A Criação da Luz escrita por André Tornado


Capítulo 18
Inquebrável e imprevisível


Notas iniciais do capítulo

"Pela primeira vez na sua vida, tinha poder de decisão sobre a presença deles. As criaturas fugiam quando ele se aproximava."
in A Rainha do Palácio das Correntes de Ar, Larsson, S., Oceanos, 2009



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Para além de ser um copiloto improvisado e o meu protetor, a criatura dos lagos Kendon que respondia pelo nome de Iko era também um construtor. Fora ele que erigira o abrigo onde iria morar em Luyta, na sua companhia, de acordo com as indicações do mestre Eilin. Uma casa prefabricada com três divisões, disfarçada entre as árvores, numa elevação de terra de onde se podia avistar a clareira permanentemente iluminada. A primeira divisão, mais ampla, tinha uma mesa e dois bancos metálicos, uma bancada com armários por baixo e um tapete que cobria a totalidade do soalho. A segunda divisão, mais pequena, com uma janela discreta, era um quarto mobilado com uma cama e três prateleiras vazias na parede contígua à porta. A terceira divisão, à qual se acedia através do quarto, era uma casa de banho. Apesar do aspeto austero e simples, um estranho contentor imposto à natureza sombria do planeta, a casa era bastante confortável, aquecida e bem isolada, abafando os ruídos exteriores dos animais noturnos que pululavam nos arredores.

O quarto pertencia-me, por conseguinte a casa de banho também, assim me indicou Iko pacientemente, empurrando-me ao de leve nas costas. Seria lógico, não iria regatear a cama, mas também não me importaria de dormir no tapete que me pareceu suficientemente fofo para me aconchegar o corpo no sono que ansiava. Ainda tive a tentação de cair e adormecer no sítio da queda, mas pensei no colchão macio e obriguei as minhas pernas a mais um esforço. Entrei no quarto aos tropeções, carreguei num botão lateral e a porta deslizante fechou-se. Escutei Iko a estender-se no tapete, grunhindo de satisfação. Depois, deixei-me mesmo cair, mas sobre a cama.

Adormeci imediatamente.

Despertei num sobressalto e soergui-me.

Estranhei o lugar e saltei da cama em pânico. A janela mostrava-me a névoa branca a envolver os troncos escuros das árvores da floresta húmida, como se do lado de fora morasse o pesadelo que estava a imaginar dentro daquele quarto. Esfreguei os olhos. Senti a cara pegajosa. Entrei na casa de banho e lavei-a com água abundante. Não me limpei. Por cima da bacia redonda estava um pequeno espelho e olhei para mim. As gotas escorriam lentamente pela pele e pingavam na água da bacia. Se antes não me reconhecia, agora não queria reconhecer-me.

A aparência era a de uma mulher, jovem, perfeitamente normal, com feições agradáveis, olhos sinceros, provavelmente feliz. A uma observação mais atenta ver-se-ia a mágoa que existia abaixo da superfície, a sombra discreta que a fazia distinta de qualquer outra mulher da mesma idade.

Abandonei a casa de banho. Despi a capa e dobrei-a, colocando-a em cima da cama. Sentei-me, cruzei os braços e pus-me a contemplar a janela. Não conseguia dormir mais e nem sabia precisar se teria descansado como devia de ser. Pelo menos teria descansado o que o meu corpo massacrado exigia, pois já não sentia necessidade de prolongar o sono.

Havia demasiada coisa que devia organizar mentalmente e não podia perder tempo.

Na outra divisão, Iko dormia a sono solto, roncando de vez em quando. Tinha como missão proteger-me, mas não devia de ter nenhuma ligação sobrenatural comigo ou sentiria as minhas alterações de humor. Podia pensar que fora escolhido por causa, eventualmente, desse tipo de capacidade extrassensorial, mas a realidade não seria assim tão elaborada. Ficara com o posto por ser impressionante fisicamente e por ser capaz de esmagar ossos, como fizera com os infelizes soldados durante o meu salvamento. Seria um monstro básico.

Sorri com a ironia. Chamava a criatura de monstro, quando eu seria uma monstruosidade potencialmente maior. A tristeza que me tolhera quando descobrira a verdade sobre mim abateu-se sobre os meus ombros e comecei a tremer. Descruzei os braços, assentei os punhos crispados sobre a coberta amarrotada.

Naquele momento, só me apetecia desaparecer.

A ideia não era de menosprezar. Se eu desaparecesse, deixava de existir um grande problema. O cavaleiro Jedi enfrentava-se diretamente a O’Sen Kram sem a minha intervenção e venceria, após uma dura e cruel batalha. Mas Kram podia criar uma outra Cleo, recomeçar o ciclo de eventos sem o percalço de Tatooine e tudo estaria perdido, sem que o meu sacrifício tivesse valido a pena.

Se me esforçasse, se buscasse para além do manto de comiseração que vestia para esconder essa verdade feia que morava no meu âmago, percebia que o que eu sentia antes não se tinha alterado – continuava a mesma mulher que acordara sem memória na casa do cavaleiro Jedi no planeta do deserto vermelho. Curiosa, voluntariosa, independente, que gostava mais de calças do que de vestidos.

Porém, não me queria esforçar. Era mais fácil entregar-me à lamentação.

O mestre Eilin tentara fazer-me ver que eu era uma criação como todas as outras do Universo, apenas tinha sido criada de um modo diferente. Tinha medo de aceitar a anormalidade como regra, pois sê-lo-ia apenas para justificar a cura do meu amor-próprio magoado. Nunca justificaria a minha inclusão no mundo humano, sempre artificial, forçada, como os androides que conviviam com as pessoas, que estavam no mesmo plano mas que não pertenciam a esse plano. Uns degraus acima ou abaixo, não importava o patamar – importava, simplesmente, a pertença.

Onde é que eu me encaixava? Em que dimensão? Estaria mais próxima dos androides ou dos monstros, como Iko, que sabiam comunicar e que demonstravam alguns sentimentos muito similares aos dos humanos? De que raça era eu?

Talvez o maior choque fora saber que era uma criação de O’Sen Kram. Talvez aceitasse melhor ser uma criação de um opositor derrotado de Kram. Um idealista que o quisera combater sem ter o poder suficiente para o eliminar e que inventara uma arma potencialmente infalível – um humano fabricado com as mesmas capacidades especiais sobre a Força. Seria mais compreensível saber que eu não estava do mesmo lado de O’Sen Kram. Que entre mim e o senhor do trono negro continuava a existir, como existia quando o antigo transportador imperial de Skywalker estava a ser capturado, uma rivalidade baseada no simples facto de que eu pertencia ao Bem e ele ao Mal.

Não era assim, todavia. Eu também pertencia ao Mal e o mais caricato é que não me sentia diferente. Olhei para as minhas mãos, as mesmas mãos que contemplara quando o mestre Eilin fizera a revelação. A fronteira entre essas duas noções antagónicas, o Bem e o Mal, era demasiado fácil de transpor. Nem era necessário sentir nada de especial, ou experimentar uma metamorfose no espírito que nos conduzisse a uma mudança radical. Simplesmente… era. O importante era reconhecê-lo e desejar sinceramente mudar a nossa natureza interior, de modo a que ficássemos encaixados num ou noutro mundo, ou numa área cinzenta balançado entre ações de bondade e de perfídia.

Seria eu capaz de enfrentar e eliminar Luke Skywalker, sem qualquer misericórdia ou remorso?

Se aturasse nesse pensamento, honestamente a resposta seria não. Não havia nada que me ligava a O’Sen Kram, ainda que fosse teórica e efetivamente o meu progenitor, e havia muitas pequenas coisas que me ligavam a Luke Skywalker. E essa ligação improvável nascera da tal sucessão de eventos em Tatooine que ainda constituíam um mistério, o último dos meus mistérios. O que me acontecera nesse planeta, antes de me terem largado inconsciente no desfiladeiro de Vitra, para que tudo fosse diferente do que Kram planeara? Quem teria sido o responsável por esse monumental logro que desafiara a autoridade inquestionável de Kram? Manipulado pelo insuspeito mestre Eilin, mas ainda assim alguém cabalmente imputável por ter alterado, ainda que fosse por um suspiro, os destinos da galáxia.

Iria descobri-lo e estar encafuada naquele quarto, protegida por um monstro simpático e confortada pela segurança proporcionada pelo minúsculo deus, não me conduziria a nenhuma resposta. Continuava a existir a urgência de salvar Luke Skywalker e surgira ainda uma outra, a de enviar um aviso a Coruscant, por via da senadora Leia Organa Solo, relatando as intenções de conquista de O’Sen Kram, apoiado por antigos colaboradores do Império Galáctico.

Entreabri uma fresta da porta e espreitei para a sala de entrada da casa. Os olhos habituaram-se rapidamente à penumbra e vislumbrei o corpo maciço de Iko a dormir, estendido no tapete, a cobrir grande parte do chão, barrando-me a saída pela porta principal. Descartei essa hipótese imediatamente, a janela estreita do quarto teria de servir.

Voltei a vestir a capa, apertando-a debaixo do queixo. Tateei a parede junto à janela e encontrei um relevo que explorei, de seguida, com as unhas. Não consegui abrir a possível tampa do mecanismo, apesar de ter arranhado com bastante empenho. Frustrada com a resistência do painel dei-lhe um murro e este afundou-se com um silvo. A janela abriu-se, recolhendo-se verticalmente. Uma língua de névoa derramou-se do parapeito para o interior do quarto, como uma cascata de água gasosa, acompanhada de uma aragem fria. Uma luz vermelha acendeu-se junto ao teto e começou a piscar, indicando que a temperatura amena do compartimento estava a baixar drasticamente.

Estremeci com a possibilidade de o alarme reproduzir-se na sala ao lado e fazer despertar o monstro cinzento, mais do que com o frio que subitamente entrou ali. Não me podia demorar.

Analisei a abertura. À primeira vista não jurava que caberia ali, mas não me alonguei em grandes medições. Alcei uma perna, passei-a pelo parapeito. Puxei a capa que ficara para trás e pu-la do lado de fora. Contorci-me e espremi-me, sustive a respiração para passar pelo caixilho gelado. Ouvi o som de tecido a rasgar-se, não me detive. Quando senti um pé no chão, puxei pela outra perna e, quando dei por mim, estava a rebolar na terra molhada da floresta. Olhei para o quarto escuro, para a casa silenciosa. Nada bulia, o ambiente quieto apenas perturbado pela luz vermelha intermitente.

Voltei costas ao meu abrigo, rastejei por algum tempo, depois levantei-me e desatei a correr pela floresta, sem olhar para trás. O meu rosto e as minhas mãos gelavam rapidamente à medida que avançava, mas não abrandava o ritmo. Teria de me afastar de Iko, despistá-lo, enganá-lo ou seria capturada pelo monstro.

Não sabia se o que estava a fazer era imprevisível, de acordo com os padrões do mestre Eilin. Desconfiava que não. Conseguia imaginá-lo desperto, pois que um deus jamais adormecia, rodeado das suas plantas viçosas, a olhar para o lago por onde via os caminhos da galáxia, a ver-me a mim daquela vez, numa correria louca pela floresta de Luyta, a abanar a cabeça e a murmurar desalentado que eu não o surpreendia. Que eu estava a agir exatamente como ele esperava que agisse, inconsequente e teimosa, guiada pelo enorme defeito humano de me empenhar em tarefas estéreis.

Eu pensava diferente e, por isso, justificava as minhas ações com o desconhecimento das consequências mais alongadas no futuro daquela minha decisão. O que eu sabia era que o meu aviso serviria para colocar Coruscant em alerta e em preparativos para uma guerra iminente, que serviria para salvar o cavaleiro Jedi que, tal como vira na cela, agora que era capaz de compreender essa visão, continuava aprisionado num emaranhado metálico que o impedia de comunicar com a irmã através da Força, dizer-lhe que ainda estava vivo e que era tudo uma armadilha. Se o que eu fizesse, em detalhe, iria levar a outro caminho, este sim, imprevisto no lago clarividente do mestre Eilin, já era um começo e também pensava nisso, como segunda justificação para as minhas ações.

Cheia de esperança, ainda acreditava que nem tudo estava perdido.

Mesmo que aquela minha fuga não coubesse nos padrões de imprevisibilidade do mestre Eilin.


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Notas finais do capítulo

A Cleo decidiu não ficar à espera dos acontecimentos, mas provocar os acontecimentos. Vai tentar salvar Luke Skywalker e enviar uma mensagem a Leia Organa Solo sobre a ameaça de Kram.
Decisão sábia... ou arriscada? Ou as duas coisas?

Próximo capítulo:
Um aliado.



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