A Criação da Luz escrita por André Tornado


Capítulo 39
Recomeço


Notas iniciais do capítulo

"Ela resplandecia, transfigurada por uma alegria indizível, com o rosto brilhando, belo como uma luz."
in A Papisa Joana, Cross, D. W., Editorial Presença, 2000



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Os sons entravam de mansinho nos meus ouvidos surdos. O meu corpo, até ali adormecido, ia captando aos poucos as sensações perdidas, a alma reencaixava-se no invólucro perecível. Estava gelada e impotente. Rocei os dedos na terra para que me prendesse definitivamente à realidade. Foi assim que recobrei os sentidos. Pestanejei para habituar os olhos à luz, tossi para desimpedir a garganta, levantei-me aturdida, apoiando-me numa árvore.

A flutuar perto de Luke Skywalker estava uma esfera metálica com uma cintura de orifícios brilhantes que disparavam dardos luminosos que eu devia evitar com o sabre de luz. Se falhasse, a descarga elétrica causava-me um desmaio.

— Não o faças! – protestou.

Vacilei, apertei o punho metálico da espada desligada.

— Não te escondas de mim, padawan. Assim não te poderei ajudar.

Tentava normalizar a respiração, recolocar o estômago no sítio, deixar de vê-lo como um vulto difuso, fixar a esfera que ainda se desfocava e retomar o exercício.

— Deves deixar fluir a Força. Deixa que seja ela a comandar-te. Não penses!

Nunca julgara que os feixes que a bola flutuante disparava me fizessem perder a consciência. No início, quando começara a intersectá-los com a lâmina do sabre, parecia que iria ser fácil. Conseguira antecipar e aparar todos, ganhara confiança e o orgulho cegara-me. Provocara a esfera que Luke comandava, crendo que se um dos feixes me acertasse não iria causar grande dano, apenas uma queimadura aparente, uma tontura momentânea e pouco mais. Enganara-me.

— E no entanto, estás a pensar. Foges da minha perceção propositadamente, escondes a tua aura quando tínhamos combinado que não o fizesses enquanto durassem os teus treinos. O que mudou?

Estava tão dormente que não me apercebia de que me tinha posto a sorrir. Ele não gostou.

— Ouviste o que te acabei de dizer?

Não me apetecia responder.

Os dias estavam a ser cada vez mais longos, com exercícios ininterruptos e esgotantes. Pouco falávamos. Ele ordenava e eu obedecia. À noite, comíamos em silêncio e eu ia deitar-me para acordar na alvorada seguinte, quando começava a correr até que ele me mandasse parar. Os dias eram compridos mas, por cada dia que passasse, o tempo seria mais escasso e mais precioso. Kram mantinha-se inexplicavelmente inativo.

Liguei o sabre de luz, finquei as botas na relva amarelada.

— Estou preparada – anunciei rouca.

— Ouviste o que te acabei de dizer?

— Ouvi, mestre. Desculpa. Não o faço voluntariamente.

Ele não aceitou a minha explicação, mas preferia continuar com o treino a teimar naquela questão.

— Deixa a Força fluir… Se o fizeres, deixas de te esconder voluntariamente. Como posso guiar-te se não me deixas sentir-te?

— Vou tentar… Vou fazê-lo, mestre.

A esfera começou a disparar os seus dardos luminosos. Eu brandia o sabre de luz deflectindo-os, fazendo-os explodir nos troncos das árvores, abrindo pequenos buracos escuros. A velocidade dos disparos aumentava e diminuía, sem um ritmo preciso para que eu não decorasse um eventual padrão. Servia-me dos olhos, mas também do instinto.

Luke avisou-me:

— A Força, padawan! Sente a Força! Estás a perder a concentração.

Lancei a espada luminosa por cima de mim. Varri o espaço à minha direita com um movimento largo que aparou dois disparos e cortou uma árvore. Desprotegi o flanco esquerdo. Um dardo acertou-me nas costas e caí de borco, completamente apagada.

Ao despertar, tinha sangue na boca. Limpei-me atrapalhada por ter ofendido o nariz na queda. Esfreguei os dedos nas calças e, aos tropeções, ergui o sabre de luz. Acenei com a cabeça.

— Se usasses a Força, não te acertavam.

— Eu uso a Força…

Ele semicerrou os olhos.

— Não estou a usá-la como devia de ser – emendei constrangida. – Mas os dardos não deviam ser tão fortes. Porque estão com a potência para me aturdirem ao ponto de me fazerem perder os sentidos?

— Ao saberes que os dardos te fazem dano é um estímulo para que completes mais depressa este exercício.

— Eu acho que não. Ao saber que os dardos me magoam, distraio-me, pois tenho de dividir a minha atenção entre evitá-los e afastá-los.

— Num combate real existe muita coisa a acontecer, ao mesmo tempo. Terás de dividir a tua atenção.

— Isso é muito difícil!

— O quê?!

Assustei-me com o berro dele. Corrigi a falar muito depressa:

— Não foi isso que eu quis dizer… Eu queria dizer que ao ter a atenção dividida não me consigo concentrar no que é importante, que é defender os dardos. Não devia dispersar-me com distrações.

— Estás com medo dos dardos.

— De que eles me possam ferir, sim…

— Num combate real vais ter o mesmo medo. Sabes que te podes ferir ou morrer quando enfrentas o teu adversário. Não te podes deixar absorver pelo medo. A Força ajuda-te a focares-te no que é importante, padawan. Confia na Força!

— Sim, mestre. Eu confio na Força.

— Não quero palavras. Quero ações! Quero sentir-te a confiar na Força.

Nova sessão de disparos. Quando me apercebi estava deitada de costas a inspirar o ar em golfadas. O céu verde rodopiava por cima da minha cabeça. Tinha uma perna entorpecida, dobrada num ângulo estranho. Massajei a coxa, verificando que não tinha nada partido. Pus-me de pé a coxear, segurei no punho metálico do sabre com ambas as mãos, mas os meus dedos tremiam tanto que falhei a encontrar o botão para ligá-lo. Luke observava-me.

— Porque é que insistes em torturar-me? – lamentei-me.

— Julgas que Kram será meigo contigo?

— Poderás ficar surpreendido…

A réplica servira de arma, uma tentativa tosca para atingi-lo com a mesma dor que me estava a causar. Uma pequena provocação que satisfazia o meu ego ferido. Devia ter ficado por ali, para que eu saboreasse a ínfima vitória e retomasse o exercício que eu, lamentavelmente, não estava a cumprir com o mínimo que me era exigido, mas ele não deixou que ficasse aquela insinuação a pairar entre nós, mais acutilante do que a esfera metálica que utilizava para me atingir e ensinar.

Os ombros dele descaíram. Apertou a cana do nariz com dois dedos.

— Existe alguma coisa que me queiras contar? – suspirou, cansado.

— Sobre o quê?

— Sobre Kram.

Eu não tinha nada para contar sobre Kram e, no entanto, tinha tudo. Se o desafiara, teria de ir até ao fim naquela luta, sabendo que poderia perder. Recordei-me do meu encontro no salão negro.

— Não acredito que Kram seja um homem – comecei. – Veste-se com um hábito que lhe molda a figura para que pareça humanoide, mas, por debaixo dos panos, não existe! Não é alguém físico, palpável, que podemos ferir e fazer sangrar. É pura energia! O Jedi que o venceu, nos tempos antigos, descobriu-o e foi por esse motivo que conseguiu derrotá-lo. Outra das evidências que suportam esta teoria é o facto de ter sido encarcerado numa prisão de gelo. O frio intenso teve como propósito conter a energia e arrefecê-la ao longo das eras. O que significa que Kram está longe do seu poder inicial, perdeu-o no tempo que passou fechado na sua cela gelada. Logo, acredito que podemos derrotar O’Sen Kram sem temer o seu imenso poder de outrora. Ele sabe isso e quer escondê-lo de nós. Recolheu-se ultimamente pois sabe que estou a treinar-me ao teu lado, quer recuperar os seus atributos imensos de antes, também se deve estar a treinar aproveitando-se deste intervalo que lhe estamos a proporcionar. Daí estar demasiado sossegado… Estou convencida de que ele não será tão terrível como estamos a antecipar, mestre.

Luke pensou no que lhe acabara de dizer.

— Hum… Podes ter razão.

Uma dedução que foi surgindo à medida que a ia formulando. Não fazia ideia de onde tinha saído toda aquela clarividência. Talvez a Força me tivesse ajudado, talvez tivesse vindo do mestre Eilin empenhado em manter o seu lago turvo, talvez Kram me tivesse revelado o segredo involuntariamente nos breves minutos que passara comigo, talvez estivesse embebido no conjuro do feiticeiro de Ekatha como um mecanismo de defesa se tudo o resto falhasse. Mas fazia sentido, um estranho e prometedor sentido.

Algo se moveu atrás de mim. Liguei o sabre de luz e, no mesmo movimento, dei meia volta, baixei a lâmina faiscante. Cortei um arbusto voador ao meio. Choviam os folículos sobre mim quando levantei novamente a lâmina e evitei uma saraivada de dardos luminosos. Lancei um braço e empurrei a esfera que se desligou ao embater numa árvore, rebolando até às botas de Luke Skywalker.

Fora um ataque perfeito que eu enfrentara com a mesma perfeição.

Ele sorriu-me.

— Estás a aprender, minha querida padawan.

Endireitei as costas. Julguei que me fosse admoestar por ter anulado a esfera.

— Obrigada, mestre.

— O medo está a guiar-te… Da próxima vez quero que te libertes desse medo. Lembra-te, leva-te ao lado negro se o deixares conduzir-te.

— Tenho de reprimir o medo?

— Deves eliminá-lo de vez das tuas ações.

— Foi com medo que fiz o que acabei de fazer?

— Não totalmente… A Força esteve contigo. Compreendes o que te acabei de dizer, o que acabaste de fazer?

A sensação de maravilha não me era inteiramente intelegível. Reagira de acordo com o que julgara mais correto para a minha autopreservação e para escapar da dor. Fora instinto, impulso, o pulsar quente da pedrinha negra que estremecia no meu colo.

Agarrei no pendente, percebendo que tinha ali um aliado inesperado. A doçura do seu bater anunciava-me que estava no caminho certo, que podia vencer a barreira imensa que me separava da minha transformação final e definitiva.

— Sim, mestre.

Luke movimentou dois dedos, a esfera subiu, acendendo a cintura de orifícios por onde disparava os dardos. Ergui o sabre de luz, mais confiante, menos apegada aos meus preconceitos, crente na Força, embalada no palpitar da pedrinha negra.

Os meus treinos recomeçaram e nunca mais nenhum dardo me atingiu.


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Notas finais do capítulo

Os treinos da Cleo recomeçaram com intensidade e exigência, ela não se queixou nem protestou, decidida a manter a sua relação com o cavaleiro Jedi num nível aceitável de repeito e de apoio mútuo. Afinal, eles precisam um do outro para derrotar o inimigo que ameaça a galáxia.
Ela formulou uma teoria sobre O'Sen Kram - estará próxima da verdade? Kram não é alguém físico, mas um ser construído de energia pura?
A esfera usada neste capítulo para os treinos da Cleo é parecida àquela com que Luke se treinou, na Millenium Falcon, orientado por Obi-Wan Kenobi. Só que aqui os dardos luminosos estavam mais fortes e provocavam mais do que um simples choque elétrico...

Próximo capítulo:
O apelo na escuridão