O Grande Inverno da Rússia escrita por BadWolf


Capítulo 35
Nos Passos de Jenkins


Notas iniciais do capítulo

Cap meio atrasado, mas finalmente saiu do forno.

Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/688048/chapter/35

            Um pouco mais de uma semana.

            Foi o tempo necessário para os bolcheviques conseguirem os tais sapatos dos quatro soldados que cuidavam das correspondências de Daniel Jenkins. A solicitação de Holmes pareceu um tanto estranha, a princípio, aos ouvidos de Lev e Vlad Sokolov, mas logo ambos cederam. Afinal, não era esta uma solicitação difícil de atender. Bastou subornar as prostitutas preferidas dos dois soldados e o médico que cuidava da gota do soldado adoentado para obter os sapatos de serviço de pelo menos três militares da Okhrana. O mais complicado foi o tal sujeito grandalhão de quem Lev e Vlad haviam mencionado, de vida regrada e hábitos rígidos.

            -Eu cuido dele. – disse Holmes, naquela reunião.

            E foi o que fez o detetive. Seguiu os passos do sujeito por quase dois dias. De fato, era um homem regrado, pouco dado a vícios além de cigarro de baixa qualidade, que frequentava a Igreja sempre que podia. Holmes sabia que não havia forma de obter aquele sapato senão pela violência. Ele só não queria que tal situação ficasse a cargo dos bolcheviques, pois Holmes duvidava muito que eles seriam discretos o bastante. Caso o soldado imaginasse que os bolcheviques estavam por trás de seu ataque, sem dúvida a localidade de Jenkins seria realocada por questões de segurança e todo o plano viria abaixo. O roubo dos sapatos deveria parecer um roubo comum.

            E foi em uma saída do soldado da Igreja Ortodoxa, perto das sete, que Holmes decidiu entrar em ação.

            Primeiro, passou pelo sujeito e, sem qualquer cerimônia ou discrição, roubou sua carteira. Claro, como bom soldado e agente da Okhrana, o tal sujeito não se deixou abater pelo acontecido e pôs-se a correr atrás de Holmes, em uma rua que mal sabia ele, estava deserta propositalmente – graças a subornos a mendigos e meretrizes.

            A raiva pelo assalto não o fez perceber que estava correndo para uma verdadeira armadilha criada por Holmes, já vestindo uma espécie de máscara para cobrir sua identidade. Uma luta se travou. O porte, a altura e os músculos dele já deixaram Holmes ciente de que ele era um boxeador. Holmes só não sabia o quão experiente e bom, pois suas orelhas estavam sempre cobertas por um Ushanka. Só depois de receber uns bons esquerdos, Holmes notou que o temor dos bolcheviques não era em vão: aquele homem não deveria ser subestimado.

            Os conhecimentos de baritsu evitaram o pior. Holmes saiu daquele beco com o canto do lábio ensanguentado, os punhos avermelhados e feridos e carregando a carteira, a casaca pesada, o chapéu e os sapatos. Sem qualquer pesar, Holmes fez questão de atirar todos os pertences do agente ao rio Meva, ficando apenas com as botas, que ele fez questão de levar já no dia seguinte ao laboratório de Lev Sokolov, onde os demais sapatos eram mantidos em segurança.

            -Parece que o agente da Okhrana não deixou barato. – disse Sokolov, com diversão, ao notar os ferimentos de Holmes, enquanto o sapato era deixado sobre a mesa.

            -Ele acabou bem pior, acredite em mim.

            -Morto?! – questionou Lev, assustado.

            -Apenas moralmente. Mas se eu o quisesse morto, poderia ter deixado tal tarefa a cargo de seus... “Camaradas”. – assinalou Holmes.

            -Reconheço que eles podem ser um tanto brutos. Mas deixemos de lado tais divagações. Aqui estão os sapatos dos demais, e também o livro que me solicitou. “Mineração e Geologia da Rússia”. Não sei o que pretende com isso, mas...

            Ansioso, Holmes retirou de seu bolso um conjunto de pinças, o que fez Lev Sokolov assobiar em surpresa, provavelmente porque descobrira qual era a sua intenção.

            -O senhor é deveras esperto. Acho que agora entendo como conseguiu cair no gosto de Lenin. – disse, enquanto Holmes estendia sobre a mesa um pano branco, e colocava o primeiro sapato. Completamente concentrado, Holmes conseguiu extrair da sola do primeiro sapato os primeiros vestígios de terra, colocando-as dentro de um pequeno recipiente de vidro. Repetiu o processo com todos os sapatos. Recipiente por recipiente, Holmes os colocou sob análise em um microscópio cedido por Lev. Em meio a uma análise minuciosa, Holmes dividia suas atenções entre as lentes do microscópio e um bloco de anotações.

            -Agora, tudo que preciso fazer é ler este livro e entender o solo deste país. – comentou Holmes, quando terminado sua análise no último recipiente.

            -Terá uma leitura daquelas pela frente, então. – comentou Lev, uma vez que o livro era de tamanho próximo a uma Bíblia. Holmes riu.

            -Não se eu souber bem o que estou procurando. – disse o detetive, indo para o sumário do livro.

            -Uma pergunta: como saberá que realmente encontrou a localização de Jenkins por meio disso? Afinal, eles podem ter ido para locais semelhantes.

            -Estamos analisando quatro pessoas, responsáveis pela correspondência dele. Só o que precisamos é de um padrão. Em qual lugar todas estas quatro pessoas estiveram? Claro, iremos eliminar locais como a Okhrana, por exemplo. Mas restará algum lugar. – disse Holmes, quanto vasculhava as páginas do livro. – Além do mais, o nosso estimado brutamontes servirá como uma espécie de desempate. Duvido muito que ele tenha ido aos mesmos locais que os demais colegas.

            -Tem razão. Muito engenhoso, de fato. – disse o cientista, pensativo. Um silêncio de cerca de trinta minutos se seguiu, até que Holmes soltasse uma exclamação satisfeita.

            -Encontrou? – perguntou Lev, recebendo o assentimento de Holmes, que levou sua caneta até um mapa estendido na mesa. Ao notar Holmes circular com a caneta uma área do mapa, Lev decidiu deixar um comentário.

            -Esta é uma área rural, próxima de São Petersburgo. Mas porque circulou esta área em específico?

            -Além de compartilharem de uma mesma partícula de solo, verifiquei resíduos de centeio em seis dos oito sapatos. Duvido que seja coincidência. Acho que seria mais adequado se as fazendas de centeio dessa região fossem verificadas.

            Lev Sokolov assentiu.

            -Irei informar nossos homens. Jenkins não nos escapará.


            ☭☭☭☭☭☭☭☭☭☭☭☭☭☭☭☭☭☭


            A neve caía, persistente, sobre São Petersburgo, e mesmo assim, o frio e o rigor do clima russo estavam longe de desencorajar Holmes naquela noite. Cerca de uma semana havia se passado desde sua conversa com Lev Sokolov e o professor não havia entrado em contato, até Holmes receber no Hotel um recado de Koba dizendo que os bolcheviques já tinham decidido agir. O recado não agradou Holmes, mas de todo modo, agora ele estava ali, abandonando o hotel em uma noite que prometia ser gelada, porém algo lhe dizia que haveria fogo, diante de situações que, ele pressentia, estariam prestes a acontecer.

            -Hum... – observava Adler da janela, enquanto Holmes terminava de se agasalhar. – Quem é aquele sujeito ali, parado e recostado ao poste? É o tal russo que está te esperando?

            Holmes largou sua arrumação e foi para a janela. Era Koba.

            -Ele parece impaciente.

            -Diria que “ansioso” é a palavra correta.

            -Hum, não gosto muito de homens ansiosos. Mas para um homem viril desses, poderia abrir uma concessão...

            Holmes teve vontade de rir. Nem mesmo com a idade, Adler abandonava o instinto predador em relação ao sexo oposto. Terminando de colocar um cachecol pesado e um chapéu simples, o detetive se foi.

            -Cuide de Grigori enquanto eu estiver fora. – pediu, recebendo apenas um assentimento de Irene Adler.

            Quando finalmente se juntou a Koba, notou que o sujeito estava era nervoso.

            -Devemos ser mais cuidadosos. Uma mulher não parou de me observar daquela janela.

            Holmes riu, não sendo acompanhado pelo sisudo Koba.

            -Não se preocupe, é alguém de minha inteira confiança.

            -Mas não da minha.  – após um suspiro de Koba, ele voltou a falar. – Não sei se notou, Mr. Holmes, mas não somos aliados. Um aliado seu não é meu aliado. Só estou te acompanhando por São Petersburgo porque o camarada Lenin parece confiar em você. Mas eu não confio.

            Holmes notou hostilidade em Koba. Sem dúvida, seu preconceito por judeus estava alimentando seu discurso agressivo. Decerto, ele já sabia sobre as origens de Esther.

            -Não desejo sua confiança, Koba. Só o que desejo de você e seu “grupo”, se é que posso chama-los assim, é o paradeiro de minha esposa. Quando tudo isto acabar, tornarei esta nossa aliança temporária uma distante lembrança, da qual tenciono não compartilhar com ninguém.

            -Ótimo. – respondeu Koba, gélido. – Venha, estamos próximos da reunião.

            Pela fachada, parecia ser aquele um tipo de armazém, mas Holmes logo notou que na escuridão propositalmente criada naquele local, havia bastante gente. Duzentas, trezentas pessoas? Ele não saberia dizer, quando apenas alguns lampiões davam escassa luz àquele local. Ele notou que havia uma espécie de palanque improvisado montado ali, e que Lev Sokolov estava ali, acompanhado de outros sujeitos que ele desconhecia. Sokolov discursava, a plenos pulmões, sendo escutado com grande atenção por todos os presentes.

            -E lá vai Sokolov, cacarejando outra vez. – murmurou Koba, observando o discurso do acadêmico bolchevique enquanto sua voz era abafada pelos aplausos. Estava cada vez mais claro para Holmes que Sokolov e Koba tinham uma espécie de rixa no grupo de camaradas de Lenin. Ele só não sabia o porquê.

            -... Amanhã, meus camaradas, nós nos uniremos, e gritaremos, e espernearemos, e mostraremos a estes burgueses que roubam nosso pão, que maltratam nossas mulheres e filhos, que nós, trabalhadores, estamos cansados desta exploração!

            -Viva o povo! – gritou um trabalhador exaltado.

            -Viva!

            -Abaixo a opressão!

            -Morte aos burgueses!

            -Morte ao Czar!

            Entre vivas e urras de celebração, o próprio Sokolov começou a cantar um hino, sendo imediatamente seguido pelos presentes, que aos poucos abandonavam os aplausos e gritos de protestos para entoar uma melodia que Holmes ouvira falar, mas que jamais ouvira pessoalmente, ou melhor, daquela forma, entoada com tamanho fervor e, talvez, fé.


Vstavay, proklyat'yem zakleym'yonny,

ves' mir golodnykh i rabov!

Kipit nash razum vozmushchyonny

I v smertniy boy vesti gotov.

Levantem-se, aqueles que estão marcados pela maldição

Todos os famintos e escravizados pelo mundo!

Nossas mentes estão em ebulição, indignadas,

Prontas para nos levar a uma luta mortal.

Ves' mir nasilya my razrushim

do osnovanya, a zatem

my nash, my novy mir postroim,

kto byl nichem, tot stanyet vsem.

Nós vamos destruir este mundo de violência

Até as fundações, e em seguida

Nós vamos construir o nosso novo mundo.

Nele, quem era nada irá tornar-se tudo!

Eto yest nash posledniy

I reshitelniy boy;

S Internatsionalom

vospryanet rod lyudskoy!

Este é a nossa última

e decisiva batalha;

Com a Internacional

A humanidade se levantará!


            Holmes virou para o lado. Apesar das aparentes desavenças com Lev, Koba fazia o mesmo que os outros da multidão, fechando seus olhos enquanto cantava melodiosamente, como se entoasse um hino de adoração a Deus ou coisa parecida. Já era de conhecimento de Holmes que os marxistas eram ateus, e era curioso vê-los com tal fervor diante de alguma coisa. Especialmente quando essa coisa não se tratava de um Ser Superior, mas de uma causa que todos compartilhavam.

            -Amanhã, ao amanhecer, viremos aqui e faremos mais! Ao invés de cruzarmos nossos braços, iremos destruir os instrumentos de opressão com o qual lidamos todos os dias. Máquinas, insumos... Tudo virá abaixo!

            Holmes ficou horrorizado. Sabia que Lev e Koba estavam preparando alguma coisa para enfrentar Jenkins. Mas uma greve geral em São Petersburgo? Com um quebra-quebra? Era esta a forma que eles encontrariam para chamar a atenção de Jenkins? Arrastá-lo para fora de seu esconderijo e encurralá-lo na hora certa? Isso estava se tornando perigoso demais.

            -Então, é este o plano? Uma greve, para atrair Jenkins? Não seria mais fácil simplesmente pegá-lo em seu esconderijo?

            -Não me questione, isso não foi idéia minha. Nós seguimos sua pista, e o encontramos. O problema é que o local é de difícil acesso, e ele está fortemente protegido. Seria complicado ataca-lo por lá, mas não impossível. Foi idéia de Lev arranjar um motivo para atrai-lo a São Petersburgo. E foi ele quem sugeriu a greve para fazê-lo.

—Isso irá chamar a atenção da polícia! – cochichou alto Holmes para Koba, em meio ao discurso inflamado de Lev.

            -Bem a nossa intenção. Não só a polícia, mas também a Okhrana.

            -Pessoas podem morrer. – disse Holmes, horrorizado.

            -Sabe quantos camaradas morreram nas mãos de Jenkins, Mr. Holmes? Muitos. E eu só digo “muitos” porque não posso dar um número específico, porque a Okhrana não divulga qualquer coisa. Muitos colegas meus estão desaparecidos, provavelmente mortos, e enquanto Jenkins permanecer vivo, mais mortes virão. Quanto antes derrubá-lo, mais vidas serão poupadas. E tenha certeza, mais vidas serão poupadas do que as que encontrarão seu fim amanhã. Então, se fica horrorizado com isto, eu sinto muito. Sinto muito, porque é assim que as coisas funcionam aqui na Rússia.

            Koba voltou seus olhos para Lev, que continuava seu discurso emocionado, arrancando aplausos e gritos de ordem dos presentes.

          


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

E parece que Holmes se esforçou muito para achar os sapatos e no fim, eles optaram pelo caminho mais tortuoso. Vai entender...

E parece que nosso querido detetive britânico se encontrará no meio de um protesto comunista em plena Rússia. Por que não estou com um bom pressentimento disso?

PS: O Hino entoado pelos manifestantes trata-se da "A Internacional", que serve de hino para comunistas, social democratas e anarquistas. Foi composta primeiramente em Francês, por um dos membros da Comuna de Paris. Depois, com o tempo, a canção foi adaptada e traduzida para outros idiomas - até mesmo para o Português. Ainda assim, foi na Rússia que a Internacional tornou-se mais famosa, tornando-se um hino frequentemente cantado durante as reuniões e protestos políticos que desencadeariam na Revolução de 1917. Entre os anos de 1922 e 1944, a Internacional se tornaria o Hino Oficial da União Soviética.

Devido a tamanho destaque, a Internacional já deu as caras em alguns filmes que retrataram a Rússia na época da Revolução. Abaixo, em caráter de curiosidade, algumas retratações da Internacional.

https://www.youtube.com/watch?v=w-cWYKDtM0c
=Extraído de Doutor Jivago. O mais curioso da situação é a cara de assustado dos ricos e nobres que tiveram seu jantar interrompido pelo canto dos manifestantes. Este filme está na minha lista de "Filmes Clássicos que gostaria de ver, mas que sempre me esqueço".

https://www.youtube.com/watch?v=c13q2wYZr_0
=A Internacional entoada também por manifestantes no filme "Reds". Com 3hs de duração, "Reds" mostra o caminhar da Revolução pela perspectiva de John Reed, jornalista que posteriormente publicou "Os Dez Dias que Abalaram o Mundo" e que se tornou o único norte-americano enterrado no Kremlin. Apesar do tom definitivamente "red" do filme, ele mostra bem que certas idéias são maravilhosas no papel, mas que graças a própria ambição humana, acabam desvirtuadas e levam a um desfecho muito diferente do proposto inicialmente.
(Conheci esse filme na faculdade, na aula de Economia Política, graças a uma resenha que era obrigatória. Não me julgue, rs)


Espero que tenham gostado e até quinta!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Grande Inverno da Rússia" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.