A Criação da Luz escrita por André Tornado


Capítulo 7
As escravas


Notas iniciais do capítulo

"A sensação era esquisita, uma angústia feita de um fel que em acidez e amargor me incendiava as entranhas, seguida de uma opressão que me apertava o peito impedindo-me de respirar."
in Um Amor Sem Tempo, Machado, C., Editorial Presença, 2010



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Entreabri os olhos, atordoada e desorientada. Estava muito escuro. Não me encontrava na casa de Luke Skywalker, isso era certo. O cheiro era diferente. Havia o tal aroma a incenso, mas neste misturavam-se outros odores, pestilentos, incómodos, de eflúvios de criaturas estranhas. Os sons também eram diferentes. Murmúrios, conversas sussurradas em línguas estrangeiras.

Uma mão roçou no meu braço. Depois, como se tivesse tomado confiança, percorreu-mo às apalpadelas. Pegou-me no pulso como se procurasse uma pulseira. Achando-o vazio, soltou-o. Dirigiu-se ao meu pescoço e eu reagi com violência. Dei um empurrão à criatura exploradora. Uma luz acendeu-se de repente e eu cobri os olhos com o braço que tinha sido apalpado. A coisa protestou com um cacarejo. Era uma fêmea humanoide, de pele vermelha e olhos amarelos, um rosto pejado de espinhos. Os cabelos eram azuis, apanhados por uma argola amarela de metal. Tinha um conjunto de quatro braços rematado por garras de unhas compridas. Dei-lhe uma patada para afastá-la de mim.

A luz que tinha sido acesa permitia-me explorar rapidamente o sítio. Era uma sala enorme, cheia de criaturas que tinham como única característica comum serem fêmeas. Mulheres. De resto, não podia existir um bando mais eclético do que aquele. Pequenas, grandes, com três, quatro braços, gordas, magras, vestidas, despidas, em grupos a cochichar, a dormitar, a jogar, a comer. Na penumbra distinguiam-se formas bizarras, trombas, olhos salientes, mãos sem dedos, com garras, pernas arqueadas, corpos às manchas, protuberâncias na pele em forma de pequenos chifres, bolsas, nódulos, quistos. Um grande armazém de escravas.

Senti um amargor a subir-me do estômago para a boca.

Talvez estivéssemos ali, e inclui-me no rol com repulsa, para um futuro mercado que nos venderia a mercenários, contrabandistas, bandidos, caçadores de recompensas. Recordei Leia a dizer que o planeta era um refúgio de gente vil. Recordei-me do maior de todos, Jabba, o Hutt. De onde tinha vindo essa memória? Mordi os lábios… Luke desafiara-o para salvar Han Solo, acontecera uma escaramuça… Leia matara-o!

Não podia ficar naquela sala. Tinha de fugir.

A luz apagou-se. Fiquei cega por momentos. Pisquei os olhos furiosamente. Já sabia os limites da sala e na escuridão divisei os vultos das fêmeas, as paredes, um cone ténue de luminosidade. Levantei-me, empurrei quem estava no meu caminho, coloquei-me debaixo de uma pequena abertura junto ao teto. Estava aberta, podia ser uma via de fuga. Precisava apenas de um apoio para alcançá-la.

Uma criatura anã puxou-me pelo braço, a guinchar receosa. Percebera as minhas intenções. Mandei-a calar e empurrei-a. Olhei em volta, não vi nenhum guarda, nem nenhum dos seres enormes que me tinham raptado. Aparentemente, o caminho estava livre e havia uma janela. O que as impedia de tentarem fugir? Nada me impediria, pensei decidida, mesmo estando descalça e usando um vestido comprido.

Descobri perto um cubo avermelhado coberto por um manto sujo. Serviria. O cubo era pesado mas consegui arrastá-lo e colocá-lo debaixo da janela. O medo e o horror davam-me forças e eu era uma mulher prática, lembrei-me, que gostava de usar calças. Era curioso como ia colecionando essas memórias, preenchendo a alma, dando-lhe volume. Se no início a noção que tinha de mim era a de um desenho bidimensional, garatujado num pedaço de papel, percebia que com cada experiência ia acrescentando volume, transformava-me em alguém tridimensional.

Pulei para o topo do cubo. O parapeito da janela ficava a alguma distância. Teria de fazer um derradeiro esforço.

A sala animou-se de repente. As criaturas colocaram-se todas de pé ao mesmo tempo, num fragor monstruoso de centenas de patas a bater contra o soalho. Um clamor gigantesco elevou-se, composto por urros, apitos e berros. Olhei para trás e vi a mole disforme avançar sobre mim, para impedir-me de escapar. Haveria uma espécie de solidariedade entre as escravas, que as tornava ainda mais cativas. Nenhuma poderia fugir daquele sórdido destino, o controlo era feito pelo grupo. Era essa a explicação para não existirem guardas a vigiá-las.

Apertei os dentes. Eu lutaria, era diferente. Não pertencia àquela sala.

Alcancei o parapeito e, à força de braços, icei-me para cima deste, com a ajuda de um joelho. Do outro lado da janela abria-se um pátio entre degraus e torres esculpidas em rocha. A altura até ao chão era considerável, mas do lado esquerdo existia um pequeno patamar que dava acesso a uma escadaria. Mãos aflitas puxaram-me o pé que ainda estava pendurado. Apertei mais os dentes, deslizei do parapeito para o patamar, sacudi a outra perna para me libertar das mãos das escravas que tinham ousado tentar puxar-me de regresso ao grupo. Quando pisei o primeiro degrau escutei, atrás de mim, o silvo agudo dos raptores. Tinham acabado de entrar na sala e descoberto a minha fuga. As fêmeas calaram-se abruptamente e esse silêncio foi estarrecedor.

Desci as escadas a correr. Não sabia para onde ia, mas haveria de encontrar uma saída naquele labirinto. Movi-me pelo desejo de escapar. Dobrei uma esquina, estaquei. Duas criaturas vinham na minha direção. Tornei a subir as escadas de onde tinha vindo e, ao chegar à janela de onde me escapulira, saltei para uma das torres.

Os silvos enchiam o ar. Precisava de descer, não de subir, precisava de alcançar o solo. Uma vez no deserto, correria. Deslizei pela torre, pulei para um pátio, tentei alcançar uma nova escadaria que me levaria para um nível inferior, mas não tive tempo. Duas criaturas mostravam-se perto demais.

Os passos multiplicavam-se. Estavam por todo o lado. Nunca pensei que fossem tantos e que eu fosse tão importante para eles. Talvez o investimento nas fêmeas compensasse o incómodo de procurarem por uma fugitiva, ou simplesmente considerassem que não havia possibilidade de fuga e a perseguição fosse um ato misericordioso, pois ninguém conseguiria sobreviver para além do complexo, no vasto deserto. Pensei seriamente em desistir.

Tornei a apertar os dentes. Que se danasse a lógica! Eu iria fugir.

Duas criaturas corriam na minha direção, sem me verem contudo, que me escondia atrás de uma esquina. Descobri uma fenda na rocha suficientemente grande para me esconder, atirei-me lá para dentro. Recolhi os pés descalços para dentro da cova, cobri a boca com as mãos para evitar gritar. As duas criaturas apressadas surgiram no pátio, pararam de repente. Espalmei as costas contra a rocha mas não conseguia esconder-me mais, não havia fundura suficiente.

Prendi a respiração. Se não respirasse, seria mais difícil encontrarem-me. Não sabia até que ponto a audição das criaturas era apurada. Estavam paradas junto à abertura da fenda. Via-lhes os mantos castanhos e as suas mãos verde-escuras a segurar em bastões de ferro arredondados nas extremidades.

Fechei os olhos, quase a explodir com falta de ar. Quando os voltei a abrir, as duas criaturas já não estavam diante da abertura da fenda. Suspirei de alívio. Agora, bastava esperar, sair do meu esconderijo, prosseguir com a fuga. Estranhei não ouvir o barulho ensurdecedor dos passos e dos silvos agudos dos meus perseguidores. Franzi a testa, apoiei as mãos no chão. Arranhei-me numa aresta afiada.

Dois braços arrancaram-me bruscamente da fenda. Gritei horrorizada. O choque de ter sido apanhada tão rapidamente deixou-me trémula e doente. Os meus joelhos fraquejaram, puxaram-me para cima com um safanão para me obrigar a ficar em pé. Uma das criaturas cheirou-me, a outra olhava para mim com desprezo.

Trocaram palavras entre eles que não decifrei, um idioma alienígena composto por silvos e estalidos. Arrastaram-me pelo pátio, na direção de uma porta negra.

Os dois sóis punham-se no horizonte, atrás de uma das torres e o céu tomava um tom poético de carmim e dourado. Caía a noite em Tatooine e senti que tudo estava perdido. Talvez tivesse sido sempre escrava e aqueles momentos de convalescença na companhia de um cavaleiro Jedi altruísta que me salvara fossem um mero intervalo numa vida penosa e agreste. Era uma explicação para perceber as criaturas perto da casa naquele dia. Procurariam por mim, pela cativa que lhes escapara no desfiladeiro de Vitra. Era uma explicação para aquele vestido e para os pés descalços. As escravas não tinham o direito a usar sapatos.


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Notas finais do capítulo

A Cleo acha que é uma escrava. Concordam com ela?
A situação dela não está fácil. Tentou escapar e foi capturada. O que lhe vai acontecer agora?

Próximo capítulo:
Pedir ajuda.



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