O Grande Inverno da Rússia escrita por BadWolf


Capítulo 47
Sobre Livros e Torneiras


Notas iniciais do capítulo

Olá,


Acredito que essa tal 'Fazenda" deixou ainda muitas perguntas sem resposta. Creio que esse cap irá ajudá-los quanto a isso. Claro, nada muito direto, mas não desanimem porque há pistas importantes.

Sem contar a volta de um personagem importantíssimo... Apostas??


Boa leitura!



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Montes Urais, Rússia. Setembro de 1910.

Fazenda de Ecaterimburgo.


            A professora Dasha Pulovtz apagava o quadro, pela enésima vez naquele dia. Seu cronograma de ensino naquele colégio era vasto, e ela sentia-se exausta no final de todas as aulas, sem exceção. As crianças pareciam sempre desinteressadas. Não porque odiassem estudar, pensava a professora, mas pelo tédio das aulas que nada tinham de novidade. Mas, no final das contas, seu aprendizado era sempre confirmado pelas altas notas que recebiam nas provas. Ao final das provas, a professora tinha a obrigação de entregar à Diretoria um relatório detalhado do progresso de cada aluno. O que aprenderam, e especialmente, a velocidade com quê aprenderam. Semanas? Dias? Horas? Nenhum aluno poderia passar despercebido.

            -Obrigada, professora. – disse todos, quase roboticamente, assim que saíam da sala, após a sineta tocar e anunciar o fim da aula.

            -Não há de quê. – respondia a mulher, tentando passar um pouco de simpatia para elas, em vão. Todas lhe tratavam com tal serenidade e formalidade que mais pareciam ter quarenta anos de idade, e não dez anos.

            Dasha olhou para a cadeira do meio, na primeira fileira. Onde estava Georgi, seu aluno preferido? Ele não costumava faltar sua aula – e nem poderia, pois não tinha escolha. Será que ficara doente? Ou em uma detenção?

            De todo modo, Dasha arrumou suas coisas e decidiu que era hora de almoçar.

            No imenso refeitório, povoado de meninos e meninas de diversas idades, alguns já sentados a fazer suas refeições, outros na fila para pegar seus pratos, de comida – que a professora notou pelo aroma ser carne assada com rodelas de beterraba – Dasha sentou-se à mesa destinada aos professores, mais destacada dos demais alunos. Percebeu que o clima entre eles era tenso.

            Ao sentar-se, Dasha tentou sorrir e puxar um assunto qualquer, mas logo percebeu que não era momento para isto.

            -O que houve? – perguntou, em um tom mais sério e preocupado.

            -Houve uma fuga, Dasha. – disse o coordenador, chamado Thomas Burmev. Ele também era professor.

            Dasha arqueou os lábios. – Sério? Quem fugiu?

            -Aquele menino introspectivo, o Georgi. Creio que você dá aulas para ele, de Francês.

            -Sim, é verdade. Bem que notei que ele não estava na sala de aula hoje.

            -Eu espero que o encontrem logo.

            Uma das professoras disse, por mera formalidade. Nenhum deles concordava com sua afirmação, afinal todos sabiam qual seria seu destino, caso fosse finalmente descoberto. Dasha tomou um gole de seu chá quente, tentando afastar o frio e o medo de suas idéias.

            A sineta tocou outra vez. Era hora de voltar ao expediente.


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Perto das seis da tarde, Dasha caminhava pela trilha que levava ao conjunto de chalés que pertenciam aos professores. Era uma caminhada pelo campo de cerca de dez minutos, que ela costumava fazer na companhia de Thomas, professor de Geografia e também coordenador dos professores, e Nadja, professora de Etiqueta e Tradições (uma das matérias mais ridículas e machistas que já vira na vida, na opinião de Dasha). Mas naquela noite, ela dera uma desculpa qualquer e fez seus colegas irem à frente.

Dasha possuía grande carinho por Georgi, e as últimas notícias sobre seu repentino desaparecimento lhe preocupava. Nenhum professor poderia entender sua verdadeira preocupação, por isso ela preferiu se afastar de todos eles e se manter reclusa com seus pensamentos. Algo martelava na cabeça de Dasha o dia todo. Uma conversa que tivera com o menino Georgi, há cerca de um mês atrás.

“Professora, a senhora não se sente prisioneira aqui?”

Dasha, na ocasião, estava arrumando suas coisas. A sala estava vazia, já sem os alunos, que foram até o pátio dar início ao intervalo. Os olhos verdes de Dasha se voltaram para os olhos verdes e tristes de Georgi, que a fitavam com expectativa.

“Bom, de modo algum.” Ela disse. “Esse é o meu emprego.”

“Mas a senhora não é livre para fazer o que deseja.”

Georgi era assim, lembrava-se Dasha. Um menino questionador e bastante inteligente, com um talento nato para a argumentação. Dasha estava naquele emprego há apenas alguns meses, mas ouvira dizer que Georgi era um dos poucos que não possuía amigos, era tímido com os outros professores e alunos, se amparando de sua solidão nos livros da biblioteca. Ela era a única pessoa na Fazenda que lhe dava liberdade o bastante para conversar. Certa vez, ouvira que ele tinha um irmão, mas que não sabia de seu paradeiro desde os seis anos de idade. Quando tocou no assunto “e seus pais?”, o menino se recolheu, fechando-se como uma ostra. Só voltou a conversar com ela após uma semana. Depois disso, Dasha jamais voltou a tocar neste assunto. Ele era, claramente, um menino solitário e triste. Alguns caçoavam dele, e chegavam até a ir mais além e espanca-lo, aproveitando-se de sua situação altamente vulnerável.

“Mas é claro que eu sou, Georgi. Olha, eu sei que este colégio é rigoroso, mas acredite, você é um menino privilegiado por ter acesso a tanto conhecimento. Lá fora, muitas crianças de sua idade estão passando por necessidades.”

“Duvido disso. Não acho que as crianças lá fora são forçadas a tomar o remédio todo dia, como eu e as outras tomamos.”

O remédio, pensou Dasha. Já ouvira outras crianças mencionando-o assim. Simplesmente “O Remédio”. Tomavam, todos os dias, um ou dois comprimidos, segundo relatos de Georgi, mas a causa jamais lhe fora explicada. Às vezes, um ou outro aluno seu era internado no hospital, com os mais variados problemas. Jamais ouviu falar de qualquer complicação em Georgi, mas ainda sim, não entendia que tipo de problemas todas aquelas crianças poderiam ter em comum para tomarem o mesmo remédio.

“De todo modo, professora, saiba que se quiser fugir, eu posso ajuda-la.”

Apesar do tom de brincadeira de Georgi, Dasha tornou-se séria. Desde que passaram a ser amigos, o menino havia lhe perguntado sobre coisas, coisas a respeito de como funcionava o mundo lá fora. Dasha, que havia assinado um contrato para lecionar, cujas cláusulas a proibiam de conversar com alunos a respeito de tópicos que não envolvessem o conteúdo didático definido pela Instituição, contara-lhe tudo. Contou sobre a Inglaterra, sobre a França, e até mesmo sobre a Rússia, não poupando o menino de saber dos problemas que assolavam o seu país. No entanto, Dasha sentia que desde que soubera mais além do mundo fora dos muros e cercas da Fazenda, o menino tornara-se mais curioso para conhece-lo.

“Fugir? Georgi, por favor, não entre em problemas. Fugir daqui não é uma boa escolha, acredite em mim.”

O menino deu de ombros.

 “Claro que é. E nem é tão difícil assim, como pensa. Afinal, eles não vigiam torneiras.” Disse o menino, dando-se piscar divertidamente. “Boa tarde, professora.”, disse por final, se despedindo, deixando Dasha com a maior das dúvidas.

Finalmente, Dasha havia chegado a sua residência, um chalé simples, mas aconchegante e bem-equipado, localizada em uma espécie de conjunto de chalés, chamada de “Vilarejo dos Professores”. Logo notou sua vizinha, Hannah, carregando um balde d’água, uma cena bastante incomum.

—O que houve? – perguntou a professora de Francês, depois de cumprimentá-la.

—Estamos sem água, Dasha. Mandei meu filho Alexander conferir o que está acontecendo.

Dasha assentiu. Alexander era um dos vigias do local, e costumava agir como zelador da Vila, cuidando de pequenos problemas de manutenção.

—Estranho. Afinal, somos abastecidos diretamente pelo rio.

—Não diretamente. Há uma tubulação que capta a água e a manda para um reservatório, que fica perto do alojamento masculino. Meu filho comentou que é um reservatório subterrâneo. Só torço para que ele não se machuque enquanto averigue isso.

—Deus queira que não. – concordou Dasha.

“Eles não vigiam torneiras...”

Torneiras... Claro! Seriam então as tubulações de água? Uma boa possibilidade de fuga!  A idéia veio a Dasha imediatamente, obrigando-a a encontrar uma maneira de ajudar Georgi. Certamente, ele ainda não tinha conseguido escapar e poderia estar preso, o que explicava a súbita e estranha falta de água.

Se Georgi fosse pego por Alexander, seria seu fim.

—Para onde vai? – perguntou Hannah, estranhando a pressa de Dasha.

—Er, eu acho que esqueci um livro na sala de aula. Amanhã a gente se vê.

—Boa noite, então. – disse a vizinha, se retirando para sua casa.


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            O menino Georgi corria sem parar pela floresta. Já arfava, mas corria mesmo assim. Mesmo a neve que retardava seus passos parecia incapaz de cansá-lo. Ele estava livre, afinal.

            Claro, seu plano não saiu exatamente como o combinado. Nem em suas piores hipóteses o menino poderia imaginar que dois estranhos iriam segui-lo, sabe-se lá com qual propósito. Um deles foi lançado à água, e o outro, mais velho, ficou a lamentar e também gritar por si, sem receber respostas. Tudo que o menino fez foi correr. A chegada dos estranhos atrasou seu plano. Ele estava oito minutos atrasado. Oito minutos. Ele havia planejado tudo meticulosamente, aproveitando-se da troca de turnos de um dos vigias do Sul, mas com este atraso, tudo que o menino Georgi pôde contar foi com a sorte. Em seus meses a se atentar da rotina dos guardas, Georgi havia notado que um deles costumava se atrasar porque, segundo a observação do menino, sempre tinha uma diarréia depois que comia o jantar que envolvesse carne de porco. Era torcer que esse vigia tivesse se entupido disso na refeição passada.

            A corrida deu lugar a passos cuidadosos. A neve cobria o chão, fazendo seu andar colchoar. A idéia de tirar o calçado para reduzir o barulho passou em sua mente, mas o temor de molhar as meias e os dedos e suas implicações à sua saúde fizeram o menino recuar.

            E lá estava o muro. A etapa final de seu plano perfeito. Ninguém à vista. Como uma pessoa sedenta no deserto diante de um oásis, Georgi se lançou à sua última chance de fugir com grande sede. Ágil, o menino começou a escalar. Não foi difícil. Como ele calculara, o muro mal-cimentado mais parecia uma escada aos seus pés e mãos pequeninos. Debruçando o peito sobre o topo do muro, o menino pôde focar seus olhos verdes no horizonte pálido e repleto de árvores diante de si. Liberdade.

            Um sorriso tímido desenhou-se em seu rosto. Era genuíno. Poucas pessoas tiveram o privilégio de conhece-lo. Seu irmão Grigori o vira bastante. Sua babá, Liz. E mais recentemente, a professora Dasha. Mas ele se dissipou logo que o garoto sentiu seu pé ser puxado e o berro de “peguei você, seu moleque” alcançar seus ouvidos. Espernear pouco adiantou. O segurança estava muito bem disposto. Decerto percebeu que a maldita carne de porco era a razão de seu tormento e a cortou de sua dieta.

            Enquanto era arrastado pela neve, o menino Georgi olhava, com tristeza, o muro se tornar cada vez mais pequenino diante de seus olhos.


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Notas finais do capítulo

Está muito óbvio quem é essa professora Dasha, não é? Reconheço que deixei muitas pistas. Aliás, alguém faz alguma idéia do porquê de tanto estudo nessa Fazenda? E remédio todo dia? Suspeito, não?

E finalmente, descobrimos a identidade desse menino loiro. Será mesmo o Jonathan? Tudo aponta que sim... Ou não?

E se preparem... No próximo cap, teremos a maior revelação da fanfic.

A identidade do Jonathan...

Reúnam suas teorias, revisem... E quarta-feira, teremos a resposta.


Obrigada por acompanharem e até quarta! E deixem reviews!



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