O Grande Inverno da Rússia escrita por BadWolf


Capítulo 56
Natal


Notas iniciais do capítulo

Olá,


O cap saiu um pouco mais atrasado do que desejava, mas por uma boa razão:

Por razões técnicas, optei por postar o último capítulo hoje e cancelar a postagem no sábado de Natal. Portanto, sim: esse cap é o último e está colossal. Meu recorde. Espero que não fiquem irritados por isso.


Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/688048/chapter/56

Sussex, Inglaterra. Dezembro de 1910.


            Watson esticou as pernas, quando se levantou do vagão do trem. Por sorte, a viagem de Londres à Sussex era curta o bastante para não se permitir cansar, mas ainda assim o médico sentia a fadiga da idade. Era hora de ele admitir que estava envelhecendo.

            -Acho que este será o nosso primeiro Natal em Sussex. – disse Molly, desviando pela primeira vez os olhos de seu livro naquela viagem. Afinal, haviam chegado ao destino.

            -Sim. Diferente dos demais Natais, Holmes fez questão que passássemos este Natal em sua casa desta vez.

            -Holmes, ou Esther? – Molly ergueu uma sobrancelha.

            Watson riu. – Bom, ela é judia. Acho que Natal não tem muito significado para ela. Portanto, penso que a ideia partiu de meu amigo.

            -É verdade, tinha me esquecido desse detalhe. Mas acho que ela está tão acostumada á cultura cristã que acabou absorvendo um pouco do significado dos nossos costumes.

            -Tem razão. – disse Watson, dando o braço à sua esposa para finalmente saírem da composição.

            As meninas pareciam ansiosas em conhecer os filhos de Mr. Holmes. Elas já conheciam Grigori, e ficaram surpresas em saber que ele era filho de Holmes, e ainda mais surpresas quando souberam que o detetive tinha mais um filho, Georgi. Os breves comentários de Watson sobre o menino não bastaram para conter sua curiosidade.

            -Emily, vigie suas irmãs. – pediu Watson à mais velha de sua prole, que tentava conter as duas meninas agitadas. – Espero que Holmes já esteja aqui. Combinamos que ele nos buscaria na estação.

            -Será que ele já trará os meninos com ele? – indagou-se Molly.

            -Não sei. Hum, mas parece que você está curiosa em vê-los... – observou Watson, com diversão. Molly parecia resignada com seu comentário.

            -Ainda não estou engolindo bem essa história. Esther teve um filho, apenas um filho, e volta da Rússia com duas crianças, incluindo aquele menino de rua que seu amigo Holmes andava para cima e para baixo com ele?

            -Molly... – avisou Watson.

            -Duvido muito que esse Grigori seja filho dela. Deve ter sido adotado, isso sim. Adotar um filho de outra. Se eu fosse Esther, não permitiria esse desaforo.

            -Bom, você permitiu um “desaforo” semelhante, quando aceitou se casar comigo sabendo que eu tinha uma filha com outra mulher. – retrucou Watson, deixando Molly momentaneamente sem palavras.

            -I-Isso é outra situação. – disse a senhora, abalada.

            Watson riu. –Será mesmo, Molly? Enfim, não vamos comentar sobre isso quando estivermos por lá, está bem? Guarde suas impressões para si. Se bem que eu espero que esse Natal faça suas impressões mudarem... Vamos nos apressar, acho que Holmes está nos esperando naquele automóvel.



§§§§


            As expectativas de Molly não se concretizaram. Ela precisou aguardar Holmes conduzi-los no automóvel até sua propriedade em Sussex Downs para conhecer o tal “filho verdadeiro do casal”, uma vez que ela se recusava a aceitar Grigori sob tal condição. Molly ainda enxergava o menino como aquele moleque de rua atrevido que fizera indelicadezas como chupar os dedos durante o jantar em sua casa.

            -Mr. Holmes, você ainda têm o pônei? – perguntou Emily, animada. Tinha ido até a fazenda de Holmes apenas algumas vezes, mas guardava dos detalhes do lugar com afinco.

            -Sim, ele ainda está lá. O problema é que ela está prenha. Não creio que esteja em condições de ser montada.

            -Oh, é mesmo?

            -Mamãe, o que é prenha? – perguntou uma das pequenas meninas, curiosa.

            -Gravidez de animal, minha filha. – respondeu Molly, um tanto impaciente. Detestava a vida do interior. Nessas horas, ela dava graças a Deus por Watson amar Londres e não trocá-la pelo campo, nem mesmo quando se aposentasse.

—Será que o filhote de pônei irá nascer enquanto estivermos aqui? Eu nunca vi o parto de um animal antes...

—Não se anime com a possibilidade, Emily. – alertou Watson. – Assistir a um parto é algo deveras forte para uma menina de sua idade.

—Não sou uma boneca de porcelana, papai. Acho que um pouco de sangue e placenta não irão me assustar. – retrucou a menina. De repente, um estalo veio à mente do bom doutor.

—Espere... Como sabe da placenta?!

Enquanto dividia suas atenções entre a estrada e as discussões de seu velho amigo com sua filha rebelde, Holmes não pôde deixar de rir – internamente, pois não queria provocar John Watson. Ele estava realmente feito, tendo uma filha tão perspicaz quanto Emily.

E pobre do homem que desejasse despojá-la.

A julgar pela animação de Grigori ao saber que Emily os estaria visitando, ele só esperava que não fosse seu filho...

—Olha, chegamos! – disse Emily, deixando suas irmãs animadas e fazendo Holmes sair de seus pensamentos temorosos sobre o futuro.

—Que bela casa, Mr. Holmes!

—Mas acho que não chega ser tão grande como a casa do tio Alfred... – disse uma das meninas, causando desgosto em Molly.

—Meninas, é deveras deselegante fazer tal comentário. – retrucou a mulher, fazendo as meninas se recolherem instantaneamente.

—Desculpa, Mr. Holmes. – desculparam-se as meninas, em uníssono, fazendo Emily rolar os olhos com a reação sempre tão submissa de suas irmãs. Sem dúvida, nenhuma delas tinha o seu temperamento.

Holmes ajudou as meninas a descerem do automóvel, bem como a Watson a recolher as malas, um volume considerável dado a estadia de três dias e também o fato de a família de seu amigo ser numerosa. Logo, a própria Esther apareceu, tendo acabado de descer as escadas correndo, para ajudar com a bagagem.

—Esther! – exclamou Molly, abraçando a amiga. – Quanto tempo!

—Oh, Molly! – disse Esther, retribuindo o abraço.

—O que houve com o seu cabelo? Parece ser um corte moderno, como das revistas parisienses! – disse a moça, após analisar sua amiga. – E ele também não está tão loiro como antes, se me permite observar.

—Oh, bem... Uma tentativa frustrada de tingi-lo. Mas voltei atrás. – disse Esther.

—Você fica melhor com seu cabelo natural. Mas adorei o penteado. Gostaria de ter tamanha coragem de usá-lo. – disse Molly, fazendo as duas adentrarem à uma conversa feminina que deixou de ser interessante a Holmes e Watson.

—E como está Georgi, meu caro Holmes? – perguntou Watson, não como amigo, mas como médico.

Nas últimas semanas, Watson largou sua casa em Londres para ir até Sussex Downs, atendendo a um pedido de urgência de seu amigo. A carta não dizia a real natureza do problema de Georgi, mas bastou minutos para o doutor suspeitar de que o menino enfrentava algum tipo de abstinência. Watson ficou chocado em saber tudo que passara Georgi na Rússia, e ainda mais horrorizado ao saber que o menino, de tão pouca idade, já era viciado. Apesar de seu pasmo, Watson fez bem seu trabalho de médico. Desde que ajudara Holmes a se libertar do vício em cocaína e morfina, Watson pesquisou sobre o assunto, encontrando na Escola Austríaca boas descobertas sobre o tema. No entanto, o doutor jamais imaginou que teria de aplicar seus conhecimentos em um menino de dez anos.

—As crises passaram, Watson. Mas sempre tem o temor de reaparecerem.

—Entendo. E profundamente. – disse o médico, aludindo aos antigos problemas de Sherlock Holmes. – Uma pena Esther ter de passar por tal coisa. Novamente.

Holmes engoliu em seco.

—Acho que o pior desta história é que Georgi sequer tem consciência do que realmente se passa com ele. E contar sobre o remédio está fora de cogitação, ao menos por agora.

—Não, Holmes. Deveria ser “ao menos para sempre”. Se ele souber que as sensações experimentadas em sua infância advinham da cocaína, não tenha dúvidas de que ele irá atrás dela, não importa quão maduro esteja.

Holmes precisou ceder.

—Você tem toda a razão.

A conversa dos dois adultos foi prontamente interrompida – para alívio de Holmes – pela chegada de Grigori e Georgi, que estavam imundos e repletos de lama, notou o detetive. Como era esperado, desagrado passou pelo semblante de Molly ao ver os dois meninos parecendo dois leitõezinhos.

—Meninos, retirem os sapatos! Vocês estão imundos e irão sujar toda a casa! – exclamou Esther, sendo prontamente obedecida. – O que houve? Por onde estiveram?

—Grigori deixou o Carpeado fugir e ele foi para o lamaçal. Estávamos dando um banho nele. – explicou Georgi, com o rosto enegrecido de lama.

—Precisam ser mais cuidadosos, e da próxima vez não vão atrás do cavalo. Ele pode ir para longe da fazenda. Me avisem, e deixem que eu o localize. – pediu Holmes.

—Tudo bem. – disse Grigori.

—Aliás... Não irão cumprimentar nossos convidados? – questionou Holmes, animando os meninos imediatamente, que se aproximaram de Watson e sua família.

—Mrs. Watson, você já conhece meu filho Grigori, mas permita-me apresentar meu outro filho, Georgi. Ah, Georgi, creio que um aperto de mão em tais... Circunstâncias não seja o mais adequado. – notou Holmes, ao ver que Georgi havia estendido sua mão à Molly, que estava horrorizada diante da possibilidade de ter de apertá-la.

—Vão se banhar, meninos. Em breve serviremos o almoço.

Os meninos assentiram, subindo as escadas com pressa. Watson não pôde deixar de rir com toda a situação. Em seus anos de parceria, ele jamais imaginaria seu amigo, Sherlock Holmes, como um pai de família, pai de dois meninos de tal idade e também dono de uma fazenda no interior da Inglaterra. A vida poderia ser mesmo surpreendente.

E por falar em surpreendente...

—Eu não acredito. – balbuciou Watson, pausadamente e praticamente boquiaberto. Sem entender a reação de seu amigo, Holmes voltou seus olhos para o foco de sua abismação. Sim, estava explicado. Finalmente, Irene Adler e seu filho Peter Norton haviam aparecido. Mais algumas horas e Watson teria chegado ao mesmo tempo que a famosa “Mulher” que ele escrevera em seus contos.

—Não vá deslocar o maxilar, Dr. Watson. – disse Adler, com simpatia.

—Mas que mulher é esta? – indagou Molly para Esther. Ao perceber que Molly estava desgostosa, agindo como uma típica esposa ciumenta quando diante de uma eventual ameaça a um casamento, Esther não pôde conter algumas risadas.

—Irene Adler.

—O quê?! – disse Molly, sem qualquer discrição. – Como pôde, Esther?! Permitir a presença dessa... Dessa... Dessa pessoa em sua própria casa?!

—Definitivamente não é o que está pensando... – alegou Esther, em vão.

—Como não? Essa mulher é uma destruidora de lares, uma...

—Eu não consigo vê-la como uma ameaça, ainda mais depois de saber que ela ajudou Holmes a embarcar na Rússia, incógnito. O problema é que seu querido esposo Watson simplesmente deu uma... “Floreada” no caso da Boêmia, e só. Os dois jamais tiveram qualquer coisa, acredite em mim.

Bom, à exceção da semana passada, em que algumas taças de vinho a mais fizeram Holmes confessar que os dois se beijaram para que ele pudesse escapar de uma orgia de atores... Não sei até que ponto isso é verdade, mas ele me pareceu sincero e mesmo arrependido.

—Mas quem é o sujeito ao lado dela? Seria mais um marido para a coleção?

Ester riu. – Não, não. Este é o filho dela, Peter Norton.

Peter Norton. Em tese, filho único de Adler e de seu primeiro casamento – oficial – com Godfrey Norton. Ao menos, era nisto que todos acreditavam, menos Esther – e algo lhe dizia que Holmes também estava nesse grupo. A aparência de Peter, que já estava na casa dos trinta anos, era imponente, melhor dizendo majestosa. Seu cabelo loiro e de um brilho natural e único, seus olhos azuis que mais pareciam duas pedras preciosas apresentavam total contraste com a aparência de Irene Adler, provavelmente remetendo ao pai. Em suas andanças como espiã, Esther teve a oportunidade de ver consideravelmente muitos retratos de monarcas e nobres ao longo da Europa, e Peter remetia à ela certa... “Familiaridade” que ela não sabia explicar.

Pois então, eis aí a razão para, no caso da Boêmia, a repentina decisão de Irene Adler de simplesmente desistir da chantagem e fugir da Europa casada com o próprio advogado.

Provavelmente, pelo único bem – e o mais precioso, ela decerto descobriu mais tarde – que o calhorda do Rei da Boêmia lhe deixou.

Um filho.

—Ele tem presença, isso é inegável. – disse Molly.

—Sim, ele tem mesmo. – concordou Esther, guardando para si suas próprias conclusões. Ela adoraria saber tal coisa do próprio Holmes mais tarde. Bom, oportunidades não faltariam. Por causa do Natal e da casa estar cheia de visitas, Holmes acabou precisando ceder o quarto de hóspedes no qual estava dormindo nos últimos tempos para a família de Watson e voltar a dormir com Esther, ao menos por algumas noites.


§§§§



            As suspeitas de Watson se mostraram infundadas. Apesar de Esther ser judia e o Natal não pertencer de modo algum à doutrina judaica, ela gostava da festividade. Achava esta uma data especial, onde reencontros aconteciam, pessoas se uniam e demonstravam seu afeto, seja desde um belo presente ou mesmo uma refeição bem feita. Certos pratos típicos foram, é claro, cortados, mas ainda restavam boas opções. Tendo a culinária uma paixão, Esther ajudou a preparar os principais pratos com Mrs. Morton, que já parecia mais acostumada a ter a presença de sua “patroa” à cozinha. No fim, ela percebeu, não era só uma riquinha mimada que desejava se meter em territórios que desconhecia, mas alguém que tinha lá sua experiência e que desejava colocar em prática, ou mesmo sentir-se útil, já que a vivência em Sussex não lhe proporcionava nada em termos de trabalho além das abelhas. Isso não seria problema para muitas mulheres inglesas, mas não para Esther.

            Por fim, as práticas culinárias de Esther resultaram em um belo banquete posto à mesa por Mrs. Morton, para grande satisfação de todos os presentes. Formavam o prato principal um peru com vegetais e batatas assadas com gravy (N.A.: Molho feito com caldo de carne), vinho e, é claro, suco de fruta para as crianças. O aroma daquela refeição apetitosa logo preencheu o ar da sala, deixando os mais entusiasmados, como Grigori e Watson, deixarem escapar um suspiro de expectativa.

            Antes que pudesse cortar o primeiro pedaço, Esther levantou-se da mesa.

            -Mrs. Morton, por que não se senta conosco?

            A senhoria parecia, é claro, desconcertada. Em suas décadas de experiência como governanta, jamais recebera tal convite. Adler, Watson e Holmes pareciam animados, enquanto Molly trazia um olhar mais precavido. Esther voltou-se para a amiga, e logo deduziu que ela, simplesmente, não achava seu ato o mais decoroso. Sem dúvida, ela deveria pertencer ao número grupo que separava empregados e patrões como castas. Este era mais um aspecto a respeito de Molly que assustara Esther. E de pensar que ela a considerava um bom partido para Watson... Talvez ela tivesse se enganado. Ou, quem sabe, o casamento bem-sucedido socialmente e seus problemas com Rose Willians transformaram Molly em uma típica esposa amargurada. Ela sentia-se mais inclinada a acreditar na segunda hipótese.

            -Vamos lá, Mrs. Morton. Sente-se.

            -Mas... Mr. Holmes, é que...

            Holmes franziu os olhos, mas ainda mantendo o semblante bem-humorado.

            -Não seria de bom tom reserva-la a uma ceia fria quando tanto nos ajudou. Por favor, a senhora é nossa convidada esta noite.

            Ainda embaraçada, Mrs. Morton acabou por se sentar.

            -Isso faz me lembrar de nossa ceia em Baker Street. – alegou Watson. -  Lembram-se?

            Holmes, Esther e Molly assentiram com a cabeça.

            -Era a única refeição do ano que Mrs. Hudson aceitava fazer conosco à mesa. – observou Holmes, com o semblante entristecido.

            -Pessoal, deixemos de lado tais tópicos. Ainda temos uma ceia para começar.

            À medida que os primeiros pedaços do peru eram cortados, as três famílias sentadas à mesa – Holmes, Adler e Watson – conversavam sobre uma coisa ou outra a respeito de suas vidas. Peter Norton, filho de Irene Adler, contou sobre o porquê de ter escolhido a Medicina ao invés de seguir os passos de seu pai e enveredar pela Advocacia. Watson logo animou-se ao constatar que não era o único médico presente. Holmes de imediato já deduziu que os dois trocariam figurinhas sobre a profissão a noite toda, a julgar pela simpatia mútua entre seus dois convidados.

            Irene Adler comentou que faria uma última turnê pela América, local onde sua carreira começou, e que depois ela se aposentaria, “desta vez para sempre”, disse em um tom bem-humorado. Quando perguntado sobre o que faria, Adler mencionou que se afastaria da vida dos palcos, e que pensava em investir seu dinheiro em Moda. Mencionou dois costureiros refinados de Paris, e contou sobre seus planos de trazê-los para a América, no que ela chamou de “grande empreitada da modernização das roupas femininas das americanas”. Curiosamente, Molly acabou por notar que Irene Adler não era lá o “bicho-papão” devorador de maridos que ela pensava. Esther ficou mais aliviada por vê-la mais receptiva durante a conversa com a cantora, participando até com alguns comentários.

Para a sobremesa, Esther reservou o "Christmas pudding", um bolo recheado com frutas secas e brandy, que ela pôs a mesa desculpando-se de antemão se o bolo não estivesse do agrado de todos, resultando em “bobagem”, ou “duvido que esse bolo tenha outra menção senão elogios”.

            Observando a mesa praticamente cheia, graças a ocupantes de três famílias unidas naquele dia curiosamente por Sherlock Holmes e sua incomum profissão de detetive consultor privado, Esther Katz Holmes sentiu-se feliz, como há tempos não sentia. Não era a euforia momentânea da felicidade, mas um contentamento por sentir que tudo – quase tudo – estava no lugar que ela desejava. Infelizmente, seu pai não pôde ir porque estava ocupado com sua recente instalação em sua nova residência, fora que o Natal jamais teve lá muito significado para o velho Abraham Katz. Apesar da ausência de seu pai, Esther estava agora na Inglaterra, com seus filhos – sendo um legítimo e o outro um presente da vida – e, por mais que sua felicidade não estivesse completa, ela sabia que tinha tudo que precisava.

 

 

§§§§§§§§§§



            Uma melodia harmoniosa e bem executada havia tomado a Mansão Holmes. Já passava das três da manhã daquela madrugada de Natal quando Irene Adler executava ao piano os versos de uma polca festiva, enquanto Watson e Molly dançavam animadamente, seguidos de Peter e Esther. Para abismação de Holmes, o jovem Peter convidou Esther para dançar e não a largou mais. Não que o detetive se importasse, afinal o próprio detestava dançar, mas já estava incomodando-o ver os dois dançando de modo animado sem parar. Apesar disso, era bom ver Esther sorrindo de modo espontâneo outra vez.

As crianças passaram a noite correndo por todos os lados da casa, brincando de pique-esconde. Outra coisa que dava alegria a Holmes era ver sua casa preenchida por risadas de crianças. Com uma taça de vinho à mão, o detetive pôs-se a pensar tristemente em como tudo poderia ter sido diferente. Que aquelas risadas poderiam estar ecoando em sua residência há muito tempo. Não só risadas, mas também choros. O choro de um tombo. Lágrimas de cólicas no meio da madrugada. A primeira palavrinha, dita aos trôpegos.

Ele perdera muita coisa.

—Você está parecendo um defunto no meio de uma festa. – ouviu Holmes de Irene Adler. Sem que percebesse, a polca já havia acabado e a cantora estava ao seu lado, dando um descanso às mãos. Esther, Molly, Watson e Peter, sentados ao sofá enquanto tinham uma conversa animada, com o semblante corado pela agitação de terem dançado há pouco.

—Estou só... Reflexivo.

—Dizem que o Natal faz isso com as pessoas. – acrescentou Adler. – Você nem mesmo dançou com sua esposa.

—Acho que ela encontrou um melhor dançarino. Seu filho é um pé de valsa.

Adler riu. – Tem razão. Peter teve uma boa professora. Meu filho nasceu sem o dom da Música, acredita? Tentei por anos ensiná-lo a fazer um acorde no piano, ou a cantar algo sem semitonar uma oitava, mas foi impossível. Ele não herdou meu dom. Talvez tenha sido uma benção a ele.

—Benção?

—Sim. Assim ele pode focar em sua carreira. Se meu filho nascesse com uma voz um pouco bonita, ou soubesse tocar Beethoven, não tenha dúvidas de que eu transformaria em um artista, apesar de ter minhas dúvidas se isso realmente o faria feliz. Mas falando em felicidade... Algo me diz que o problema de vocês não consiste em um mero pisar descuidado nos pés.

Holmes ficou em silêncio, usando um gole em sua taça de vinho como pretexto para sua falta de palavras. De um modo desconhecido, Adler parecia compreender o que estava se passando entre eles. Claro. Ela tinha experiência em relacionamentos amorosos, especialmente os fracassados. Deveria ter faro para isso.

—Nós não estamos mais juntos. – admitiu Holmes.

—Isso deu para perceber.

—Eu sei que não há mais qualquer chance de voltarmos a ser o que éramos. Mas o que eu desejava, ao menos, era a amizade dela. Não só porque dói receber seu desprezo e vê-la com raiva de mim, mas pelas crianças. Será questão de tempo até que elas percebam nossas brigas.

—Entendo. Mas aposto que você teve sua boa parcela de culpa nisso, não?

Holmes nada disse, se limitando a dar um mover de ombros em concordância. Era tolice dizer o contrário. O próprio Holmes foi o grande culpado por sua desgraça.

—Eu sabia.

—Se está aqui para me recriminar e...

Holmes estava prestes a lançar mais um sermão desnecessário sobre Adler, mas para salvação da cantora, o próprio se interrompeu ao ver Esther se mover. Ele a ouviu balbuciar algo sobre “uma dor de cabeça” para Watson, para justificar sua ausência repentina. Como bom médico que era, Watson tentou sondar a respeito ou indicar um remédio, mas sua própria esposa o alertou de que suas ações de médico não eram necessárias. O que perturbava Esther, sabia Holmes, era algo que um analgésico não seria capaz de anestesiar.

—Acho que vou seguir sua esposa e também vou me recolher. Foi bom passar o Natal com sua família, Mr. Holmes. Há muito tempo eu não tinha um Natal tradicional.

—Mesmo? Pensei que achasse brega tal estilo de festividade.

—Não quando é verdadeiro e mútuo. – disse, com um sorriso. – Uma boa noite, Mr. Holmes. E se deseja meu conselho: tome uma atitude mais sensata desta vez.

Pouco a pouco, os convidados de Holmes foram se retirando, cada um subindo aos seus aposentos. As crianças precisaram cessar com as brincadeiras para ir dormir, porém estampado no rosto de cada uma delas estava a promessa que o dia seguinte reservaria um dia cheio. Sozinho sentado ao sofá, Holmes se felicitou ao ver Georgi como semblante mais feliz, enturmado em meio a Grigori e as meninas de Watson. Nem de longe lembrava a criança que sofria convulsões por causa da abstinência à cocaína.

Logo a casa tomou-se de silêncio. Com os pés próximos do calor da lareira, Holmes voltou seus olhos ao relógio. Passava das cinco da manhã. O céu já havia tomado uma cor alaranjada, com os primeiros raios de sol a surgir no horizonte. Talvez fosse bom subir e tirar, ao menos, um rápido cochilo. Definitivamente, ele não estava mais com idade para enfrentar uma noite em claro e estar bem disposto no dia seguinte.

Ao se levantar, Holmes acabou se deparando com Esther, descendo as escadas.

—Esther? Pensei que estivesse dormindo... – ele disse, surpreso em vê-la.

Esther apenas negativou com a cabeça. Trazia um olhar sombrio, percebeu Holmes. Ao vê-la caminhar em direção à varanda da casa, Holmes teve uma estranha sensação de que ela desejava conversar com ele, mas não estava disposta a fazer o convite. A relação dos dois estava abalada, mas Holmes ainda era capaz de interpretar pequenos gestos de sua esposa.

Caminhando ao lado dela, Holmes sentiu-se no dever de questioná-la.

—O que houve, Esther? Por que está tão triste? Aconteceu alguma coisa?

Mal terminada sua pergunta, Holmes tomou-se de horror ao ver que Esther estava retirando seu anel de casamento.

—Não... – ele balbuciou, horrorizado. – Você não pode...!

—Isso não deveria ser surpresa a você, Holmes. Nosso relacionamento está indo de mal a pior. E não cometa o erro de dizer que ele se arruinou quando você agiu friamente em relação ao rapto de nosso filho. Você sabe tão bem quanto eu que algo grave já estava acontecendo, mas ocultamos. E por que fizemos isso? Porque tínhamos uma... Atração quase irresistível um pelo outro.

Holmes percebeu que Esther havia corado. Ele pensou em dizer algo, mas ela o impediu de falar outra vez.

—Por Adonai, tudo que gostaria era de ter pelo menos um décimo da disposição de Miss Adler para falar desse tipo de assunto, mas tudo bem, eu farei o meu melhor... O fato é que nosso relacionamento era completamente baseado em uma excitação muito forte pelo perigo de sermos flagrados ou pegos por alguém. Vivíamos uma mentira, e vivíamos muito bem assim. Pois este é o problema. Enganamos praticamente a todos ao nosso redor, e por que? Por momentos roubados, desculpas esfarrapadas e mentiras bem construídas. Quando tudo isso acabou, quando finalmente pudemos viver algo verdadeiro, pleno, as coisas começaram a desmoronar. Por mais difícil que isso seja, acredito que a única coisa boa que a maldade do Duque Ivanov fez a nós dois foi cessar de uma vez com nosso jogo traiçoeiro de mentiras a que submetíamos Watson, Mrs. Hudson e todos ao nosso redor.

—Esther...

—Eu não terminei. – pediu Esther, colocando o anel sobre a murada da varanda. – Meu pai está vivendo em Devon agora. O governo britânico cedeu-lhe uma considerável indenização, creio que sabe disso.

Holmes apenas assentiu, deixando que Esther continuasse.

—Esta semana, ele me telefonou. Disse que ficaria muito feliz que eu morasse com ele em sua fazenda, disse que ali haveria espaço o bastante para mim... E as crianças.

Os olhos cinzentos de Holmes se arregalaram.

—Não... – foi tudo que o detetive pôde balbuciar.

—Seria estupidez de minha parte viver aqui, quando nosso casamento claramente acabou. Eu tenho dois filhos para cuidar. Fui expulsa da Agência e gastei todas as minhas economias procurando por meu filho. E lamentavelmente, não tenho um lar confortável para levar as crianças, e nem é de meu desejo submetê-las a pobreza, não depois de tudo que elas passaram. Pensando no bem estar de Grigori e Georgi, eu irei leva-los para viver com meu pai, até que eu possa me estabelecer. Quem sabe, retornar às salas de aula, algo que sempre gostei.

Holmes engoliu em seco. Então, era oficial. Esther não desejava mais estar casada com ele. Não desejava partilhar do mesmo leito, principalmente. O detetive estremeceu ao ver determinação no olhar de Esther. Sem dúvida, sua decisão seria definitiva. E para completar, ela queria levar as crianças.

—Você não pode fazer isso comigo, Esther! Eu não quero viver longe dos meninos!

Esther não conseguiu esconder sua surpresa ao ver o detetive claramente agitado, mas ela permaneceu firme.

—Você pode sempre me visitar quando quiser...

—Eu não quero ser um visitante. Quero ser o pai deles. E se o seu problema é o fim do casamento e lhe incomoda viver nesta casa...

—Não é nada disso, Sherlock, é que... – tentou interromper Esther.

—Por favor, Esther. Permita-me continuar. Eu poderia dizer que minha casa sempre estará de portas abertas a você, mas ela também é sua.

Esther riu secamente. – Não diga asneiras, Sherlock. Eu não contribuí nem com um mísero xelim para que você conseguisse esta casa.

O detetive arqueou uma sobrancelha. – Creio que está enganada. Você contribuiu, e muito, para a existência dessa casa. Se você não tivesse me ajudado a combater o meu antigo vício pela cocaína, pela solução 7%, eu provavelmente estaria morto. E essa casa foi comprada com o dinheiro que recebi resolvendo caso do Primeiro Ministro que... Enfim, é algo sigiloso, mas que me rendeu uma quantia generosa o bastante para comprar este imóvel. Por favor, não vá embora. Nem leve as crianças.

Esther balançou a cabeça, em descrença.

—Eu já tomei minha decisão.

Ambos ficaram em silêncio, contemplando o nascer do sol surgindo nas verdes planícies de Sussex Downs. Holmes, ainda tentando digerir o fato de que Esther as crianças sairiam de sua vida em breve. O detetive, que já tinha um sólido relacionamento com Grigori – que até mesmo o chamava de pai – e havia começado a se afeiçoar a Georgi, agora teria de levar outra vez uma vida solitária em Sussex Downs. Uma vida que, o detetive temia, ele já havia desaprendido a ter nos últimos meses.

O silêncio foi apenas cortado pelo riso de Esther, que imediatamente chamou a atenção de Holmes.

—O que houve?

—É curioso como eu, uma judia, acabo por parecer valorizar mais o Natal do que você, crescido em uma Igreja Anglicana. Enfim. Sei que tecnicamente o Natal já acabou, mas há algo que gostaria de te entregar.

Esther retirou do robe um envelope lacrado. Holmes o tomou nas mãos, não entendendo o que ela queria com isso. Porém, antes que o detetive pudesse abri-lo, Esther o deteve, pousando sua mão em seu antebraço. Seu olhar estava ainda mais entristecido.

—Eu escondi algo muito importante de você, Sherlock. Espero que me perdoe por isso. Honestamente, eu desejava levar este segredo para o túmulo, mas... Eu sei que, no fundo, você não se perdoa por não ter conseguido deduzir qual dos meninos é seu filho legítimo. Sei que apesar de sua curiosidade, você não seguiu com o tópico adiante, não sei se para não trazer mais desavenças para dentro de casa, ou porque... Ou porque você ainda nutre esperanças de voltarmos a ser um casal. Eu te recriminaria por isso, mas agora sinto que seria muito tola se o fizesse. Isso faz parte da sua natureza. Isso faz parte de quem você é. Quando nos conhecemos, eu me apaixonei por um homem chamado John Sigerson. Um homem cujos aspectos de sua personalidade – a personalidade de Sherlock Holmes – foram propagados, mas outros foram suprimidos. Tudo por um disfarce, um subterfúgio para a sobrevivência em uma época difícil. Levei anos acreditando que Sherlock Holmes e John Sigerson consistiam em uma mesma pessoa, mas agora vejo que não são. E este foi o maior erro do nosso casamento.

—Esther... – balbuciou Holmes, ao verificar o remetente do envelope.


Elizabeth Smith

Falcon Street, 24

Fareham, Hampshire - UK


—Quem é esta Elizabeth Smith, Esther?

—Elizabeth Smith é a mulher por quem eu procurei por todo este tempo. Pois imagine você, que a mãe dela me mandou uma carta, dizendo que a filha havia retornado para casa. Ela também me contou o que aconteceu a ela. A pobre mulher acabou por se apaixonar pelo jardineiro dos Morozov e passou a viver com ele, negligenciado os próprios filhos na Inglaterra. O problema é que o relacionamento deles provou-se ser só uma aventura passageira que não deu certo e ela acabou por voltar para casa, envergonhada por ter deixado os filhos à mercê com sua mãe, sem a devida assistência. Ela voltou arrependida, e acabou confessando tudo. Que quando na Rússia, percebeu que havia indiretamente compactuado em um crime, mas que era tarde demais para voltar atrás.  Na carta, a mãe dela disse que havia dado meu endereço à ela, e que pediria para que Elizabeth contasse sobre meu filho nela...

Holmes percebeu que a voz de Esther se embargou.

—Então... Ela contou sobre nosso filho nesta carta?

—Sim. Não apenas contou, mas revelou sua verdadeira identidade. Depois que recebi esta carta, a mãe dela me procurou dizendo que Elizabeth cometera suicídio. Dentro deste envelope, está o que você sempre quis obter, Holmes. A única chance de saber o nome do seu filho, do seu verdadeiro filho. Algo muito mais fidelíssimo que suas deduções poderiam fornecer. Eu comecei a ler a primeira página, mas parei imediatamente ao ver que Elizabeth estava contando tudo e que não tardaria em seu relato até que ela revelasse se meu filho recebeu dos Morozov o nome de Grigori ou Georgi.

—Você não leu a carta completamente?

Esther apenas negativou com a cabeça, silenciosa. Seus olhos já brilhavam pelas lágrimas.

—Por que?

—Porque a vida tomou um filho de mim, e no entanto, me devolveu dois. Duas belas crianças, inteligentes que sem dúvida terão um futuro promissor. Eu não poderia estar mais grata por isso, mesmo que eu não saiba qual deles é meu verdadeiro filho. E como te disse antes, Holmes, eu prefiro não saber. Eles são meus filhos e ponto final.

Esther deixou escapar um suspiro cansado.

—Mas quão tola eu fui. Eu estava cobrando de Sherlock Holmes atitudes de John Sigerson. O problema é que John Sigerson não existe. Você existe, Sherlock. O arrogante, genial, meticuloso, inteligente e talentoso detetive londrino. Não posso cobrar amor de alguém que limou isso de sua vida no momento em que escolheu ser o melhor de sua profissão. Por isso, não posso cobrar que você ame igualmente as crianças. Porque o amor está além da sua compreensão.

Holmes estava descrente, horrorizado com suas palavras. Esther estava, é verdade, esperando por maiores retratações de sua parte, discursos como “eu mudei”, “eu estou diferente”, mas, para seu total estarrecimento, Holmes tomou uma atitude impensável. Sem qualquer hesitação, ele rasgou o envelope, deixando-a boquiaberta.

—O que você está fazendo, Holmes?! – balbuciou Esther, incrédula. Sem dizer qualquer palavra, o detetive retirou do bolso de seu terno sua caixa de fósforos. Com um fósforo aceso em sua mão, o detetive soltou-o sobre o envelope, que logo se tomou pelas chamas.

—Eu a amo, Esther. E se eu posso te amar, eu também posso amar os nossos filhos.

Holmes sentiu que Esther estava prestes a retruca-lo, mas a resposta dela jamais veio. O som de um automóvel a irromper pela madrugada imediatamente atraiu a atenção de ambos. Quem poderia chegar àquela hora, em plena madrugada de Natal?

—Esteve esperando por alguém?

—Não. Mycroft está na Suíça e o seu pai está em Devon. – disse Holmes, caminhando até a entrada de sua casa.

O farol aceso do automóvel fornecia uma boa iluminação para aquela madrugada, permitindo o detetive reconhecer, pela sombra projetada, pelo menos três homens. Dois armados, vestindo sobretudos pretos e um chapéu angulado de modo a impedir reconhecer o rosto.

—Oh, por Adonai! É Mr. Sparks! – assombrou-se Esther, reconhecendo seu chefe entre eles. Um arrepio passou por seu pescoço, ao lembrar se de seu último encontro com ele. Sua voz firme, sua ameaça de expulsá-la se não mais se dedicasse à Agencia. Naquele instante, Esther lembrou-se de tudo que fizera. De seus erros, capazes de leva-la a forca.

Ao percebê-la temorizada, o detetive tentou tranquiliza-la.

—Mycroft não permitiu que você fosse expulsa por Traição.

—Isso mesmo, Mr. Holmes. – disse Sparks, aproximando-se dos dois. – Á época, aceitei o pedido de seu irmão com muita relutância., mas devo admitir que mesmo hoje, vejo que isso teve lá sua utilidade.

—Seja claro, Sparks. – exigiu Esther, causando surpresa no agente.

—Não está em condições de exigir coisa alguma, sua atrevida.

—Meça suas palavras, Sparks! – exigiu Holmes, visivelmente irritado.

—Tudo bem. – disse o agente britânico, retratando-se. – Meus agentes estão mortos. Todos eles. Lembra-se, Esther, de Eugene Barney? Alfred Wilkinson? Donald Phillips? Paul Harrington? Pois bem. Mortos. Perdi um a um em uma operação sigilosa. Não sei o quão atualizado seu cunhado Mycroft a deixou, mas estamos próximos de uma guerra de proporções mundias. Nações e nações pelo mundo estão se movendo silenciosamente. A Paz Mundial está sob um castelo de cartas onde um movimento pode arruinar a Existência da Humanidade. Sei que pareço dramático demais a um homem de minha profissão, mas é a mais pura verdade.

Sparks exalava medo, percebeu Holmes. E isso era incomum para um agente de alta patente do Governo Britânico. O que quer que esteja acontecendo, era algo a se temer. Numa fração de segundos, Holmes se lembrou dos meninos. Dez anos. Não queria vê-los a viver uma guerra de grandes proporções. E curiosamente, a mera possibilidade de perde-los o assustou.

—Ainda não entendo onde Esther se encaixa nisso.

—Em muitas lacunas vazias. – respondeu Sparks, silenciando os dois. O silêncio fúnebre foi interrompido pela própria Esther.

—Acaso não está sugerindo que... Que eu...?

—Perdoe-me. Creio que não fui claro o bastante. Não é uma sugestão, Miss Katz. Ou melhor dizendo, Mrs. Holmes. Isso é uma exigência.

—Mas eu fui expulsa! – alegou Esther, horrorizada.

—Um mero detalhe administrativo.

—“Um mero detalhe administrativo?” Tenho certeza de que o Primeiro Ministro não concordará com esse seu argumento e...

—Na verdade, Mr, Holmes... – disse um homem, impecavelmente vestido, a sair do automóvel. – eu e Mr. Sparks já conversamos sobre isso. Ele tem o meu aval.

Holmes assombrou-se imediatamente, enquanto o sujeito ajeitava sua casaca. Ao lado de Holmes, Esther assistia atônita a interação entre os dois, tentando ainda processar quem era o sujeito.

—Herbert Henry Asquith, 1.º Conde de Oxford e Asquith, e Primeiro Ministro Britânico. – disse Holmes, ainda embasbacado ao ver a autoridade britânica diante de si, em plena madrugada natalina.

—Foi uma pena ter de abandonar a todos em minha Ceia de Natal, mas suponho que estes são os sacrifícios demandados pelo bem de nosso país. Aliás, por falar em família... Seu irmão, Mycroft, manda um abraço cordial. Por sinal, minha ida aqui foi sugestão dele.

Holmes suspirou. Isso era bem típico de Mycroft.

—Eu não vou. – disse Esther, firmemente. – Mycroft se enganou se pensou que eu iria largar meus filhos e me enveredar em uma missão basicamente suicida só porque o Primeiro-Ministro Britânico abandonou o seu banquete para pedir isto de mim.

—Esther...

—Nem que o próprio Rei da Inglaterra batesse à minha porta! Ou se a Rainha Vitória se levantasse dos mortos e pedisse minha ajuda! Não! Minha resposta é não!

O Primeiro-Ministro parecia desolado. Sabendo seu lugar, Holmes preferiu se manter alheio à conversa, interferindo apenas se necessário. Por fim, após um momento de reflexão, Sparks voltou a falar.

—Acha que isso se trata de algum jogo de egos, Miss Katz?

—Não, Mr. Sparks. Isso se trata de meu dever de mãe.

—Belas palavras, Miss Katz. Serão estas as palavras que usará quando se despedir dos filhos na estação do trem, quando eles estiverem fardados e partindo para o campo de batalha?

—Não ouse ameaçar o futuro dos meus filhos... – avisou Esther.

—Não é uma ameaça, Miss Katz. É uma constatação dos fatos. Há uma guerra por vir. Pode começar mês que vem, ou daqui a dez anos. Por isso, pergunto-me: será que, até lá, seus filhos estarão em idade o suficiente para servir à Inglaterra?

—Não coloque nos ombros de Esther a responsabilidade de uma guerra, Mr. Sparks. Isso é deveras desumano. – pediu Holmes.

—Concordo, Mr. Holmes. Posso não culpa-la se uma Guerra começar. Mas em que posição estará o Império Britânico quando ela começar? A recusa de sua esposa em voltar à ativa será determinante para isso.

Esther estava à beira das lágrimas.

—Maldição... Chamem outra pessoa, não eu.

—Não tem outra pessoa, Miss Katz. Os agentes veteranos foram mortos. Suspeitamos de uma organização alemã nas mortes. A mesma que tentamos identificar. Em vão. Há agentes em formação, mas nenhum com a experiência necessária para desmantelar o grupo. Dói admitir isso, mas... Precisamos de você.

Foi a vez do Primeiro-Ministro falar.

—Soube com grande detalhe de todos os problemas que passou nos últimos anos. Que esteve na Rússia atrás de seus filhos e que conseguiu resgatá-los com grande heroísmo. Pois peço que apele ao seu sentimento maternal e aceite nossa proposta. Esta organização alemã está roubando informações governamentais altamente sigilosas e matando qualquer um que atravesse seu caminho. Permitir que esses facínoras continuem a agir nos colocaria em séria desvantagem quando a Guerra começar. Pense nos soldados que morrerão porque colocarão os pés em campo de batalha para enfrentar um inimigo que sabe demais. Pense nas viúvas e órfãos que eles deixarão.

Atordoada, Esther tentava formar uma frase de retruca, mas as lágrimas a impediam. Voltando seus olhos para as mãos dela, Holmes notou que elas tremiam. Esther estava, claramente, à beira de uma crise de nervos.

—Eu aceito.

Ao contrário do que os presentes esperavam, a resposta final não veio de Esther. Mas de Sherlock Holmes. O Primeiro Ministro e o Agente Sparks pareciam embasbacados.

—Mas você sequer é um Agente Britânico.

—Esther também deixou de sê-lo há muito tempo.

Com Mr. Sparks sem palavras, foi a vez do Primeiro Ministro retrucar, permitindo-se pigarrear levemente antes de fazer seu comentário.

—Sem ofensas, mas não creio que isso seja tarefa de sua alçada, Mr. Holmes. Os livros podem dizer maravilhas de seu trabalho como detetive, mas...

—Os livros floreiam muito o meu trabalho, sir. Eu sou melhor do que o relatado por Arthur Conan Doyle.

—Belas palavras, mas há outro pormenor. O senhor é um civil. Esther Katz é uma Agente Britânica formada e experiente. Sempre soube dos riscos implicados em sua tarefa pela Coroa, ao contrário de você. Pois se pensa que tudo que fará será resgatar uma planta ou os planos de um submarino, está redondamente enganado, Mr. Holmes. Você está prestes a tentar desmantelar uma organização internacional...

—Nada que já não tenha feito antes. - interrompeu Holmes.

—Sim, mas há quantos anos? Quinze, vinte anos? Os tempos mudaram consideravelmente desde Moriarty, Mr. Holmes. Além disso, o senhor está aposentado. E decerto, desatualizado. Além disso, esta tarefa demanda tempo. Meses, quem sabe, anos. Demanda também disposição para roubar, extorquir e mesmo assassinar, coisa que sei que não tem estômago. Além disso, há um risco...

Neste momento, o Primeiro-Ministro e Sparks se entreolharam.

—Que risco? – questionou-se Esther. Sparks exalou profundamente.

—Essa é uma missão escala 8, Esther.

Ao ouvir as palavras de seu antigo chefe, Esther sentiu seu chão desaparecer diante de seus pés, mas em segundos ela conseguiu recuperar a compostura.

—Entende? Não podemos ter um civil a desempenhar este papel.

—Por Adonai... Precisa ser mesmo de escala 8?

Confuso com a discussão entre Sparks e Esther, Holmes sentiu-se obrigado a interferir.

—Alguém pode me explicar o que diabos significa “escala 8”?

—Uma missão suicida, algo como “queime depois de ler”. – explicou Sparks. – Suas ações não passarão despercebidas pelo Governo que será prejudicado por elas. Para evitarmos complicações diplomáticas, o senhor, Mr. Holmes, terá de literalmente desaparecer. Se sobreviver em sua tarefa, coisa esta que já acho deveras impossível, jamais poderá colocar seus pés na Inglaterra novamente, nem mesmo rever seus parentes e familiares ou entrar em contato com eles. Será considerado oficialmente morto, sendo bem sucedido ou não em sua missão. Terá de abrir mão de sua própria vida e identidade. E agora? Ainda está disposto a aceitar nossa proposta?

Holmes parecia imerso no mais profundo de seus pensamentos. Lembrou-se de sua discussão com Moriarty, durante o caso que ele considerou o mais extremo e complicado de sua vida. Lembrou-se de suas palavras, durante a discussão acalorada que teve com o Professor em seu apartamento em Baker Street. Disse que, para destruí-lo, aceitaria sua destruição de bom grado, pensando no interesse do público. Ao olhar para os olhos assustados de Esther, aquela situação não era muito diferente. 

—Mais de uma vez coloquei-me à disposição do Império Britânico para resolver assuntos de extrema delicadeza, e acredito que o problema que propõe não é diferente de nada que já não tenha enfrentado.

Foi a vez de o Primeiro-Ministro ficar sem palavras. Por fim, Sparks voltou a si.

—Ele atende a todos os requisitos necessários para a tarefa. – decretou Sparks. – Tens minha palavra.

—Ótimo. – disse por fim o Primeiro-Ministro, pondo de volta sua cartola. – Bom saber que chegamos ao fim do impasse, por mais que o resultado tenha sido surpreendente. Mr. Holmes, eu te dou trinta minutos para ir à sua residência buscar o que é essencial e fazer as devidas despedidas. Pretendemos retornar imediatamente à Londres e depois... Quem sabe onde mais.

Holmes assentiu, voltando para casa com pressa, tendo Esther a caminhar ao seu lado. O detetive preferiu não fazer qualquer observação. Correu para a mala e juntou algumas roupas e sapatos. Colocou também algumas ferramentas de seu trabalho como detetive. Sua lupa, seu kit de arrombamento e tabaco, além de quatro tipos diferentes de cachimbos.

Sendo acompanhado por Esther, o detetive sentiu intensa vontade de ver os meninos, por mais que fosse tarde da noite. Abriu a porta e encontrou Grigori e Georgi deitados à cama.

—Estão dormindo profundamente. – observou Esther.

—Georgi, sim. Mas não Grigori. Percebe aquilo? São saliências no lençol provocadas propositalmente por um travesseiro.

—Mas então, onde ele está?

Carregando sua pequena mala, Holmes respondeu apenas com uma risada. Após descer as escadas, o detetive pôs a mala em um canto. Aproximando-se da lareira, arrastou uma das cortinas. Para surpresa de Esther, atrás da cortina estava ninguém menos que Grigori, vestido em pijamas, a devorar um prato outrora repleto de biscoitos, já praticamente vazio.

—As filhas do Watson ficarão deveras desapontadas quando perceberem que Papai Noel deu meia-volta ao perceber que o prato estava vazio.

O menino sorriu, com os dentes sujos de chocolate.

—Elas colocaram bombons. Não pude resistir.

—Entendo. – disse Holmes, sorrindo. De repente, para surpresa do menino, o detetive simplesmente o abraçou fortemente. Atônito pelo gesto incomum, tudo que Grigori pôde fazer foi retribuir, recostando sua cabeça ao ombro do detetive e deixando o cheiro de tabaco que sempre exalava de suas roupas a impregnar suas narinas. A proximidade com o detetive fez o menino perceber que ele estava arfando. Se ele não soubesse que se tratava de Sherlock Holmes, Grigori poderia dizer que ele estava chorando.

—Porque a mala?

—Eu... Terei de fazer uma viagem.

—Para onde você vai? – perguntou o menino.

—Ainda não sei. Mas não será longe.

—Posso ir com você? – ele perguntou, com inocência.

—Será muito entediante. – explicou Holmes. – É melhor que fique e faça companhia ao seu irmão e à sua mãe. Eles precisarão de você. Prometa-me que será obediente com ela, sim?

—Tudo bem, eu prometo. – assentiu o menino. Partindo o abraço, o detetive mexeu levemente no cabelo negro de Grigori, deixando-o ainda mais desalinhado. O menino pouco se importou. Segurava em sua mão o prato de biscoitos enquanto observava o seu pai sair.

Antes de abrir a porta principal de casa e reencontrar os agentes britânicos, Holmes sentiu Esther a agarrar levemente em seu braço.

—Eu te perdoo. – foi tudo o que escutou.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Nossa...


Pois é, pessoal. O que acontecerá com o Holmes agora, que simplesmente abriu mão de sua identidade para embarcar em uma missão praticamente suicida? Será que ele irá morrer? E não se enganem, há uma boa possibilidade de que isso aconteça. Portanto, vão se preparando.


Saltaremos alguns anos no Epílogo na próxima postagem (quarta, dia 28) e teremos os desfechos dos demais personagens.


Desde já, um Feliz Natal a todos! Obrigada por terem acompanhado essa fic por tanto tempo. E reviews são sempre bem-vindos, vocês sabem.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Grande Inverno da Rússia" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.