O Grande Inverno da Rússia escrita por BadWolf


Capítulo 55
Marcas e Sequelas


Notas iniciais do capítulo

Olá,


Finalmente, o cap deste fim de semana. Um dos últimos, para fechar a história.
E não se esqueçam das notas no final, tenho um comunicado importante a fazer.

Boa leitura!



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Sussex Downs, Inglaterra. Outubro de 1910.


            A estrada de chão, que cortava os vales verdejantes de Sussex Downs, era percorrida pelo automóvel Daimler com grande vagareza. A região passara por chuva recentemente e a estrada estava um tanto escorregadio, além do fato da motorista, Esther, ser bastante cuidadosa. Mesmo sua presteza ao volante não impedia que o automóvel cambaleasse, fazendo a judia temer que o mesmo se atolasse na lama.

            -Fico impressionado em ver que sabe dirigir um automóvel. – disse Holmes, com diversão enquanto observava Esther manejar o volante.

            -Está impressionado mesmo? Ou chateado porque sou mulher e sei dirigir?

            Holmes riu. – Jamais ficaria chateado por isso. Além disso, eu detesto dirigir. E você, Georgi? O que está achando de Sussex? – perguntou Holmes, silenciando-se ao notar que o menino estava dormindo. Na verdade, a sonolência de Georgi era apenas uma amostra do quão quieto fora o menino na viagem toda. E Holmes sabia o porquê dessa quietude, dessa letargia. Ele sabia que estava chegando a hora de contar a Esther que Georgi era, na verdade, tão viciado em cocaína como ele. O detetive só não sabia como contar.

            -Eu acho que ele está enjoado com a viagem. Afinal, desde que entramos no navio, ele tem estado um tanto desanimado. – disse Grigori, inocentemente.

            -É. – limitou-se a dizer Holmes, resolvendo não se aprofundar naquela conversa. - Veja só, Esther. É esta a casa. Pode estacionar.

            Esther estacionou o automóvel próximo a casa. Holmes a ajudou a descer com as malas, enquanto Grigori acordava Georgi. Ao perceber que finalmente estavam nas terras de Holmes em Sussex Downs, o menino se animou. Logo, ambos dispararam para o estábulo, onde Grigori queria mostrar ao seu irmão os cavalos e éguas que pertenciam a Mr. Holmes. Aproveitando-se da distância das crianças, Esther decidiu se aproximar de Holmes.

            -Georgi tem agido estranho demais. E eu sei que você sabe a razão disso.

            Oh, pensou Holmes. Esther, como sempre, era capaz de ler seus pensamentos. Ele tinha se esquecido dessa sensação estranha de não conseguir manter segredos por muito tempo.

            -Iremos conversar sobre isso mais tarde. – limitou-se a dizer Holmes.


§§§§



            A tal “conversa” demorou a acontecer. Holmes já previa que as agitações de sua chegada e também de sua família culminariam nisso, mas não previa que o casal encontrasse seu momento de paz para conversarem em privado apenas na hora de dormir. Desde cedo, Grigori e Georgi tinham se mostrado agitados, querendo conhecer cada canto da casa e da fazenda, e também animados com a idéia de que cada um teria um quarto só seu, onde poderiam arrumá-lo como bem entendessem, sem a interferência de ninguém. Ainda havia Mrs. Morton a começar a mimar os meninos, preparando doces de todos os tipos, querendo adivinhar o gosto de cada um.

            E por fim, havia também a total falta de ignorância de Mrs. Morton sobre a “separação” entre o casal, que fez a senhoria preparar o quarto para duas pessoas e deixar o agora único quarto de hóspedes desocupado da casa repleto de quinquilharias e poeira, tornando-o próximo de inabitável. Sabendo que era necessária uma conversa séria com a senhoria sobre sua situação, Esther preferiu ignorar que teria de passar aquela primeira noite em Sussex Downs fazendo o papel de esposa de Holmes, acatando sem reclamar que suas malas estavam sendo depositadas lá, no quarto mais espaçoso da casa.

            Aquele foi um dia agitado, de grandes transformações, de modo que a cama se mostrava como uma proposta irresistível de descanso e preparo para o dia seguinte, que ambos sabiam que permaneceria a ser agitado. Mas, para infelicidade do exausto Sherlock Holmes, não era bem assim que pensava Esther.

            -O que você tinha para me contar? – ela disse, sentando-se ao lado de Holmes, já espreguiçado à cama.

            -Essa conversa não pode esperar para amanhã?

—Sherlock...

—Meu amor, eu realmente estou exausto. – disse Holmes, após um bocejo.

—Quando você me chama de “meu amor”, é porque está tentando me dobrar.

Holmes suspirou, derrotado.

—Está bem. – disse, sentando-se à cama. – Você quer saber o que penso do comportamento de Georgi, não é?

—Sim. Eu não consigo reconhece-lo, Sherlock. Ele não é tão quieto assim. Ele deveria estar mais animado, mais contente... Não sei. Será que ele não está gostando daqui, ou da possibilidade de morar conosco?

—Esther...

—Começo a pensar que ele não irá se adaptar à Inglaterra, ou... Ou a me ter como sua mãe.

Após dois minutos em completo silêncio, finalmente o detetive decidiu contar-lhe toda a verdade. Indo até a gaveta, Holmes retirou dali um frasco, entregando-o a Esther.

—O que é isto? Algum remédio? – perguntou Esther, a analisar os comprimidos.

—É a superpílula de Sokolov. Quando estava no Laboratório dele, em São Petersburgo, eu a roubei de sua bolsa. Na época, eu a roubei motivado por uma curiosidade científica, porque estava curioso para saber mais a respeito do que ele estava criando. Hoje vejo que o meu roubo valeu a pena.

—Por que diz isso, Holmes? Georgi não precisará mais se submeter a tal coisa. Deveríamos jogar isso fora.

—Não dá, Esther. Não agora.

—Como?

Após inspirar fundo, Holmes cedeu.

—Há cocaína neste composto, Esther.

Esther arregalou os olhos, levando a mão à boca para suprimir uma exclamação em horror. – Não...

—Sim, Esther. Isso significa que... Isso significa que Georgi é um viciado em cocaína. Talvez, tão viciado quanto eu, senão mais. E tudo que vejo no menino, desde que embarcamos naquele navio, são os claros sinais da abstinência. Por isso ele está assim, tão alterado.

—Ele tomava esse remédio todos os dias.

—Com que frequência? – perguntou Holmes.

—Uma vez ao dia. Nas manhãs, antes do estudo. Diziam que era para estimular o aprendizado. E de fato, as crianças estudavam com grande afinco. Já dei aulas a muitas pessoas, e jamais vi nada igual. Mas ele só tomava esse remédio uma única vez ao dia.

Holmes parecia considerar. – Talvez ele não seja tão viciado como eu presumi. Mas tudo dependerá da quantidade de cocaína presente nesse composto. Amanhã cedo, irei trabalhar no Laboratório para entender melhor essa composição e... O que é isto?!

Um barulho interrompeu a conversa do casal. Parecia ser algo de vidro se quebrando, como um copo ou um vaso. Imediatamente, Esther e Holmes se levantaram da cama e foram ao corredor. Logo ouviram mais barulho, e perceberam que o quebra-quebra estava ocorrendo no quarto que Georgi escolheu como sendo seu.

—Oh não... – sussurrou Esther, em horror. – Será que ele...?

—Acalme-se, Esther. Fique aqui, eu vou verificar. – disse Holmes, abrindo a porta. Ao fazê-lo, Homes ficou estarrecido. Sim, Georgi estava quebrando as coisas no quarto, mas como se não bastasse, ele estava arremessando os objetos contra Grigori, que estava tentando se proteger dos rompantes de raiva do irmão usando a pequena cômoda como proteção.

—Georgi! Pare com isso! Irá machucar o seu irmão! – gritou Homes com o menino, que estava com as gavetas do criado-mudo na mão. Ao ver Holmes, o menino as arremessou contra o detetive, que precisou se esquivar com presteza delas.

—Ele roubou os meus remédios! Eu sei que ele roubou!

—Eu não roubei nada! Eu juro! – se defendia Grigori. Percebendo não haver mais saída, Holmes se aproximou de Georgi e o imobilizou, tomando-o sem a menor gentileza pelo braço e o colocando-o pressionado em suas costas.

—Me solta! – tentava se soltar o menino, bastante alterado.

—Pare com isso, Georgi! Poderá machucar alguém, ou até mesmo a si mesmo! – pediu Holmes, em vão.

—Só porque apareceu depois de anos e anos dizendo que é meu pai você tem o direito de fazer o que bem entende comigo? – esbravejou o menino, transtornado. Apesar de magoado com as palavras de Georgi, Holmes permaneceu a imobiliza-lo, e percebeu que era melhor deixa-lo inconsciente. Com pouquíssimo esforço, Holmes aplicou um golpe “sossega-leão” em Georgi, deixando o menino desmaiado.

—Ele está morto? – perguntou Grigori, assustado. Holmes pôs o menino sobre a cama, enquanto era observado por Grigori, com preocupação.

—Não. Apenas acordará amanhã com uma leve dor de cabeça. Vá dormir, Grigori. Eu e Esther assumiremos daqui. Está bem?

O menino assentiu, ainda assustado, e se recolheu com cuidado para o seu quarto. Logo apareceram Esther e Mrs. Morton, com grande preocupação.

—Ouvi gritos e barulhos. Está tudo bem? – perguntou a senhoria, preocupada.

—Sim, apenas... Desentendimentos de criança, coisa corriqueira, você deve imaginar. – disse Holmes, embora a bagunça ao redor do quarto mostrasse que o problema era bem maior do que isto.

Apenas quando a senhoria terminou de arrumar o quarto, Holmes e Esther puderam conversar. Ele contou a ela sobre o que Georgi fizera contra Grigori, deixando Esther preocupada.

—Oh, meu Deus... Isso me lembra de Cornwall... Lembra-se?

—Sim. – disse Holmes, com pesar, lembrando-se de sua conturbada recuperação na casa do amigo de Watson, em Cornwall. – Aquela discussão que tive com Watson... Quase acertei um vaso de flores na cabeça dele.

Esther começou a chorar.

—Ele é só um menino, Holmes... Não merecia estar passando por isso...

Percebendo que sua esposa estava prestes a adentrar em um estado de nervos, o detetive se aproximou para acalmá-la, abraçando-a firmemente. Tamanho era o nervosismo de Esther que ela não o compeliu de seu gesto.

—Ele está apresentando sintomas graves de abstinência, Esther. Isso me dá mais certeza de que havia mais cocaína naquele composto do que eu pensei. Teremos de ser mais fortes do que nunca, está me ouvindo?

—Sim.


§§§§§



Sussex Downs, Inglaterra. Dezembro de 1910.


A campainha tocou repentinamente. Esther e a senhoria, Mrs. Morton, estavam na cozinha. Esther conversava com a senhora galesa sobre culinária, e ambas trocavam suas experiências sobre cozinha e também sobre as preferências de Holmes e dos meninos quando foram interrompidas pelo soar do sino.

—Há alguém chamando. – disse a senhoria, ocupada cortando legumes.

—Irei atender. – disse Esther, levantando-se da mesa.

—Mas... – protestou Mrs. Morton, mas isso não foi o bastante. Apesar de tais coisas serem de sua obrigação, Mrs. Morton notou que Esther não tinha problemas em assumir tais tarefas, pelo contrário. A senhoria acreditava que ela gostava de se sentir útil de alguma forma, naquela casa imensa e com tão pouco a se fazer para quem era a “patroa”, ao menos aos seus olhos.

Ao abrir a porta, Esther foi recebida por um simpático carteiro.

—Bom dia. – ela cumprimentou, uma vez que não era ainda meio-dia. O jovem carteiro retribuiu.

—Bom dia, senhorita...?

—Holmes. – disse. – Mrs. Holmes.

O jovem empalideceu-se. – Oh. Eu não sabia que... Enfim. – foi tudo o que disse. Esther reprimiu uma risada, pois não queria deixa-lo mais envergonhado.

—Então? Deseja alguma coisa?

—Er, sim. – disse o carteiro, ainda abobado. – Há uma correspondência para entregar ao Mr. Sherlock Holmes. Apesar de ter pensado ser este um engano, afinal Holmes não existe, mas...

Esther riu. – Bom, eu posso te assegurar que...

—... Que alguém está fazendo uma piada com o meu sobrenome Holmes. – interrompeu Sherlock Holmes, aparecendo repentinamente à porta.

—Mr. Willian Holmes. – disse o carteiro, animado. – Estava explicando à sua esposa sobre as brincadeirinhas que fazem nos Correios. Ainda bem que o senhor apareceu lá para explicar que era tudo uma grande brincadeira, ou do contrário nós lançaríamos todas as cartas destinadas à Sherlock Holmes na fogueira. Igual ao que fazemos às cartas de Papai Noel.

Esther ficou indignada. – Vocês queimam cartas destinadas ao Papai Noel?

—Claro. Nesta época do ano, recebemos muitas delas. E a maioria sequer põe um destinatário senão “Casa do Papai Noel”.

—Por que não abrem as cartas e leem os desejos? Muitas crianças pobres costumam escrever e teriam um Natal mais feliz se tivessem seus desejos realizados.

—Bom, se você souber do endereço do próprio Papai Noel, eu posso entregar as cartas e assim dar a ele esta tarefa de realizar desejos. No momento, isso não cabe muito no nosso orçamento.

—Não seja tão rude com minha esposa. – reclamou Holmes. – Mas afinal, que correspondências têm para entregar?

—Er, só este pacote, sir. Tenham um bom dia. – disse o jovem, voltando à sua bicicleta e pedalando para longe dali como se sua vida dependesse disso.

—Você e sua mania de salvar o mundo. – resmungou Holmes, mais em diversão do que repreensão.

—E que história é essa de esconder sua verdadeira identidade? O carteiro te chamou de Willian...

—É meu nome, não é? – respondeu Holmes, cinicamente. Esther rolou os olhos.

—Sabemos muito bem que você só usa esse nome quando em tribunais ou quando precisa assinar cheques. E se está usando ele agora, é porque não quer deixar ninguém saber o seu verdadeiro nome, exótico e famoso...

—Disse a palavra-chave, Esther. Famoso. E essa fama cabe agora a um personagem literário...

—Um detetive, assim como você! – interrompeu Esther.

—Que não existe. – completou Holmes. – Escute Esther, muita coisa se passou enquanto esteve fora, por isso você não entende a minha atitude de permanecer anônimo. Agora, vamos deixar de lado esta conversa inoportuna e ir almoçar?

—Ainda não está pronto. – completou Esther. – O coelho desandou e tivemos de improvisar com um frango e...

—Oh, Céus. Tive tanto trabalho para caçar aquele coelho e você me diz que ele desandou? – reclamou Holmes.

—Não pense que pode me enganar, The Great Detective. Eu sei muito bem que você comprou este coelho no comércio da cidade. – caçoou Esther.

—Grigori é testemunha de que o cacei no bosque atrás de nossa casa.

—Mencionou Grigori?! Ora, nós sabemos que ele é o seu pequeno cúmplice!

Holmes deixou escapar uma gargalhada. Quando o casal caminhava até a sala de jantar, onde esperariam pelo almoço, quando acabaram esbarrando por um esbaforido Grigori.

—O que foi, Grigori? Está tudo bem? – perguntou Holmes, preocupado por ver o menino mais agitado que o normal.

—Georgi, ele... Ele vomitou em mim! – disse o menino, com asco. Só então Holmes notou que o menino estava completamente vomitado, provavelmente era vômito de seu irmão Georgi.

—Esther, cuide de Grigori. Irei verificar Georgi. – disse Holmes, deixando o pacote nas mãos de Esther. Apesar de um pouco contrariada, por Georgi sempre teve uma melhor relação com ela do que com Holmes, Esther preferiu deixar Holmes tomar a iniciativa. Provavelmente, Georgi estava tendo mais uma crise de abstinência.

—Argh, eu estou todo vomitado... – reclamou Grigori. – Agora entendo porquê o meu prato de mingau estava pela metade quando fui procurar por mais biscoitos na dispensa. Tenho certeza de que Georgi comeu o meu mingau... Olha só, ele vomitou mingau pra caramba! Mingau, e acho que o bife com alface do jantar de ontem...

Desconfortável com o teor da conversa de Grigori, Esther decidiu intervir.

—Melhor tomar um banho, então. – disse Esther, acompanhando Grigori até o seu quarto. Esther já fora alertado por Holmes a respeito da baixa aceitabilidade do menino a banhos, e diante daquela situação, ela precisava se certificar que Grigori exercesse um pouco o hábito higiênico de se banhar adequadamente, ou do contrário, ele permaneceria vomitado dos pés à cabeça o dia todo. Sabendo que não havia escolha – era sempre Holmes quem supervisiona e ajudava Grigori a tomar banho – Esther precisou acompanha-lo.

No entanto, Grigori não parecia muito receptivo à ideia. Ao perceber que Esther o acompanharia até o seu quarto, o menino se retraiu.

—Er, a senhora... A senhora pode esperar lá fora?

—Não posso. Preciso me certificar de que você irá tomar banho direito.

—Mas eu vou tomar banho! Eu juro! – protestou o menino.

—Não jure em falso, Grigori. Eu sei que eu vou dar as costas e sair, e você correrá para a pia, lavará só as mãos e então vestirá roupas limpas. Mas saiba que o cheiro do vômito já está entranhado na sua pele e não será uma lavagem de mãos que o retirará.

—Mas funciona. Pelo menos eu não sinto mais o cheiro.

—E as pessoas ao seu redor, terão de ser obrigadas a senti-lo? – cruzou os braços Esther. Abnegado, o menino cedeu.

—Está bem. Contanto que a senhora feche os olhos.

Esther riu. – Já vi coisas mais chocantes na vida que um menino de dez anos sem roupa. Acho que posso sobreviver a isso.

—Não duvido, mas o pai disse esses dias que tem coisas na sociedade que são inaceitáveis. E uma dama como a senhora é...

—Espere, o que você disse? – questionou Esther, surpresa.

—Que meu pai disse que tem coisas na sociedade que são inaceitáveis, como uma pessoa ficar... Como foi que ele disse... Espiga?

—Despida. – completou Esther, contendo o riso diante do vocabulário escasso de Grigori. – Mas não foi bem isso o que quis dizer. Quer saber? Deixa para lá. Pode tirar a roupa, eu viro de costas se quiser. Mas aviso que terei de vigiar enquanto você estiver se banhando.

—Eu vou tacar bastante sal de banho, assim a banheira irá ficar cheia de espuma.

—Só não exagere. – disse Esther, virando de costas, enquanto o menino retirava suas roupas. Então, mesmo que inconsciente, Grigori chamara Holmes de pai! Claro, a relação dos dois era muito boa, cedo ou tarde isso iria acontecer! Ela estava louca para saber como seria a reação de Holmes quando soubesse disso, ou mesmo quando ouvisse as palavras da boca do próprio menino.

Enquanto Grigori retirava suas roupas, Esther voltou sua atenção ao pacote que chegara para Holmes. Ao ler o remetente, Esther logo imaginou do que se tratava. Era da Universidade de Oxford, do Instituto de Biologia. Decerto algum livro encomendado por Holmes para a Apicultura, atividade esta que ele vinha desempenhando com afinco.

—Pronto, pode se virar. – permitiu Grigori. Imediatamente, Esther percebeu que o menino estava mais preocupado em brincar com a espuma do que se banhar. Agora, ela entendia porque Holmes vigiava seu banho.

—A senhora está bem? Parece um tanto séria... – disse o menino.

—Estou bem, só um pouco preocupada com seu irmão. – explicou Esther.


§§§§



O corpo de Georgi era tomado por calafrios, apesar de aquele começo de tarde ser de calor e bastante ensolarado. Holmes sabia que era mais um sinal de abstinência da droga. Como Grigori avisara, Georgi vomitara, e bastante. Outro sinal da abstinência. Pobre menino, já tão jovem e tinha uma batalha e tanto pela frente, pensava Holmes.

—O que mais está sentindo? – perguntou Holmes, lançando um lençol sobre ele.

—Minha boca está seca. E... Estou com muito frio...

Homes tocou sua testa. Sua temperatura estava um tanto alta, mas não chegava a ser febre. O detetive só esperava que o menino não a desenvolvesse também.

—Mr. Holmes, o senhor sabe o que eu tenho? Eu vou morrer? – perguntava o menino, lacrimoso.

—Não, nada disso. Você só precisa... Suportar mais um pouco.

—Quase todo dia estou ficando assim. Não sei mais o que fazer. Eu devo estar morrendo, é isso.

Preciso tirar esses pensamentos dele, distrai-lo. Mas como?

—Georgi, conte-me mais sobre você. – disse Holmes, inesperadamente.

—Sobre mim? Mas o quê o senhor gostaria de saber?

—Bom, do que você gosta? Estamos há algumas semanas morando juntos e ainda assim, eu sei tão pouco de você. Diga-me, qual é a sua cor preferida?

—Azul.

—Mesmo? Eu prefiro preto. Tem alguma brincadeira de que goste?

—Eu gosto de jogos de tabuleiro. Xadrez, damas... Mas Grigori não sabe jogar direito. Perde para mim de forma ridícula, e ele sempre diz que eu estou trapaceando.

Holmes teve vontade de rir. Isso era bem típico do menino.

—Bom, eu tenho um tabuleiro de xadrez, e garanto a você que serei um bom adversário, mais desafiador que Grigori, ao menos. Que tal jogarmos um pouco?

—Seria esplêndido. – disse o menino, mais motivado.

—O tabuleiro está no meu quarto. Aguarde aqui enquanto eu vou busca-lo.

Ao sair do quarto de Georgi, Holmes acabou esbarrando em Esther, bastante preocupada, e um aparentemente limpo Grigori.

—E meu irmão, como ele está?

—Bem, Grigori. Tão bem que iremos jogar um pouco de xadrez agora.

—Tome cuidado, ele é um trapaceiro.

Holmes riu. – Ele me contou sobre a sua opinião. Mas, de qualquer forma, uma partida com ele não fará mal algum.


§§§§



Como imaginava Holmes, as alegações de Grigori sobre Georgi eram infundadas. O menino não trapaceava, pelo contrário. Era muito bom no xadrez. Claro, ele jamais poderia superar um experiente jogador como Holmes, mas ainda assim, jogava melhor que muita criança de sua idade. Uma única partida foi o bastante para perceber isso.

—Com quem aprendeu a jogar assim? – perguntou Holmes, curioso, assim que derrubou a Rainha de Georgi, restando apenas um Cavalo e uma Torre do lado oponente.

—Com a professora... Digo, com a Esther.

—Hum... – observou o detetive. – Por isso estou reconhecendo alguns movimentos dela em você. Mas parece que você tem um talento nato para isso.

—Os professores diziam que eu tenho uma virtude chamada paciência. Acho que por isso jogo tão bem como você diz. – disse o menino, ajudando Holmes a guardar as peças.

—Agora, vamos almoçar.

—Er... Eu estou com muito sono. Acho que vou almoçar mais tarde, ou então acabarei desmaiando em cima do prato. – justificou, tentando reprimir educadamente um bocejo.

—Tudo bem. Durma um pouco. Mais tarde, Mrs. Morton trará algo bem reforçado para você comer. – disse Holmes, ajudando o jovem Georgi a se cobrir.

Ao chegar à mesa, Holmes encontrou Esther e Grigori já sentados, terminando o almoço. O aroma do frango assado com ervas e batatas chegava às narinas de Holmes, abrindo seu apetite. Holmes já havia notado que, desde sua aposentadoria, sua disposição para almoços e jantares era maior, apesar de ainda comer em pequenas quantidades.

—Será que teremos chocolate? – perguntou um ansioso Grigori.

Holmes decidiu intervir. – Não se assanhe tanto assim, menino. Já conversei com Mrs. Morton e ela irá preparar hoje uma salada de frutas para a sobremesa.

Grigori parecia estar prestes a protestar, mas Holmes o deteve outra vez.

—Você está comendo chocolate todo dia e tem evitado as frutas durante o café da manhã, eu já notei. Já li estudos a respeito da importância dos nutrientes presentes nas frutas e legumes, o quanto eles previnem doenças e potencializam o corpo e a mente. Portanto, nada de chocolates e doces repletos de açúcar.

Esther parecia surpresa. Sherlock Holmes estava mesmo tentando estabelecer em Grigori uma boa educação alimentar? Quem diria...

—Mas...

—Sem “mas”, Grigori. A propósito, espero que você não tenha dado trabalho à Esther durante o banho. Eu já te disse, você não pode ser vigiado para sempre. E cá entre nós, está grande o bastante para tomar banho sozinho e adequadamente, assim como provavelmente faz o seu irmão Georgi. Não estou certo, Esther?

Esther, que estava com a boca ocupada tomando um suco, quase se engasgou, mas se limitou a assentir com a cabeça. Não queria colocar mais lenha na fogueira, nem interferir em Holmes exercendo seu papel de pai. Ou, em outras palavras, aquele espetáculo estava divertido demais para ela interferir.

—Mas eu não gosto de tomar banho. Pelo menos, não todos os dias.

—Terá de adquirir esse hábito, Grigori. Todos nesta casa, eu disse, todos, tomam banho ao menos uma vez por dia. Terá de saber como tomar banho adequadamente, lavar bem as orelhas, o cabelo... Não só acabar com os sais de banho para ficar brincando com a espuma da banheira. Faremos o seguinte. A partir de hoje, eu deixarei que você tome banho sozinho. Mas, se eu sentir que você tentou me enganar, e acredite, eu irei saber disso, eu vou obriga-lo a tomar banho na mesma hora, entendeu?

—Sim, sir.

—Ótimo.

Começando a dar suas primeiras garfadas na comida, Holmes percebeu o regresso de sua senhoria, Mrs. Morton, trazendo a sobremesa e algumas taças. Ao colocar a taça de cristal diante de Grigori, Holmes o deixou advertido.

—Espero vê-lo comendo esta salada de frutas com o mesmo apetite que comeria um pudim de chocolate.

O menino não respondeu, voltando sua atenção completamente à salada de frutas diante de si. As primeiras garfadas foram dadas timidamente, mas o olhar implacável de Holmes fez o menino dar garfadas mais generosas – mesmo simular um suspiro acompanhado de “está uma delícia”. Por um momento, Esther teve pena dele. Talvez Holmes estivesse exagerando. De qualquer modo, ela não expressaria suas idéias na frente do menino. O casal já havia combinado jamais desautorizar um ao outro na frente das crianças. Portanto, ela aguardaria um melhor momento para conversar sobre isso. Aliás, notou Esther, há tanto o que se conversar com Holmes que ela nem sabe por onde começar, quando os dois estivessem em um momento às sós e longe dos olhares curiosos dos meninos. Principalmente sobre o que fazer com Georgi.

—Como está Georgi? – perguntou Grigori, preocupado com seu irmão, já terminando a sobremesa.

—Eu o deixei dormindo. Um pouco de repouso lhe fará bem agora.

—Por que ele está assim? Agressivo, quieto, estranho? Eu não entendo... – disse o menino, aparentando estar perdido e confuso.

Não. Grigori ainda não tem maturidade o bastante para entender.

—Ele está um pouco doente, Grigori. Mas não é nada que não tenha tratamento.

—Que tipo de doença é essa?

—Grigori, que tal passearmos pela fazenda? – interrompeu Esther, tentando tirar tais preocupações da mente do menino. – Ouvi dizer que você gosta de cavalos, é verdade?

—Sim, eu gosto. Mas...

—Bom, eu também gosto muito. Seria bom se tirássemos o dia de hoje para cavalgarmos, não? Aproveitar que está um dia lindo lá fora, sem sinal de chuva...

—Tem razão. É bem raro um dia ensolarado em Sussex nesta época do ano. – interrompeu Holmes, tentando motivar Grigori a sair um pouco de casa e esquecer os problemas de seu irmão Georgi.

—Tudo bem. Eu levo a senhora. – disse o menino. Esther se animou.

—Ótimo. Venha comigo, vamos calçar nossas botas. – disse, conduzindo o menino ate o andar de cima, sem deixar de dar uma piscadela cúmplice para Holmes.

Sozinho à mesa, o detetive suspirou. Sem dúvida, passaria o dia inteiro agora com Georgi, que dentre os irmãos, era o que ele detinha menor intimidade. Quando era necessário entretê-lo ou conversar sobre algo, Esther sempre tomava à frente, e Holmes permitia. Apesar de terem sido aluno e professora no passado, Esther tinha conquistado no menino uma sólida amizade e admiração, estabelecendo uma profunda relação de confiança. E Holmes estava longe de possuir o mesmo com ele, e no fundo, sentia que o menino era alguém difícil de conquistar. Tímido, pacato e retraído, com um quê desconfiado das pessoas ao seu redor.

Mas apesar de tudo, Holmes sentia que precisava tentar. O xadrez parecia ser um bom começo, mas Holmes sabia que não poderia ser este o seu único elo com o menino. Livros, quem sabe? Ele parece ser um menino estudioso. Talvez ele goste de ler. Holmes tinha uma biblioteca vasta sobre tópicos de Criminologia, mas havia um ou outro livro de temática mais leve para emprestar ao menino. Talvez algo do patamar de Charles Dickens, ou Júlio Verne. Tinha também um tal de “O Pequeno Príncipe” que uma das filhas de Watson esquecera na última vez em que estivera em sua casa. Holmes franziu o cenho. Estes livros eram a única literatura adequada a uma criança que ele tinha em mãos. O restante sempre tocava em um ponto violento ou adulto. Como a coleção de Edgar Allan Poe que ele recebeu de Watson durante um dos vários Natais em Baker Street. Holmes riu da lembrança. Esther iria mata-lo se encontrasse Georgi lendo algo como “Assassinatos na Rua Morgue”. Era bom manter o menino com um livro mais leve.


§§§§


Foi Grigori o incumbido de levar Esther até o estábulo. Curiosamente, desde que se mudara para Sussex, Esther ainda não havia visitado o local. Ficou maravilhada ao ver os quatro cavalos que Holmes possuía, todos de boa linhagem, com o pelo lustroso e mansos como carneiros. Três éguas e um macho, ela percebeu.

—Ventania, Azaléia, Estrela e Carpeado. Belos nomes. – disse Esther, passando por cada animal e lendo os nomes gravados em cada placa sob suas cabeças.

—Estes são os nomes? Eu não sabia... – disse o menino, causando pasmo a Esther. Sem dúvida, ele não sabia ler. Era curioso como Grigori era praticamente o oposto de Georgi em todos os aspectos. Ao contrário de Georgi, que tivera acesso à educação de qualidade e boa alimentação e moradia – apesar de serem providenciadas por um projeto científico doentio –, Grigori provavelmente passou por todas as provações as quais uma criança russa de origens humildes enfrenta na vida: trabalhara como escravo, vivera nas ruas, passara fome, tivera acesso à praticamente nenhuma educação – ainda que soubesse falar Inglês, algo que Esther ainda não entendera como ele conseguira – e, por consequência, era desta forma: desleixado, com poucos modos e iletrado. Era mesmo espantoso que Holmes criasse um vínculo tão forte com um menino de sua estirpe.

—Você sabe ler e escrever em russo?

—Pouco. Sei escrever meu nome, algumas palavras... Mas Inglês, eu realmente não sei ler ou escrever, só falar e muito mal. Vez ou outra a senhora e o pai me corrigem. Isso faz com que eu me sinta um tanto burro, mas sei que é necessário.

—Nunca foi nossa intenção ofender...

—Tudo bem. Eu não me importo. – interrompeu o menino.

—Um dia, você não dependerá de alguém para entender palavras. Eu prometo. Agora, vamos deixar este assunto de lado e dar uma cavalgada.

O menino sorriu, escolhendo seu cavalo. Ao puxar o cavalo pela rédea para fora do estábulo, Esther notou uma ligeira e inexplicável hesitação nele. Mesmo diante do cavalo, Grigori não o montava, nem mesmo tentava montá-lo.

—Precisa de ajuda para subir? – ofereceu-se Esther. O menino corou-se.

—Eu nunca montei em um cavalo antes.

Esther ficou estática. Homes havia comentada sobre a paixão do menino para com os cavalos, do quanto ele admirava. Contou até que Grigori retirara uma pedra da ferradura de sua égua, no primeiro dia em que se conheceram. Ela jamais poderia imaginar que ele jamais montara em um animal antes.

—Bom, sempre há uma primeira vez. – disse Esther, ajudando-o a subir. Como esperado, o menino subiu de modo desajeitado, e soltou um resmungo desconfortável.

—Minhas pernas estão tão arreganhadas que sinto que irão se rasgar.

Esther soltou uma gargalhada. – A sensação é meio desconfortável no começo, mas com o tempo você se acostuma. É melhor eu montar com você, assim você não correrá riscos de desequilibrar e cair. – ela disse, juntando-se ao menino, mas mantendo-o à sua frente.

E assim, pelo resto da tarde, Esther e Grigori cavalgaram juntos pelas terras da fazenda de Sherlock Holmes. Durante a cavalgada, ambos conversavam sobre uma coisa ou outra a respeito de suas vidas, seus gostos e mesmo contavam histórias engraçadas que haviam vivido. Depois de duas horas cavalgando, os dois pararam sobre a sombra de uma árvore, solitária naquela pastagem. Só voltaram para casa quando o céu tornou-se avermelhado, anunciando o fim daquele dia e o começo da noite.

Na volta para casa, carregando em seu colo um cansado e já sonolento Grigori, Esther não pôde deixar de se perguntar como Holmes estaria lidando com Georgi.


§§§§


Risadas eram escutadas do corredor. Esther suspirou, aliviada. Estava indo para o quarto, desejando tomar um banho quente e retirar as roupas suadas e salpicadas de lama e grama, quando ouviu as risadas de Sherlock Holmes e também de Georgi. Taciturno e de poucas palavras, o menino não era de rir. Esther poderia contar nos dedos todas as vezes que Georgi riu por algo, e desde que o menino mergulhara na abstinência da superpílula de Sokolov suas risadas haviam desaparecido. Ouvir suas risadas outra vez encheu-a de felicidade e esperança.

Percebendo a porta do quarto de Georgi aberta, Esther decidiu dar uma olhada e se deparou com uma cena que John Watson jamais poderia imaginar, nem em seu mais louco devaneio: o maior detetive de todos os tempos, a dita “grande mente, imperturbável por emoções e insensível a nada que não fosse a lógica”, estava reduzida agora a um homem estirado no tapete, descalço e brincando de damas com um menino de dez anos.

Decidindo não interrompe-los, Esther retornou ao seu quarto.


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Notas finais do capítulo

Baita momento fofura na fanfic, né? Espero que tenham gostado. Aliás, não só gostado, mas também aproveitado para a tensão que reservei para o último cap, que aproveito para dizer está imenso, beirando 7000 palavras... Um recorde, rs...

Enfim, estou considerando a possibilidade de cortá-lo e adiar o Epílogo para a quarta-feira pós Natal. Acho que um cap assim é muto extenso e não sei se todos teriam tempo para ler em uma só pancada, porque ele também é bastante denso... Na próxima quarta irei comunicar minha decisão. Por isso, se pronunciem: vocês se importam com um cap hipopótamo? Ou preferem ler com calma? Meu maior temor é tornar a leitura cansativa.

E, é claro, o próximo cap (ou caps) será natalino... Pois é, foi uma baita coincidência (juro!) o final da fanfic coincidir com o Natal. Logo, será temático, mas nem por isso feliz - já aviso.

Mais uma vez, obrigada por acompanharem, desde você, caro leitor(a), que lê essa minha fanfic desde os tempos de Shalom, até os que descobriram a fic agora. Pois é, isso é o começo de um Adeus. Vão preparando os corações porque eu poderei arrasá-los rs.

Até quarta! E deixem reviews, pois eles me fazem muito bem! ;)



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