O Segredo da Lua escrita por F L Silva


Capítulo 23
Capítulo 23 - Olhos Oscilantes




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Foi completamente estranho e abominável estar de volta a São Diego. Tudo ali ainda cheirava a solidão, agora acrescentado a um odor pungente e horripilante de cinzas onde quer que você vá.

Parecia estranhando o cadáver ser velado num reformatório, mas Théo, de maneira estranhamente familiar, já se sentia parte desse mundo caótico. Não se espantou nem um pouco quando sua mãe lhe disse que o funeral seria no instituto e que depois da cerimônia, o corpo seria levado para o cemitério.

Kalleo não tinha muitos amigos. Théo sabia disso. Passou os últimos três anos estudando na São Diego para ficar a vista da madrasta Sabrina. E ela deve ter achado mais simples o funeral ser realizado ali.

De acordo com o que lhe contaram, o corpo de Bryan tinha sido enviado a sua família. Eles tinham optado por enterrarem-no próximo a onde ele morava.

Estavam na parte do gramado ao lado do prédio dos dormitórios. Cadeiras de plásticos tinham sido uniformizadas de dois lados, de modo que uma pequena passarela fora formada entre elas, facilitando o acesso para o caixão à frente. Um padre baixinho e careca estava logo atrás do caixão onde estava o corpo de Kalleo, recitando passagens bíblicas num sotaque italiano. Era quase difícil entender o que ele tentava falar, mas todas as pessoas anuíam para ele.

Havia pessoas que Théo não conhecia, sentados nas primeiras fileiras. Com certeza eram parentes de Kalleo. Sabrina também estava lá, vestindo um longo vestido preto, deixando os braços nus. Alunos do terceiro ano com que ele estudava também estavam presentes. Théo podia reconhecer Toby, Key e a garota de cabelos oxigenados entre os alunos. Vicki também estava a um canto, afastada. Não ultrajava o sorrido que sempre carregava consigo. Théo fixou o olhar nela por um momento, agradecendo mentalmente. Vicki tinha sido de grande ajuda tanto Kalleo e Théo, quanto para Zoe.

Até Megan estava lá, vestida num vestido negro com mangas compridas e luvas de renda preta. O cabelo louro estava solto, cobrindo grande parte de seu rosto, inclusive a pele queimada na lateral esquerda da face.

Uma coisa todos tinha em comum: carregavam feições tristes no rosto. Era irônico Théo pensar que ele fosse o único arrasado com a morte de Kalleo quando outras pessoas, assim como ele, se importavam com Kalleo tanto quanto ele. Ele não era o único que estava sofrendo com a perda. Havia outras pessoas que também amavam aquele garoto.

Uma monotonia que há em todos os funerais: todos vestiam preto. Ele não fazia ideia de quem incorporou a cor preta ao luto, mas a cor escura dava um ar fantasmagórico à coisa toda, como se olhassem para um poço no qual tudo que se podia ver da água no fundo era a escuridão.

Théo e seus pais ficaram sentados durante toda a cerimônia na última fileira. Ele não queria se aproximar demais e sentir os olhares dos ex-colegas de sala sobre ele, observando-o com pena.

No fim da cerimônia, algumas pessoas se levantaram para falar sobre Kalleo. Sabrina falou um pouco de como ele era, o garoto brilhante que sempre achou. Pela primeira vez, Théo a viu fragilizada, deixando de lado a ostentação arrogante que sempre carregava consigo. Ela realmente se importava com ele, mesmo que ele não tenha sido seu filho.

Uma garotinha também falou. Devia ter aproximadamente nove anos de idade e vestia um pequeno vestido preto rodado que lhe cobria até os joelhos. Os cabelos negros caiam em cascatas pelas costas. Abaixo da franja, olhos azuis claros brilhavam enquanto ela falava:

― Eu sempre me irritava com o fato de meu irmão não poder ficar muito tempo comigo quando ia me visitar ― dizia ela, a cabeça cabisbaixa. ― Ele sempre estava aqui, e quando conseguia um tempo, ia me ver. Mas agora eu o perdi, assim como muitos... Agora não terei mais o pequeno tempo que tinha com ele ― a voz da garotinha começou a falhar, transformando-se num sussurro. ― Eu queria poder voltar no tempo e ir aos dias em que ele me visitava. Iria aproveitar cada segundo que tive com ele e reparar cada segundo no qual perdemos quando eu me irritava quando ele ia embora e dizia que não queria mais vê-lo.

Cada minuto que se passava era uma garra afiada cortando a pele de Théo. Agonizante e aterrorizador. Ele fungava repetidamente, mas evitava chorar. Não havia por que chorar sua dor na frente de todos como testemunhas do que ele sentia. A coisa toda entre Kalleo e ele era somente deles e não correspondia a mais ninguém. Foi por isso que ele não falou nada.

Quando a cerimônia terminou, uma música lenta começou a tocar nas caixas de sons espalhadas por todo o instituto. A melodia melancólica acompanhada pela voz de um homem começou a tocar, mas ninguém pareceu perceber. Ninguém deu importância. A banda Coldplay cantava lentamente a música “The Scientist”, e Théo tinha quase certeza de que tinha sido a irmã de Kalleo quem tinha pedido aquela música.

Em grupos, as pessoas andavam lentamente até o caixão de mogno, olhando fixamente para o corpo e se afastando logo depois. Sabrina ficou afastada a um canto, os olhos lacrimejados analisando a multidão, mas evitando olhar para o caixão.

― Quero ir sozinho ― Théo pediu para seus pais.

Enquanto andava até o caixão, sentiu as pernas bambearem e o coração no peito vibrar com mais intensidade. A mesma tontura que o atingia ao sentir medo lhe alcançou, e quando chegou ao caixão, não conseguiu conter as lágrimas. Mesmo vestido num lindo terno preto e com o cabelo rebelde penteado de lado, era inconfundível o rosto de Kalleo, branco como papel. Os lábios antes rosados estavam brancos, sem um pingo de sangue. O rosto não parecia ter nenhum hematoma, mas ele sabia que era apenas um efeito da maquiagem. Kalleo ainda era Kalleo. Lindo como sempre foi. Com os olhos fechados, ele apenas parecia estar dormindo profundamente.

Théo fungou enquanto enfiava a mão no bolso do paletó do terno que seu pai pegara em casa para ele usar. Ninguém a volta os olhava, todos conversavam entre si, lamentando a perda com a família. Era como se eles estivessem sozinhos. Apenas Théo e Kalleo.

― Você está tão lindo ― sussurrou Théo, passando a mão pela bochecha fria de Kalleo. ― Eu fiz uma coisa pra você ― e levantou um pedaço de papel dobrado. ― Escrevi uma carta de despedida. Não a li para todos ouvirem, por que acho que isso é uma coisa só nossa.

Théo engoliu em seco e secou as lágrimas do rosto com as costas das mãos. Depois, cautelosamente, sem que ninguém visse, enfiou a carta no bolso do paletó de Kalleo.

― Espero que goste ― sussurrou e encostou os lábios na testa de Kalleo, beijando-o de leve. ― Eu te amo. Vamos nos ver de novo, O.K.? Tudo vai ficar bem. Ainda vamos nos ver. De novo. Eu prometo ― balbuciou. ― Não importa onde seja. Ficaremos juntos novamente.

* * *

Seu quarto ainda era seu quarto quando adentrou, cautelosamente, nele. Primeiro enfiou a cabeça pela pequena abertura da porta, depois içou todo o corpo para frente. A cama continuava desarrumada, sua mochila ainda estava jogada de lado no chão e suas roupas permaneciam exatamente onde as deixou na cômoda.

Théo tentou ignorar a rajada de lembranças lhe invadindo a mente de modo claustrofóbico enquanto andava lentamente pelo quarto que chegara a chamar de seu. Mas isso não era verdade. Durante o tempo que esteve ali, nunca fora de fato o seu lar. Sua vida pertencia ao instituto, como uma breve introdução ao Inferno. Mas, de certa maneira, ele encontrou um lar onde jamais imaginaria encontrar: o reconforto da presença de Kalleo. Era irrelevante e irônico dizer que ele foi apenas uma pessoa passageira em sua vida, quando na verdade Kalleo foi mais que isso: um professor.

Um professor porque ensinou a Théo coisas que ele jamais aprendeu com os demais ou erraticamente sozinho. Kalleo o ensinou a amar da forma que jamais pensou que seria capaz, ainda mais sendo um garoto essa pessoa. Nunca chegou a gostar de uma pessoa tanto quanto gostou de Kalleo, ansiando estar perto dele o tempo todo. E, pela primeira vez, Théo colocou outra vida a frente da sua. Por acaso não foi por isso que aceitou fugir quando Kalleo sugeriu?

Ele também ensinou outras coisas, como sobreviver dia após dia as intermináveis horas que levavam até o fim e a chegada de outro dia. Bom, pelo menos no começo e enquanto estiveram bem. Lembrava-se dos dias em que Kalleo lhe deixava a flor da pele e confuso.

Era estranho pensar em Kalleo no verbo do passado. A ideia de que ele tenha morrido ainda é totalmente estranha em sua mente, não se deixando apagar, como uma última fagulha em seu peito que ainda vibrava com uma intensidade difusa.

Ainda era visível em sua mente quando fechava os olhos e pensava nele. Os lábios, os olhos, as bochechas, o queixo levemente repartido, o nariz pequeno e delineado e a camada de cabelos negros em volta da cabeça. O corpo alto e esbelto que Théo gostava tanto de tocar e queria poder fazer isso novamente. Tocar com suas mãos a pele macia que tanto estava familiarizado.

Afastando os pensamentos da cabeça, tentou se desviar dos devaneios que o invadiam a qualquer momento do dia. Pegou sua mochila no chão e enfiou seus pertences dentro dela. Quando se virou para ir embora, deu de cara com Sabrina parada no batente da porta, de braços cruzados, olhando para o quarto descritivamente.

― Eu nunca pude ter filhos ― falou ela, lentamente. ― Então quando me casei com o pai dele, achei que pudesse ser uma mãe para Kalleo. Eu tentei, de verdade. ― Théo olhava silenciosamente para ela, sem demonstrar nada. ― Quando John morreu, a tia de Kalleo, que criava a irmã dele, quis levá-lo para viver com ela, mas ele preferiu ficar comigo na casa que o pai dele deixou.

― Ele me contou... ― murmurou Théo.

― Dei o melhor de mim para tentar ser como uma mãe e um pai para Kalleo. Sempre o vi como um filho. Queria proteger ele a qualquer custo e acabei por me casar novamente. Ele parecia legal. Parecia gostar de Kalleo. Até que... ― E sua voz falhou. Sabrina fungou e esfregou os olhos.

Théo sabia o que ela iria falar. Até que Kalleo foi abusado pelo ex-marido dela. O maior trauma da vida de Kalleo. E Théo soube da pior maneira possível, vendo pessoalmente o efeito causado por aquele transtorno.

― Eu me sentir culpada por aquilo ― ela continuou. ― E resolvi trazê-lo para cá. Não pensei no que ele acharia de ficar aqui, mas eu só pensava em protegê-lo. Tê-lo a todo o momento por perto. Fui tão cega por não perceber o quão infeliz ele estava nesse inferno! ― zombou ironicamente, revirando os olhos. E então Sabrina olhou diretamente nos olhos de Théo. ― Mas você chegou. E alguma coisa aconteceu com ele e, de repente, uma luz pareceu se acender. Ele teve uma oportunidade de ser feliz nesses últimos dias. Eu sei disso, por que via o rosto dele sempre que estava na secretária. Ele cantava animadoramente enquanto estava sozinho, coisa que nunca o vi fazer.

Théo se fundou no chão, sentindo seus pés virarem chumbo. As lembranças o estavam puxando de volta.

― Na noite do incêndio, fiquei louca procurando por ele. Quando percebi, as chaves do meu carro tinham desaparecido e ele não estava mais estacionado na garagem. Kalleo e você não estavam por nenhum lugar no instituto. ― A voz de Sabrina virara um sussurro baixo e pouco audível, mas Théo conseguia ouvir, respirando lentamente. ― Eu não o culpo, Théo, por ele ter morrido no acidente. Qualquer um no lugar de vocês teria feito o mesmo. A única culpada por ele ter morrido foi eu. ― E, pela primeira vez, lágrimas escorreram livremente pelo rosto da diretora, que não fez nada para impedi-las. ― Eu deveria ter sido uma mãe melhor para ele e perceber o que acontecia. Eu devia ter dado mais atenção a ele. Eu devia... ― E não conseguiu mais falar, apenas chorar.

― Você não tem culpa ― falou Théo. ― Ninguém tem culpa...

E, de fato, ninguém tinha culpa pela morte de Kalleo. Tinha sido uma jogada do destino.

Théo nunca imaginou ver Sabrina fragilizada como a via diante de si, naquele momento. Desde que a conhecera, ela sempre fora bastante astuta e arrogante. Agora, mesmo quando ele a abraçou, sentido a mulher magra em seus braços, compartilhava da mesma dor que ela. Ela havia perdido um filho.

Théo havia perdido um amor.

* * *

Kalleo foi enterrado ao pôr do sol no cemitério local da cidade, próximo a sua casa. A todo o momento, Théo não se desgrudou do caixão.

Não voltaram a abrir novamente o caixão antes de descerem a sete palmos da terra. Nenhum último adeus. Théo apenas ficou há um metro de distância, atrás da cerca feita por cordas, observando enquanto desciam o caixão fechado coberto de flores lentamente pelo buraco. Os últimos raios do sol poente batiam na tampa de mogno, fazendo-a brilhar.

Théo se segurou aos seus pais, enquanto tentava conter as lágrimas. Era estranho enterrar alguém que se ama abaixo da terra. Era ainda mais estranho dizer adeus, sabendo que ela não poderá ouvir ou sequer responder. Era apenas mais um adeus perdido na escuridão vazia do vácuo.

Théo depositou uma tulipa vermelha sobre o caixão, assim como várias pessoas da família fizeram. Todos colocavam uma rosa branca ou vermelha. Mas sua tulipa era a única que se destacava entre as demais.

Quando jogaram a primeira pá de terra sobre a cova, Théo virou as costas. Não queria ver o momento em que jogariam terra sobre a cova.

― Você está bem, querido? ― murmurou sua mãe, condescendente.

― Eu só preciso ficar um pouco sozinho.

― Tudo bem ― concordou seu pai. ― Estaremos te esperando no carro.

Andar pelo cemitério para pensar nunca fora algo que passou pela cabeça de Théo. Mas no momento, era o mais adequado a se fazer. Precisava apaziguar a mente antes que tivesse que voltar para o hospital. O efeito dos sedativos estava passando, e pouco a pouco as dores causadas pelos hematomas pelo corpo tornavam a irromper.

A grama mal aparada do cemitério o lembrava do gramado da São Diego. Se olhasse fixamente para ela, poderia imaginar estar de volta ao instituto. Mas quando tornava a erguer a vista, via-se no espalho vazio e fantasmagórico que era o cemitério.

Folhas de pessegueiros estavam caídas no chão e Théo as chutava enquanto andava. Passou por inúmeros túmulos e mausoléus, mas não parou em nenhum para ver o nome escrito nas placas.

Quando chegou diante de um carvalho, ele paralisou. A recordação da presença de Kalleo ao seu lado tornou-se vívida, como na noite em que ambos se beijaram embaixo do carvalho na São Diego e quando os dois escalaram a árvore até em cima para ver o céu à luz do sol poente. Os dedos macios de Kalleo à volta de seu corpo, o segurando firmemente sobre o galho.

Théo foi puxado para fora de seu devaneio com o farfalhar de folhas a suas costas. Quando se virou, Juan estava parado com as mãos enfiadas na calça jeans. Os lábios estavam pressionados um contra o outro.

De repente, o sangue subiu a cabeça de Théo, lembrando-se de tudo o que ele tinha feito a ele e Kalleo na noite do incêndio.

― O que você quer? ― sibilou.

Juan se retraiu.

― Quero conversar com você...

― Não temos nada para conversar. Vai embora!

Mas Juan avançou o passo para frente, e Théo recuou.

― Quero poder te explicar o que aconteceu naquela noite.

― Você quer explicar por que tentou matar Kalleo e eu? ― zombou, a hostilidade visível em sua voz.

― Eu nunca tive essa intenção ― balbuciou, os olhos implorando. ― Depois do... nosso beijo e da briga com Kalleo, fiquei bravo com ele. Por ter se metido em tudo daquela maneira e... Depois que fui dispensado da diretoria, Bryan me procurou. Disse que ia se vingar de Kalleo e queria minha ajuda. Eu fui um idiota, estava sedento por vingança. Sempre fui impulsivo e não pensei nas consequências. Bryan alegou que não iria machucar você. Apenas usá-lo para atrair Kalleo. Quando ele batia em você, eu sempre discutia com ele, dizendo que aquele não foi o acordo. Você se lembra? Tentei tirar você de lá...

Théo fechou os punhos, o ritmo do coração acelerando. As palmas de suas mãos ficaram suadas e sentia o rosto vermelho e os olhos endurecidos.

― Você tem razão, Juan ― destilou. ― Você é um idiota.

― Me desculpa, Théo ― sua voz oscilou entre um sussurro, o rosto declarando livre arrependimento. Mas Théo não aceitou. Tudo que conseguia fazer era olhar para Juan com raiva e nojo.

― Vai embora ― arquejou, os lábios tremendo enquanto seus olhos voltavam a marejar. ― Eu não quero te ver nunca mais...

― Por favor, me perdoa. Eu sinto muito...

E então Théo se descontrolou:

― VAI EMBORA! ― vociferou, as palavras saindo com urgência. ― NÃO HÁ NADA QUE VOCÊ POSSA FAZER. ELE ESTÁ MORTO. KALLEO MORREU!

Ele observou enquanto Juan recuava cabisbaixo em direção à entrada do cemitério. Théo caiu de joelhos nos chão, arrancando punhados de gramas com as mãos. As lágrimas voltaram novamente e inundar seu rosto.

― Ele morreu... ― murmurava repetidamente.

* * *

Théo acordou às duas horas da madrugada em pânico, logo depois de ter tido um pesadelo no qual corria por um corredor longo e escuro e só podia ouvir a distância uma voz gritando freneticamente por seu nome. A voz dele. De Kalleo. E por mais que ele corresse, entrando em vários corredores diferentes, não conseguia alcançá-lo. Era simplesmente impossível.

Sentando-se na cama ereto com o susto, o peito arfando enquanto olhava por toda a extensão do quarto hospitalar. Sua mãe estava dormindo na poltrona do outro lado do cômodo e seu pai devia estar na cafeteria ou teria dado um pulo em casa.

Foi sufocante voltar para o hospital no começo da noite, logo depois do enterro de Kalleo. Viera o caminho inteiro abalado, com o rosto encostado na janela do carro, vendo a paisagem passar apressadamente enquanto voltavam para o hospital. Tinha recolocado a agulha de soro em seu braço novamente, mas o doutor Ferrara alegara que ele não precisava mais do colar cervical. Depois do banho, passaram mais uma dose de pomada no hematoma deixado pelo cinto de segurança em seu peito e trocaram as faixas que prendia seu pulso esquerdo. Não foi preciso voltar a vestir a camisola hospitalar. O Sr. Ferrara disse que ele podia vestir suas roupas desde que fossem confortáveis e leves. Automaticamente sua mãe se prontificou a buscá-las em casa e insistiu para levar a mochila que Théo trouxera com seus pertences do instituto, mas ele não deixou, por que de algum modo, suas roupas naquela mochila fazia parecer haver uma conexão direta com Kalleo, por ele as ter usado enquanto estivera no internato.

Théo se recostou de volta na cama, fechando os olhos e tentando dormir novamente, mas quanto mais tentava, mais impossível parecia ficar. A voz de Kalleo no sonho lhe vinha diretamente à mente e isso o deixava atordoado. Ele se mexia de um lado para o outro na cama, tentando não emitir nenhum ruído para acordar sua mãe, que há dias não conseguia dormir bem.

Depois de trinta minutos, desistiu e voltou a se sentar na cama. Pela janela aberta, fitou a Lua cheia no lado de fora, no céu limpo cercado por estrelas. Era quase um milagre ter essa vista límpida, sem que as nuvens ou a poluição de luz impedisse ver o céu como verdadeiramente era. Sempre lhe foi estranho, quando criança, o modo com que a Lua mudava de forma e coloração, e o quanto dava forças para iluminar a noite fria e escura. Mas ela sempre esteve lá. No céu. Em todas as noites em que punha a cabeça para fora da janela do quarto e a flagrava lhe observando do alto.

Puxando sua mochila que estava caída no chão, abaixo da cama, revirou o seu interior em busca de seu único livro que carregara consigo para a São Diego. Enquanto tocava a capa de brochura do exemplar de Morte Súbita, pensou nas vezes em que o leu e lhe serviu como ensinamento de vida. Foi por isso que o levou para o instituto. Como uma forma de autoajuda. Mas Kalleo acabara por ser sua âncora. Ele também tinha lido. Na noite depois de ter saído da enfermaria por ter sido atingido por Bryan com a bola de vôlei, Kalleo foi até seu quarto, preocupado em como ele estava. Acabaram conversando por um tempo e Théo acabou por falar de seu livro, e então emprestou a ele. Pouco depois disso, Kalleo mudou a forma com que tratava Théo, evitando-o, e Théo mal se lembrou do livro que estava com ele. Até o momento em que Kalleo tentou se desculpar com ele e entregou de volta o livro. Desde daquele dia, ele não chegou a tocar novamente nele. Apenas tinha-o deixado sobre a mesinha de cama.

Folheando as páginas do livro, um pequeno pedaço de papel voou para fora, caindo sobre seu colo. Théo o pegou, seu coração acelerando de repente. Escrito numa folha de caderno comum, leu aos sussurros as cinco palavras rabiscadas em letra cursiva:

 

Eu sempre esperarei por você

 

Ele sufocou o arquejo, a mão direita cobrindo a boca. Seu corpo começou a tremer de cima a baixo, e uma sensação calorosa percorreu por sua espinha.

Ele tinha escrito aquelas palavras quando tentou se desculpar com ele e disse que gostava dele pela primeira vez. Provavelmente ele já esperava pela reação de Théo naquele dia, em que o expulsou do quarto, alegando não querer mais saber dele. Por isso escrevera aquela frase. Mas as palavras de Kalleo não atraía Théo para aquela noite, e sim para o agora, o presente.

Era a prova do amor de Kalleo por Théo. Kalleo iria esperar por ele onde quer que esteja, e Théo acreditava de verdade. Não importa onde estivessem, eles continuariam apaixonados um pelo outro. E esperando. E para ele, não tinha sido apenas só coincidência encontrar aquele papel dentro do livro hoje. Algo no fundo de sua mente sussurrava que fora obra do destino. Estava tentando lhe dizer algo. Mas o quê?

Com as lágrimas ameaçando irromper por seus olhos, Théo não conseguia pensar direito. Algo o sufocava naquele pequeno quarto claustrofóbico. Algo o puxava para baixo, como a maré de um oceano profundo. O quarto escuro e abafado não era um lugar confortável, era uma prisão, assim como a São Diego.

Jogando os lençóis de lado, pulou para fora da cama, seus pés descalços tocando o piso frio de cerâmica. Estava para se afastar da cama quando percebeu a agulha ligada por um tubo de soro no tripé até a dobra do seu braço. Puxando os curativos, retirou a agulha lentamente, deixando-a sobre a cama. Doeu um pouco, mas Théo já estava familiarizado com a dor.

Com o pedaço de papel dobrado na mão, ele saiu do quarto, fechando a porta lentamente atrás de si para não acordar sua mãe. O corredor estava iluminado por luzes fluorescentes e completamente ausente de pacientes e enfermeiros.

Théo não sabia exatamente para onde estava indo, mas continuou caminhando descalço pelo corredor até chegar numa escadaria de concreto. Segurando no corrimão, subiu apressadamente os degraus, passando por mais de cinco andares até irromper numa porta trancada que dava para o terraço do prédio. Estava trancado por uma trava e Théo a abriu, saindo para a noite fria.

Respirou profundamente ao ar livre, fechando os olhos enquanto sentia o vento bater em seu corpo e ondular suas roupas. Andou lentamente até a borda do terraço. Olhar para a rua lá embaixo não lhe causava a tontura que costumava lhe arrebatar. Naquele momento, ele não tinha mais medo de altura. Não tinha medo da morte. Não tinha medo de nada. Eu sempre esperarei por você, as palavras foram sussurradas em sua mente.

Cautelosamente, sentou-se na borda do terraço, deixando as pernas penduradas. O que alguém diria caso o visse sentado ali? Que, com certeza, queria se matar, e não apenas pensar, tirar o peso da mente.

Ele olhou para tudo a volta, a escuridão infinita da noite. Como o universo é enorme, ele pensou. Enorme demais para uma simples pessoa como ele, perdida entre milhares.

Em algum lugar, lá embaixo, nas luzes que piscavam freneticamente, havia alguma garotinha chorando pela perda do irmão. Também devia haver alguém bebendo num bar de esquina. Alguém chorando por uma paixão não correspondida. Alguém sendo espancado por não ser aceito como é. Alguém julgando o próximo. Alguém sendo violentado. Alguém sofrendo um acidente. Alguém sentindo dor. Alguém feliz. Alguém triste. Alguém morrendo. Alguém. Alguém. Alguém... Era simplesmente infinito pensar no que poderia estar acontecendo a milhões de pessoas nesse exato momento.

O mundo era uma caixinha de ambiguidade no qual todos sabiam que rumo tomar e ao mesmo tempo se sentiam tão perdido quanto Théo. Alguns se achavam justiceiros e buscavam atingir o correto com suas próprias mãos. Outros se achavam vítima, e faziam de tudo para mudar isso, mas parecia que ninguém os ouvia. E outros simplesmente não faziam nada. E esse era Théo.

Frio. Vazio. E ferido.

As lágrimas desceram por suas bochechas coradas e dessa vez não havia Kalleo para enxugá-las e consolá-lo em seu colo. Não havia o calor emanando de sua pele, confortando-o. Não havia o sorriso que fazia Théo sorrir mesmo sem motivo algum. Não havia os olhos oscilantes de azul para cinza. Azul como o mar, cinza como a Lua.

Olhando para a Lua, até parecia ser Kalleo que o olhava de cima. O observando desde sua morte.

Era irônico como a coisa mais horrível que pudesse acontecer na vida de uma pessoa ocasionaria na melhor coisa que poderia acontecer a ela. Ele se lembrava de cada momento, cada detalhe que tivera com Kalleo. Se fechasse os olhos, poderia imaginar ele diante de si, sorrindo abertamente. O mesmo garoto pelo qual Théo se apaixonou perdidamente.

Eu sempre esperarei por você...

Sim, Kalleo esperava por ele. Ele não tinha dúvidas. Mas seria esse o momento?

Dizem que quando se está para morrer, toda sua vida passa diante de seus olhos como um filme acelerado, mas que, porém, você pode captar cada cena detalhadamente.

De repente, lhe veio à mente a noite em que Kalleo cantou para ele no auditório. A mesma noite na qual ele declarou seu amor por Théo. Na mesma noite em que ambos se beijaram intensamente e tudo parecia perfeitamente encaixado entre eles.

Kalleo havia cantado uma música para ele ao som de seu violão. A voz rouca e sedutora cantando cada estrofe enquanto seus olhos o olhavam, declarando claramente o que sentia.

Fechando os olhos, Théo segurou firmemente o pedaço de papel em suas mãos em forma de concha e cantou a mesma música que Kalleo cantara, as lágrimas ainda rolando pela face.

 

Você vira o meu mundo de ponta cabeça

Vou dizer antes que eu esqueça

Você foi o melhor que me aconteceu

E agora nada é igual

E nada importa no mundo quando você me beija

Essa é minha única certeza

 

Ele engoliu em seco, sentindo-se afogado pelas lágrimas que escoriam mais intensamente, o peito arfando com os soluços, enquanto ele tremia sobre a borda do terraço. Cada frase da música fazendo sentido em sua mente.

Lentamente, aos soluços, repetiu os últimos versos da música:

 

Quando tudo em volta parece mudar

Pra mim devemos ficar pra sempre assim...

 

Sim, eles deveriam ficar para sempre assim. Para sempre juntos.

E Théo se entregou para a vasta escuridão da noite.


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