O Grande Inverno da Rússia escrita por BadWolf


Capítulo 31
Sob Trilhos e Discussões


Notas iniciais do capítulo

Olá,


Mais um cap, um pouco maior que seus antecessores. Reservei alguns momentos engraçados, também. Espero que gostem.

Boa leitura!



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Em algum lugar da Europa. 19 de Junho de 1910.


            A Companhia de Teatro ficou dividida em compartimentos diferentes no trem. Holmes, Adler e o menino Grigori ficaram destacados em um deles. Àquela altura, já corria por todo o grupo o fato de que Irene Adler estava tendo um romance com Robinson, de modo que ninguém desejava estar junto a um casal – salvo a criança – ainda mais, quando Irene Adler, sempre possessiva, era parte deste casal.

            Passou-se cerca de uma semana que o grupo viajava. Aos poucos, a paisagem que se observava das janelas do trem tornava-se mais intocável e distintiva, como se a Civilização parecesse algo distante. Era difícil acreditar que ainda havia terras assim pela Europa, pensou Holmes. Florestas e campinas, ainda ilesas da ação do homem e suas intervenções egoístas na natureza.

            -Um castelo! – exclamou um deslumbrado Grigori, ao ver um imponente castelo no horizonte, bem distante, mas não menos chamativo por isso. – Eu nunca vi um castelo antes!

            -Se eu soubesse onde nós exatamente estamos eu até poderia te ajudar a dizer que castelo é esse. – disse Holmes. – Mas desde cedo eu perdi a referência. Esse trem é tão... Rápido!

            -Verdade. –concordou Adler. – É o avanço da tecnologia.

            -A senhora já esteve em um castelo? – Grigori perguntou, fascinado.

Adler o respondeu, de maneira orgulhosa.

            -Sim, já. Mas umas duas vezes, apenas. Uma na Áustria e outra... Na Boêmia. – ela disse, com desdém, observando Holmes atentamente, que já ilustrava um sorriso sarcástico. Sabia bem que castelo da Boêmia era este. Ou melhor, o “dono” desse castelo.

            -A senhora já conheceu o Rei da Boêmia? –perguntou o menino, curioso. Foi a vez de Holmes intervir.

            -Er, Grigori... Onde esta conversa está nos levando? Por que tais perguntas, meu jovem? – perguntou Holmes, com incômodo e, ainda assim, certa paciência.

            O menino ficou ruborizado.

            -É que... Emily esteve me emprestando alguns livros. Como eu não sei ler, ela está lendo para mim. E ela me disse que o próximo que faria a leitura, depois que voltássemos de viagem, seria sobre um caso onde o senhor conheceu uma golpista que poderia acabar com o Rei da Boêmia.

            Irene Adler ficou corada de raiva. Golpista? Agora ela estava reduzida a uma mera golpista por um moleque de dez anos?

            Holmes percebeu que Irene estava enfurecida e achou graça, precisando engolir seu riso para não acabar gargalhando naquele trem. Apesar da situação inusitada, o detetive procurou contornar a situação. Mas antes que ele pudesse esboçar qualquer reação, o menino continuou. Sem dúvida, a empolgação de Grigori com o assunto o deixara implacável, quase impossível de se interromper.

            -Ela disse que iria me provar que as mulheres eram melhores do que os homens com essa história, porque o senhor foi derrotado por uma mulher. É verdade, ou a Emily está mentindo?

            Holmes quase engasgou com a pergunta do garoto, à medida que Irene Adler soltava boas gargalhadas. Embora o detetive tenha agido de modo mais educado anteriormente, Irene Adler não se fez de rogada com a situação e riu de modo quase descontrolado. As risadas de Adler só deixavam Holmes mais nervoso.

            -Não foi bem assim... – tentou contornar, mas Adler lhe interrompeu, triunfante, com o semblante já corado pelas risadas.

            -Não acredite nas palavras de um homem derrotado, rapaz. Mr. Holmes realmente foi derrotado por uma mulher e ela está...

            -Er, Miss Adler... Não vamos estragar a leitura do rapaz, vamos? Afinal, ele ainda não leu a história. Mas agora, você me deixou curioso, menino. Quantas histórias a meu respeito você já leu?

            -Enquanto o senhor me deixava na casa dos Watson, Emily leu quatro histórias. “Um Estudo em Vermelho”, “O Signo dos Quatro”, “Os Dançarinos” e “O Ciclista Solitário”.

            -Hum... E o que achou delas?

            O menino sorriu, de repente. – Incrível! E o que é melhor, eu estou ao seu lado participando de uma investigação.

Holmes ficou brevemente feliz em ver o menino contente.

—Bom, meu amigo Watson costuma exagerar em algumas coisas, e escrever de maneira um tanto romantizada, mas... Boa parte do que está nas páginas realmente aconteceu.

—Impressionante! Mas eu não entendo uma coisa: o senhor disse, acho que foi no “Signo dos Quatro”, não tenho certeza, de que o senhor jamais se casaria, para não afetar sua capacidade de julgar as pessoas. No entanto, o senhor é casado.

De imediato, Holmes ficara subitamente pálido. Irene Adler voltara seu rosto ao detetive, com a boca aberta em pasmo e o queixo completamente caído. Ao perceber a reação de Adler, Holmes começara a voltar a cor, entretanto em um tom corado.

—Er, Grigori... Acredito que o tema não é apropriado a uma criança.

O olhar gélido que Homes lançara ao menino fez Grigori perceber que acabara de cometer uma grande besteira. Certamente, ninguém deveria saber que o detetive Sherlock Holmes era casado. Muito menos Irene Adler. Como reação, o menino curvou o rosto.

—Largue disso, menino. O que está feito, está feito. – disse Holmes, erguendo o rosto do menino outra vez. – Agora, poderia me dar um minuto em privado com Miss Adler?

O menino assentiu. – Desculpe, Mr. Holmes. – disse, antes de fechar a porta.

Holmes apenas fez um gesto para que o garoto se calasse, enquanto ele deixava a cabine. Finalmente às sós com uma ainda estarrecida Irene Adler, Holmes dera um suspiro, enquanto estalava os dedos.

—Pode fazer a pergunta do século, Miss Adler. – disse, friamente.

Claro, Irene Adler não hesitou.

—O senhor é mesmo um homem casado?

Um longo silêncio.

—Sim.

—Mas... Casado, casado? Ou só...?

—Não! – exclamou Holmes, estarrecido com o que Irene queria dizer. – Eu sou casado, realmente. Casado de acordo com as Leis Britânicas.

—Casou-se em uma Igreja?

            -Em uma sinagoga, na verdade. Há cerca de oito anos atrás.

            -Oh. – Adler pareceu surpresa, outra vez. – Não sabia que o senhor era judeu.

            -Minha esposa era. Ou melhor, é, porque eu sei que ela está viva.

            -Claro! – exclamou Adler, satisfeita. – Estamos aqui procurando por sua esposa, não é? Esther! Um típico nome de judia.

            Holmes bufou. – Sim. Pretendemos resgatar a minha esposa. Ela... Ela se separou de mim há cinco anos.

            -Por quê? Não aguentou o senhor?

            -Engraçadinha. – resmungou Holmes. – Nós dois passamos por graves problemas, antes e durante o nosso casamento. No final das contas, nossa relação ficou desgastada e ela me deixou. Ponto final.

            -Mas você a ama, não é? Posso ver que sim...

            Holmes pareceu, curiosamente, ofendido e envergonhado com a afirmação. Isso só fazia Adler rir ainda mais e desejar deixa-lo possesso.

            -Por isso o senhor beija tão bem. Andou praticando bastante...

            As bochechas de Holmes estavam em um tom tão vermelho que mais pareciam sangue. Suas orelhas também estavam vermelhas, tanto de raiva quanto de vergonha.

            -Pare com isso, Adler. Isso não tem a menor graça. – ele disse, enquanto Adler quase se desmanchava em risadas. – Adler!

            Irene ignorou seu grito e continuou a rir.

            -Eu vou deixar você, sua louca, rindo sozinha nessa cabine e vou procurar por Grigori. – disse Holmes, fechando a porta e abandonando Adler rindo sozinha.

            Holmes caminhava pelo corredor do trem. Seus pés tremiam pelo chacoalhar do trem, sensação esta que estava quase despercebida por si, de tanto tempo que já estava de viagem naquela composição. A Companhia de Teatro estava toda concentrada em um compartimento do trem, rodeados em uma mesa onde faziam a brincadeira do copo. Risadinhas e gritinhos de sustos, muitas vezes potencializados pela vodka, podiam ser escutada nos corredores.

            Finalmente, Holmes encontrou Grigori. Ele percebeu que o menino conversar em sua língua natal com um homem bem arrumado, aparentemente russo. Os dois conversavam tranquilamente. Sobre alguma coisa que Holmes era incapaz de compreender. Depois, o estranho deixou Grigori sozinho e voltou para o trem, se protegendo da friagem.

            -Sobre o que conversavam? – perguntou Holmes, um tanto irritado consigo mesmo por ser tão ignorante no Russo a ponto de sequer conseguir “pescar” uma mera palavra dita em um sotaque diferente demais aos seus ouvidos. Afinal, ele tinha uma professora em casa por muitos anos. Ainda assim, apesar de ter aprendido russo, determinados sotaques eram praticamente incompreensíveis. E isso preocupava o detetive.

            O menino sorriu francamente.

            -Sobre o quão se sentia aliviado por encontrar alguém que compartilhasse do mesmo idioma. Ele disse que estava cansado de ficar no exterior e que não via a hora de reencontrar sua família. – respondeu o menino, enquanto voltava para dentro do trem.

            Holmes assentiu, conduzindo o menino até seus compartimentos. Certamente, ele sentiria essa sensação também neste país. E isso o incomodava.

            -Er, Grigori... Você poderia... Me ensinar mais algumas palavras em russo? Creio que teremos tempo para isto, afinal ainda falta muito para chegarmos a São Petersburgo.

            -Mas é claro, sir. – respondeu o menino. – O que quer saber?

            Holmes parecia olhar para os lados, um tanto tímido.

            -Algo que minha esposa não teve coragem de me ensinar. Palavrões. E não adianta fazer tal cara falseada de inocente, pois eu sei que você tem um vocabulário extremamente colorido para expor suas emoções e frustrações.

            Acuado, tudo que o menino Grigori pôde fazer foi assentir. Para não chamar atenções indesejadas, Holmes cochichava os ditos palavrões nos ouvidos de Grigori, que os repetia em voz alta, corrigindo a pronúncia e também tentando eliminar o sotaque britânico de Holmes se necessário. Por vezes, Holmes chegou a duvidar se o menino realmente estava lhe ensinando palavrões, mas ao ver um passageiro passar com profundo desagrado enquanto Holmes tentava acertar a pronúncia de uma das palavras ensinadas por Grigori, o detetive não teve dúvidas. Por mais desagradável que fosse, o menino realmente sabia como xingar, ficando atrás, talvez, de um marinheiro.

            Mas nada poderia se comparar à surpresa de Grigori em ver Holmes, um homem extraordinariamente educado e elegante aos seus olhos, a derramar palavras de baixo escalão com a frieza de quem recitava o nome de um livro ou uma receita de remédio.

            -Por que precisa de tantos palavrões, sir? O senhor é um homem tão educado...

            -Pode ser que eu precise, caso seja necessário me disfarçar de modo mais “popular”.


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            -Fronteira russa! Fronteira russa!

            Holmes estava naquele momento tentando aprender a pedir informações em russo quando ouviu os gritos. Grigori percebeu que Mr. Holmes era um aluno muito bom. Aprendia rapidamente, embora fosse um tanto exigente consigo mesmo e quisesse falar sem sotaque em tão pouco tempo.

            Ao ouvir os gritos do funcionário do trem, Holmes imediatamente se levantou e virou seu rosto para a janela. Ao voltar seu olhar rapidamente para Grigori, percebeu o menino tenso, inexpressivo e ainda sentado.

            -Estou cansado desta visão. – alegou o menino.

            Apenas alguns segundos depois, Holmes pôde entender o que quis dizer o menino. Rente a linha do trem, passava um grupo de homens, mulheres e crianças, visivelmente lavradores. Pareciam miseráveis. As crianças, sujas e descalças. Os adultos, com o peso de cem anos em seu olhar, transmitiam dor e cansaço por seu caminhar lento, carregando suas enxadas enquanto enfrentavam o frio.

            E apenas naquele momento, Holmes pôde entender porque Grigori foi embora da Rússia sem ao menos olhar para trás.


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            Talvez tenha sido um erro de minha parte. O menino não precisava voltar para este inferno, do qual certamente custou a sair. Como fui egoísta... Se Esther soubesse a chantagem que precisei fazer para resgatá-la... Uma chantagem com uma criança! Como sou miserável, mesquinho, vil... Eu estou usando Grigori ao meu bel prazer. Pouco me importo com seus medos e traumas. Tantos poderiam me ajudar, mas eu insisti em trazê-lo... Por que eu fiz isto? Por quê?

            -Está tudo bem, Holmes? – perguntou Adler. – Você parece aflito.

            Holmes cruzou os braços, ao ser cortado de seu devaneio. Desde o início da viagem, Holmes compartilhava a mesma cama que Adler, “sob circunstâncias amigáveis”. Nos últimos tempos, percebeu Holmes, Irene Adler estava menos provocante e mais amigável. No fundo, ela tinha seu próprio código de ética, e isso incluía, para sua surpresa, não atacar homens casados que ainda nutriam amor por suas esposas.

            -Desculpe incomodá-la... – ele disse, mexendo-se mais uma vez na cama. Ao virar seu rosto, notou que Grigori dormia tranquilamente na cama ao lado, ao contrário de si.

            -Insônia, é? Por quê? Está ansioso?

            -Sim, pode-se dizer. Afinal, chegaremos a São Petersburgo em uma semana.

            Foi a vez de Adler se mexer, Holmes sentiu.

            -Mal vejo a hora. Estou cansada desse maldito trem.

            Holmes riu, de maneira quase inaudível.

            -Acho que nem você e nem eu estamos com idade para viagens tão longas.

            -Eu sou uma mulher do mundo. Viagens longas fazem parte da minha natureza.

            -Adler, admita. Você está ficando velha demais para isso...

            -Não me chame de velha!

            -Shiu! – pediu Holmes, ao ver que Adler se exaltara. – O menino...

            -É verdade, o menino... É melhor voltarmos a dormir.

            No entanto, Holmes estava se levantando.

            -Vou fumar.

—Não fume aqui dentro. As janelas estão fechadas e...

—Sim, eu sei. Agora, se me dá licença... – disse Holmes, pegando seu cachimbo. Ele se levantou, ainda na escuridão do quarto, e vestiu seu robe. Iria fumar no próprio corredor, aproveitando um pouco da luz do luar.

            Holmes tinha definido como local de fumo naquele trem – se é que era possível o fazê-lo legalmente – o vão entre os vagões. O desejo por uma tragada em seu cachimbo era maior que o vento gélido e cortante daquela noite. Boa parte dos vagões, ele notou, já se encontrava com as luzes apagadas. O frio rigoroso das fronteiras da Rússia costumava mandar as pessoas mais cedo para a cama. Sozinho, apreciando seu cigarro, o detetive não pôde deixar de pensar em Esther. Não nos dias felizes e ensolarados de Montpellier, mas nos dias frios da Rússia. Ela falava pouco dessa época. Holmes sabia que ela tinha suas razões. Perdera a família toda aos poucos. Um pai morto, sem cadáver para enterrar. Uma mãe arrasada, depressiva. Um irmão, de modo estúpido. Nem todas as suas perdas aconteceram em solo russo, mas Holmes sabia que o tijolo de sua base familiar fora arrancado ali, na Rússia, pelas mãos do Duque Ivanov e suas maldades. Na Rússia, Esther perdera a inocência, a esperança. E no entanto, cá estava ela, de volta a esse país que ela sempre havia tido como “odioso”.

            Tudo porque ele deu às costas de seu próprio filho. Sangue de seu sangue.

            -Esther... Perdoe-me... – balbuciava Holmes, tendo suas palavras quase inaudíveis pelo chacoalhar do trem e pelo vento sibilante daquela noite fria.


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            Foi com muito alívio que Holmes percebeu que seus cálculos estavam incorretos. Havia se passado já alguns dias quando, em uma manhã fria, Holmes pôde sentir o trem desacelerar, e o som de um apito a anunciar.

            -Adler... – ele pedia à mulher, que aparentemente estava dormindo.

            Só o que ouviu foi um resmungo. Holmes decidiu não incomoda-la mais, e vestiu seu robe. Era cerca de seis da manhã, e ele notou, ao abrir a porta do lado de fora de seu aposento, que não havia ninguém no corredor. Todos estavam dormindo.

            -Estamos chegando a São Petersburgo. – avisou Grigori, que também estava acordado. Sentado à sua cama, com o cabelo levemente despenteado e com o semblante sonolento. Holmes sabia que o menino estava inquieto desde o momento em que atravessaram a fronteira, e no fundo, se sentia culpado por isso. Sabe-se lá que tipos de fantasmas estavam sendo despertados com esta viagem...

O aviso dos funcionários, em um inglês sofrível, lhe confirmava o que parecia cada vez mais óbvio: o trem finalmente tinha chegado ao seu destino final: a fria e aparentemente inóspita cidade de São Petersburgo.

            Havia, é claro, a nada convidativa neve, que caía sem parar. Nem mesmo o inverno londrino, que fazia muitos ingleses fugirem ou evitarem Londres, poderia se comparar àquele clima absurdamente frio. Holmes só enfrentou frio parecido assim quando estivera nas montanhas do Oriente, em sua passagem pelo Nepal durante o seu Hiato. A ponta de seu nariz estava gélida, e pontas de gelo se formavam em sal barba e sobrancelhas, apenas no mero contato com o ar frio.

            -Nem meu casaco de pele dinamarquês está dando conta deste frio... – resmungou Adler, praticamente camuflada em um rigoroso casaco e chapéu. – Bem que ouvi dizer que este ano teríamos o pior inverno da Rússia.

            -Todos os anos eles dizem a mesma coisa. – disse Grigori.

            Por um momento, enquanto caminhava com as malas, um homem apressado passou perto de Adler, e acabou tocando-lhe o ombro de maneira brusca. Adler, obviamente, virou-se com a truculência, e ouviu um resmungo nada educado, mesmo para quem pouco conhecia a língua.

            -Não posso acreditar que troquei manhãs calorosas em Madri para isto: neve e gente mal-educada.

            -Gente mal-educada existe em qualquer lugar. – contornava Holmes. – Olhe, parece que aquele é o Homem da Companhia, não?

            Adler sorriu. – Ele mesmo. Mr. Igor Luzvt!

            O homem, bastante alto e de semblante bem asseado, acenou rapidamente, reconhecendo Irene Adler em meio a multidão.

            -Miss Adler, é um prazer revê-la... – disse, em um inglês carregado no sotaque, porém correto. – Vejo que está em boa companhia. Aliás, sir, eu não me lembro do senhor...

            -Na verdade, há uma explicação para isto, Mr. Luzvt. Este é Sean Robinson, e é o nosso novo tenor. Ele vem de Toronto, no Canadá.

            -Um norte-americano, igual a você. Tens minhas saudações, Mr. Robinson. E quem é o menino?

            -Este é meu filho, Grigori.

            O homem abriu um sorriso. – Ah, um russo, pelo que vejo!

            -Na verdade, ele é inglês. A mãe dele – minha falecida esposa – era russa, e se chamava Natasha Robinson.

            -Oh! Estou surpreso que tenha laços com nosso país, Mr. Robinson. De qual região pertencia sua esposa? Daqui, de São Petersburgo, ou seria Moscou?

            Holmes pareceu hesitante, ao ouvir uma lista de cidades que ele desconhecia, ou sequer sabia pronunciar. Porém, Grigori interveio.

            -Minha mãe veio de Lyovikh, sir.

            O homem pareceu surpreso. Olhou hesitante para Holmes e Adler, e depois para o menino.

            -Bom, er... Essa cidade eu realmente não conheço pessoalmente... Mas afinal, o nosso país é tão grande, não é... Enfim, me acompanhem.

            Holmes trocou um olhar com Grigori, antes de embarcar. Percebeu que havia, é claro, alguma razão para a escolha da cidade, mas sabia que aquela não era a hora mais apropriada para perguntar.

            Ao finalmente serem recepcionados pelo calor aconchegante do hotel, Holmes teve a impressão de sentir alívio por todo o seu corpo. O hotel onde ele, Adler, Grigori e o resto da Companhia ficariam hospedados era aconchegante e muito luxuoso, e destoante da realidade encontrada do lado de fora: grupos de mendigos se abrigando em tonéis com fogo, prostitutas lançando olhares maliciosos, e pivetes assaltantes de carteira.

            -Já pedi um café. – disse Adler, se desfazendo de seu casaco de pele. Holmes tentava acender a lareira, enquanto Grigori se esparramava na luxuosa cama de casal, deixando escapar um sorriso de orelha a orelha com tamanho luxo jamais provado em sua vida.

            -Para economizarmos, a hospedagem de Grigori será compartilhada com a nossa. – disse Adler.

            -Sem problemas. Nós já dividimos uma cabine com ele no trem e eu não vi problema algum. E além de quê, não há nada aqui que ele vá atrapalhar.

            Adler ficou chocada com a afirmação.

            -Bom, não é bem isto que pensam os demais.

            -Que vão às favas. – respondeu Holmes.

            -Irá criar uma reputação daquelas, Mr. Holmes.

            -Se uma coisa eu aprendi nestes meus anos de casado, Miss Adler, é que o “tipo de coisa” que está a se referir não necessariamente precisa de um horário para acontecer. E creio que todos sabem bem disto, inclusive a senhora.

            -Hum... – Adler observou, em um tom provocante. – Então, o senhor era um homem de horários pouco ortodoxos para isto? Realmente estou surpresa. Pensei que fosse o típico vitoriano que aderia apenas a obrigações matrimoniais uma vez por semana e a partir das dez da noite...

            -E porque eu faria isto? – perguntou Holmes, de frente a lareira e sem perceber que Irene Adler se aproximava dele, tal como uma predadora.

            -Sua educação anglicana, ora. Aposto que não faltava um culto de domingo e que cresceu acreditando que bebês saiam de repolhos.

            Holmes sorriu para si mesmo. – Meus pais jamais me deram tal orientação. E os teus? Ah, perdoe-me tocar neste assunto. Esqueci que você era uma órfã, não é? Desde os dez anos, criada em um orfanato católico... Bom, parece que aquelas freiras fizeram um mal-trabalho neste departamento...

            Ao virar-se, para provocar Adler, Holmes acabou por ser estapeado.

            -Jamais... Ja-mais fale de meu passado desta maneira. – gritou Adler.

            Ainda levando a mão ao rosto, e sentindo o ardor do tapa queimar sua pele, Holmes sentiu vontade de rir, mas se segurou. Adler escondeu seu rosto entre suas mãos, e riu.

            -O senhor é um grandessíssimo e insuperável filho da puta. Ainda estou surpreso que uma mulher tenha decidido se casar contigo. Gostaria muito de conhece-la, e também de parabeniza-la.

            -Parabenizá-la? Pelo quê?

            -Por ter percebido seu erro a tempo e ter se livrado de um homem tão escroto como o senhor.

            Holmes franziu o rosto, lançando seu olhar mais mortal. Não pareceu surtir efeito. A discussão certamente teria se prolongado, se Grigori não tivesse voltado do banheiro.

            -Senhores? Vocês estão bem? – perguntou o menino, com o cabelo despenteado e escorrido.

            -Sim, estamos. – respondeu Adler, passando sua mão pelos cabelos de Grigori, enquanto Holmes mexia em suas malas, retirando algumas peças de roupa. – Não há com o que se preocupar. Se bem conheço crianças como você, eu sei que ouviu a nossa pequena discussão atrás da porta.

            -Eu não ouvi...

            -Não precisa mentir. – disse Adler. – Eu tenho certeza de que meu filho fez o mesmo em sua idade. Mas não há com que se preocupar. Dois adultos reunidos e de cabeça dura sempre acabam chegando a isto. Uma briga ali, e outra ali, mas... Tudo fica bem no final.

            O menino nada mais disse, apenas assentindo com a cabeça.

            -Agora, vamos pentear esse cabelo... Você precisa estar bem apresentável para o jantar. – disse Adler, sacando um pente de sua bolsa.


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Notas finais do capítulo

Gostaram do Cap??

Adler e Grigori estão se tornando especialistas em deixar o Holmes em saia justa. Podem esperar por mais confusão desses dois.

No próximo cap, já teremos Holmes começando sua investigação. Vejamos que possibilidades se abrirão ao detetive em sua busca por Esther - e tentativa de redenção, de certa forma.

Obrigada por acompanharem e deixem seus reviews!!



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