você possa morder.

— Eu sei, garoto. Acha que é o primeiro tiro que levo na vida? — resmungou o loiro mal humorado.

Apesar da seriedade do momento, Enrico precisou conter uma risada. Peter Davis era o homem do sorriso fácil. Raros eram os momentos em que perdia o bom humor, e vê-lo carrancudo sempre parecia algo risível.

Ignorando a expressão divertida do amigo, o vaqueiro americano se pôs de pé e desafivelou o cinto da surrada e justa calça de brim. Sentou-se novamente, enrolou o cinto o melhor que podia e tratou de prender o couro entre os dentes. Ao ver Enrico se aproximar empunhando a faca com a lâmina vermelha pelo calor, o ferido retraiu-se um pouco, evidentemente tenso pelo que estava por vir.

— Está pronto? — inquiriu o jovem pistoleiro, mesmo sabendo que ninguém nunca está realmente preparado para aquele tipo de situação.

Davis apenas acenou com a cabeça. Então Enrico avançou com a faca quente e cutucou a ferida. Viu o amigo empalidecer e suar frio. Remexeu de novo no buraco feito pelo tiro, procurando a bala enterrada no ombro. Davis urrou, cravando ainda mais firme os dentes no couro do cinto e procurando aguentar o sofrimento excruciante. Evitou mover-se para não atrapalhar nem atrasar o serviço do amigo. A lâmina quente cavoucando o ferimento produzia uma dor lacerante, tão forte que lhe causava náuseas. Sabia que o parceiro estava fazendo o melhor que podia, o mais rápido que podia com o pouco que dispunham. Mesmo assim a dor era torturante.

Depois de alguns momentos que pareceram intermináveis, Enrico finalmente conseguiu enfiar os dedos na abertura sangrenta no ombro do amigo e retirar a cápsula de dentro da carne. Atirou o projétil coberto de sangue dentro de um copo cheio de uísque. Davis suspirou de alívio, as têmporas encharcadas de suor. Tomou um longo gole direto do gargalo.

Os passageiros e funcionários da Ferrovia observaram a cena, atônitos. Enrico dirigiu-se a um dos garçons, perguntando onde podia encontrar pó de café. O homem mostrou um armário e o rapaz mexicano foi até lá, retornando com uma vasilha.

— Que maluquice é essa, irmão? — estranhou Peter Davis — Até onde sei, isso aí serve para estancar apenas pequenos sangramentos, como quando nos cortamos fazendo a barba, por exemplo.

Mirando o amigo com altivez, o jovem De La Cruz sorriu antes de replicar:

— Está muito mal informado para um ianque, meu caro. Mesmo eu, que sou gringo, sei que durante a Guerra Civil o pó de café foi amplamente utilizado pelos médicos nas frentes de combate, a fim de conter perda de sangue nos soldados feridos.

Peter Davis deu uma risada repentina:

— Está certo, sabe-tudo. Vá em frente então.

Adiantando-se, Enrico enfiou a mão na vasilha, apanhou um punhado do pó escuro e com ele polvilhou o ombro ferido do amigo. Durante o processo, Davis aproveitou para tomar mais um longo gole da garrafa de uísque. O café misturou-se ao sangue que fluía, convertendo-se numa massa escura. Em pouco tempo, parecia mesmo surtir efeito, reduzindo quase por completo a hemorragia. Por último, rasgando uma tira de uma toalha de mesa do vagão-restaurante, o mexicano improvisou um faixa, a qual enrolou na altura da omoplata do companheiro.

Nesse momento, o trem havia parado completamente no meio da pradaria, praticamente no começo da descida que levava ao Vale do Rio Vermelho.

— Acho que isso deve bastar. — comentou Enrico, satisfeito — Dá pra aguentar até acharmos um médico que costure esse buraco aí.

Mal o jovem pistoleiro acabou de falar, um homem surgiu na porta. Portava uma espingarda de caça e exibia um distintivo:

— Bom dia, rapazes. Meu nome é Thomas Duncan. Sou um delegado federal. Receio que terão que me acompanhar depois do estrago que causaram aqui.

— Bom dia, delegado. Eu ofereceria um gole de uísque, mas como está em serviço, imagino que vá recusar. — zombou Davis esboçando um sorriso provocantemente irônico — Sabe, o que acho mais interessante é que tenha aparecido somente agora, senhor Duncan. Presumo que estava escondido embaixo de alguma mesa na hora do tiroteio.

— Não havia muito que eu pudesse fazer. — defendeu-se o agente da lei, ofendido — Eles eram vários, enquanto eu era um só.

— Duvido que esteja falando isso para nós. — resmungou Enrico — Enfrentamos um exército. Apenas nós dois.

— E se tivesse nos dado uma mãozinha — interviu Davis — Talvez eu não tivesse levado uma bala no ombro enquanto fazia o seu serviço, senhor delegado.

— Entendi agora. Esperam que eu apenas olhe para o lado e finja que nada aconteceu aqui. Nem sei por onde começar as acusações: perturbação da ordem, depredação de patrimônio da Ferrovia, homicídio múltiplo, exposição de inocentes a riscos mortais...

— Lembre-se que nenhum desses homens mortos era exatamente um santo, delegado. — enfatizou Enrico.

— Realmente. Entretanto, todo homem, por pior que seja, tem direito a um advogado e a um julgamento.

— Mister Duncan... Se viu mesmo o que fizemos aqui, sabe que essa espingarda na sua mão não vai servir de muita coisa. — observou De La Cruz soando mais intimidador do que gostaria.

— Bem, acho que posso acrescentar ameaça a um delegado federal à lista de acusações. Creio que estão bem encrencados, filhos. Devo mesmo lembrá-los que atirar em um agente da Lei a serviço do presidente dos Estados Unidos é bem diferente de estourar os miolos de uma dúzia de renegados fora-da-lei?

Fazendo um gesto para que Enrico largasse a coronha dos Colts e meneando a cabeça a fim de que o delegado se aproximasse, Davis interferiu, conciliador:

— Acalmem-se, rapazes. Ninguém precisa balear ninguém aqui. Senhor Duncan, sabe muito bem que sairemos daqui agora, com ou sem sua permissão. Faremos do jeito fácil ou do jeito difícil. Estou certo de que sabe disso. Então, por favor, peço que seja razoável. Aposto que conseguimos chegar a um acordo.

O homem da lei coçou pensativamente o queixo e seus olhos brilharam de cobiça:

— Também sou adepto do bom diálogo.

Davis retirou uma nota de cem dólares do bolso e lhe estendeu, replicando:

— Isso aqui deve bastar para resolver os contratempos de se olhar para o lado literalmente enquanto saltamos do trem, delegado.

Thomas Duncan olhou em volta e mirou seus interlocutores exibindo um sorriso cínico:

— Não sei dizer... Terei que dar muitas e boas explicações sobre o que aconteceu aqui. Conhece toda a burocracia; pilhas e pilhas de relatórios, sem mencionar as inúmeras testemunhas que vou precisar dissuadir...

Diante do olhar furioso de Enrico, Davis passou mais duas notas de cem para o agente da Lei, que meneou a cabeça afirmativamente, satisfeito.

Estavam prestes a saltar do comboio estacionado na planície quando a voz de Duncan os deteve:

— Uma última coisa, rapazes: meu supervisor não vai acreditar na minha história se eu chegar lá ileso.

— Eu faria as honras caso meu ombro não estivesse rasgado de balas. — gracejou Peter Davis.

Os olhos negros de Enrico flamejaram quando ele disse:

— Fique despreocupado, senhor Duncan. Presto esse favor a você sem problemas. Será um prazer.

E o mexicano caminhou até onde o delegado federal se encontrava.

— Agradeço muito, filho. Não precisa ser nada exagerado, acho que um soco médio talvez fosse...

O agente da Lei foi interrompido por um cruzado brutal de direita no rosto. Arrependeu-se da ideia quando viu aquele punho jovem do tamanho de um presunto voar em sua direção. Enrico sentiu o maxilar do homem estalar embaixo de seu murro, os dentes do delegado rangendo com o impacto. Thomas Duncan caiu para trás como um fardo. Perdera os sentidos de imediato.

— Eu ia pedir para você pegar meu dinheiro de volta com esse fanfarrão, Enrico — comentou Davis zombeteiro, antes de completar — Mas depois desse seu coice de mula no queixo dele, é melhor que mantenha os trezentos dólares, porque vai precisar de um bom dentista.

Sob o olhar perplexo dos passageiros do trem de 3 e 10 para Dark Horse, os dois rapazes saltaram do vagão-restaurante.

Por sorte estavam na Pradaria dos Cavalos, e montaria provisória era o que não faltava ali. Os equinos dessa planície se mostravam extremamente selvagens e ariscos, o que em absoluto não representava um problema para aquele par de vaqueiros experimentados. Montando em pelo nos primeiros animais que encontraram, cavalgaram de volta todo o caminho até o ponto onde Nightmare e Muchacho aguardavam, tranquilamente mascando o capim crescido às margens dos trilhos.

Voaram para o alto de seus respectivos cavalos e, agora sim, cavalgaram num ritmo regular para Brave City, a cidade de Utah onde Francisco Herrera os esperava com seu pequeno exército de pistoleiros mercenários.

Mesmo sabendo que cavalgavam para uma morte praticamente certa, Enrico De La Cruz e Peter Davis incitaram seus animais a avançarem num galope determinado e constante, imersos em seus próprios pensamentos turbulentos enquanto se aproximavam cada vez mais do desfecho daquela história. A sorte, que era imprevisível, estava sendo selada. 


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Notas finais do capítulo

E aí, gente? Foi bom, ruim, mais ou menos? Foi o que esperavam? Deixou vocês sem fôlego? Ou não? rsrs
Deixa um review pra mim por favor. Necessito urgentemente saber o que acharam. Estou roendo as unhas aqui, podem apostar. rsrs
A gente se vê aqui de novo semana que vem!

Forte abraço!!!



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