O Segredo da Lua escrita por F L Silva


Capítulo 22
Capítulo 22 - Na Penumbra




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A escuridão o puxava para baixo.

Théo lutava, tentando soltar-se dela, mas nada em seu corpo reagia ao seu comando. Cabeça, pernas, braços, nada se mexia. Pareciam pesados como chumbo. E havia a dor. Uma dor pulsante e lancinante espalhada por todo seu corpo.

Seu peito doía ao respirar lentamente como se estivesse se afogando num lago de água congelada. Algo se esvaía de seu corpo, fluindo para fora lentamente, carregado de um cheiro metálico e espesso. Sangue!

Conseguia ouvir vozes apressadas e alarmantes e passos ecoando no vazio da escuridão, mas as palavras não tomavam sentido em sua cabeça.

E então sentiu seu corpo pesar.

* * *

― Rápido, levem-no para a emergência ― gritava alguém.

― Oh, meu Deus, o que aconteceu?

― Um caminhão bateu no carro em que ele e outro garoto estavam quando o carro derrapou num cruzamento.

― Temos que estancar o sangramento, ele está perdendo muito sangue!

O que está acontecendo? Por que não consigo me mover ou abrir os olhos?

* * *

Théo se viu preso num túnel escuro como breu. A escuridão tocava sua pele como um óleo gosmento e pegajoso, puxando-o para baixo.

Seus pensamentos eram incoerentes, com uma nuvem negra pairando sobre sua mente, escurecendo tudo.

No fim do túnel, uma luz apareceu ao longe. Vozes emanavam dela.

― Ele sofreu uma forte pancada na cabeça ― dizia uma voz masculina de forma profissional.

― Algum ferimento grave? ― a voz familiar da mulher era baixa e choramingava numa angustia profunda. Mamãe? Você está aqui? É minha mãe!

― Felizmente, não. Fizemos alguns exames, mas nenhum ferimento grave ou edema no cérebro. Todos os órgãos vitais estão funcionando normalmente.

― Então por que ele não acorda? ― a voz era inconfundivelmente de seu pai. Ele também está aqui!

― O choque da batida foi grave. Se não fosse pelo airbag... ― a voz do médico desceu uma oitava.

― Eu só quero que ele acorde... ― choramingou Jéssica Ângelo, mãe de Théo.

E Theo foi puxado de volta para a escuridão.

* * *

― O incêndio no velho depósito deixou um morto e outro gravemente ferido, Sr. e Sra. Ângelo.

― Oh, meu Deus! ― exclamou Jéssica.

― Um dos corpos foi encontrado debaixo dos escombros. O teto desabou sobre ele. E quanto ao outro, estava no lado de fora com um ferimento de bala. Uma das internas a encontrou e pediu ajuda, porém ainda não sabemos em que estado ela se encontra.

― Já os identificaram? ― perguntou James, o pai de Théo.

― Sim ― respondia a voz que Théo não conhecia. ― A que foi encontrada baleado, era Zoe, amiga de Théo de acordo com o que me informaram na São Diego. O outro, que estava entre os escombros, de Bryan. O causador de toda a confusão, e, provavelmente, o que atirou contra a Srta. Zoe.

Sim, foi isso!, Théo queria gritar, mas não conseguia.

* * *

― Eu só me pergunto o que o levou a fugir sendo que ele sairia no domingo.

― Talvez tenha achado que seria considerado culpado. ― O pai de Théo tentava consolar sua mãe.

Mesmo em estado de inconsciência, Théo conseguia emergir por tempo suficiente de ouvir uma coisa ou outra, mas nunca de se mover e abrir os olhos, por mais que tentasse.

Sua mãe estava chorando, e ele queria acordar e falar que estava tudo bem, que ele estava bem, e poder consolá-la.

Mas sempre que lutava, tudo em sua mente voltava a se apagar...

* * *

Chumbado. Era assim que Théo sentia seu corpo preso à cama. Todos seus membros pesavam, principalmente sua cabeça. A dor ainda era palpável e havia momentos em que se elevava, puxando-o de volta para as sombras.

A pele do peito ardia em chamas, sua cabeça doía compulsoriamente. A lateral de seu corpo pinicava com se mil formigas o mordesse, e algo apertava seu pescoço. Tinha também seu pulso esquerdo, que era a dor mais nítida.

Ele tentava abrir os olhos, mas não conseguia. Mover uma perna ou até o dedo da mão, mas nada lhe obedecia. Era frustrante o total descontrole sobre si próprio.

Mas ele conseguia sentir. Alguém tocava sua mão, acariciando-o com os dedos, encostando lábios calorosos nela. Era uma boa sensação. Mas ele não sabia a quem pertencia.

Sempre que conseguia fugir da inconsciência, voltava com vagas lembranças da outras vezes, como uma recordação de anos atrás.

E sem previsão de aviso, a névoa negra se espalhava, puxando-o de volta e tudo ficava escuro.

* * *

― Então eles tinham um caso? ― arfou a Sra. Ângelo.

― Ao que tudo indica, sim ― murmurou uma voz feminina, reconhecível, mas que Théo não conseguia se lembrar a quem pertencia. ― Kalleo não me contou nada... ― A voz decaiu repentinamente, se transformando num sussurro angustiado.

Kalleo! Ah, meu Deus. Como ele está?

De repente, algo perturbador se espalhou na mente de Théo. Queria mais que nunca poder despertar e perguntar por ele, mas não conseguia.

Quanto mais esforço fazia, mas cansado ficava, e mais rápido a escuridão o puxava.

* * *

No estado de inércia no qual Théo se encontrava, o tempo não tinha qualquer importância. Parecia ter se passado semanas, mas ele sabia que o tempo poderia lhe enganar. Para ele, os segundos passavam como areia escorrendo por entre os dedos de sua mão, caindo lentamente no chão, formando uma pilha aos seus pés.

Nada parecia importar para ele, além de despertar e ver Kalleo. A dor, a fadiga, a queimação. Nada tinha importância quanto à vontade de saciar o desejo de vê-lo novamente. Podia sentir seu coração batendo com mais urgência.

Não conseguia ouvir nada a volta, apenas o leve farfalhar de cortinas sendo sopradas pelo vento e um bip frenético, ressoando pelo quarto. Passos ecoava ao longe junto e murmúrios indistintos.

Não se sentia mais pesado sobre a cama com o colchão fino como palha, e sim estranhamente leve, como se pudesse voar ao menor sopro. Leve como uma pluma. Queria poder sair daquela cama desconfortável, ou até mudar de posição, mas sabia que era em vão.

Ele estava cansado. Fisicamente e emocionalmente de tudo a volta, e não conseguia se concentrar em nada, apenas em uma única palavra: Kalleo.

* * *

Mesmo por trás das pálpebras, ele sentia uma claridade ofuscante acima de seu rosto. Théo abriu os olhos, a claridade cegando-o momentaneamente. Levou a mão esquerda aos olhos, a fim de cobri-los, mas baixou-a rapidamente, dando-se conta da dor que lhe causou aquele movimento. Percebeu então as faixas que enlaçavam o pulso.

Quando sua visão se estabilizou com a alta claridade que irrompia da janela na parede à esquerda, Théo viu sua mãe sentada numa cadeira aos pés de sua cama, com a cabeça debruçada no colchão. Estava dormindo levemente.

Ela ainda estava como da última vez que ele a viu, com o acréscimo de alguns dias de descuido por ter passado dias em claro. Os cabelos louros na altura dos ombros estavam desgrenhados e presos num rabo de cavalo desleixado. Olheiras profundas estavam sob os olhos. Não tinha nenhum vestígio de maquiagem no rosto, e vestia roupas amassadas, como se tivessem sido tiradas de dentro de uma garrafa.

Théo sentiu as lágrimas surgirem aos olhos com a tamanha saudade que sentira dela. De ver seus olhos, o sorriso e a voz harmoniosa com que falava com ele. Até mesmo de seus gritos intermináveis para ele arrumar seu quarto. Mesmo querendo falar com ela, poder abraçá-la, não queria acordá-la. Sabia que pelo seu estado não dormia muito bem e que precisava descansar. Ficou olhando para ela por uns cinco minutos até a porta do quarto se abrir e seu pai irromper por elas, o queixo caindo ao vê-lo acordado.

― Théo... ― murmurou, os olhos castanhos se iluminando aos poucos. ― Ah, meu Deus, você acordou! ― Ele correu para a cama, debruçando-se sobre Théo, sorrindo como uma criança feliz. A mão calorosa sobre a testa de Théo era familiar desde criança, quando seu pai vinha lhe desejar boa-noite para dormir. ― Jéssica, acorde! Ele acordou.

― Quê? ― grunhiu a Sra. Ângelo, despertando. Quando ergueu o rosto para Théo, pulou da cadeira, derrubando-a no chão. Correu para Théo, assim como seu pai fizera. ― Ah, meu querido. Fiquei tão preocupada. ― E beijava-lhe o rosto freneticamente, as lágrimas escorrendo pela face.

O peito de Théo ardeu em dor com sua mãe se debruçando sobre ele, mas nada falou. Era bom ver de novo seus pais. Mas lamentava pela situação na qual se encontravam. E então ele lembrou: o acidente.

Kalleo!

― Onde está Kalleo? ― Ele proferiu as palavras lentamente, sua boca estava seca e escassa. Precisava de água.

Sua mãe se retraiu, afastando-se dele com um olhar cauteloso. Olhou para seu pai, e ambos trocaram olhares. Olhares que Théo estava acostumado ver desde criança quando eles queriam se comunicar entre si.

Nesse momento, a porta se abriu novamente e um homem alto, vestido num jaleco branco, entrou no quarto. Aparentava não ter mais que quarenta anos, porém com fios de cabelos grisalhos exuberantemente estiloso para seu perfil.

― Vejo que ele acordou. ― Ele abriu um sorriso ao se aproximar de Théo, os olhos analíticos por todo seu corpo. Virou-se para a direita de Théo, onde havia alguns aparelhos confusos para ele. O bip frenético continuava a soar e ele percebeu que era o indicador de batimentos cardíacos de seu coração que sinalizava. ― Sou o Doutor Cornélio Ferrara, Théo. Cuidei de você desde que chegou ao hospital. Como você se sente? ― perguntou o médico, tirando uma pequena lanterna e balançando sobre os olhos de Théo.

― Com muita cede ― respondeu.

― Isso é normal depois de ter passado vários dias inconsciente.

― Quantos dias? ― perguntou, sentindo o medo se aprofundar por sua alma.

― Dois dias. Hoje é manhã de sábado.

Théo engoliu em seco, com cacos de vidros dilacerando sua garganta. Tinha passado dois em inconsciente.

― Se lembra de alguma coisa do acidente?

Théo fechou os olhos, revendo as cenas daquela noite em sua mente. A perseguição policial. A pista molhada da chuva. A derrapagem do carro e a batida do caminhão na traseira do Sandero. E, por último, o carro capotando repetidamente ao longo da rua.

Um enjoo proeminente subiu pela garganta, transportado de uma tontura arrebatadora, fazendo sua visão girar. Camadas de névoa negra se dispersaram em sua mente e conseguiu visualizar Kalleo do seu lado no carro, sendo amassado assim como ele no capotamento.

― Kalleo está bem? ― perguntou, erguendo o rosto para o médico, que contraiu os lábios, enfiando as mãos nos bolsos do jaleco.

Um gosto amargo se proclamou por toda sua boca, apenas aumentando o enjoo. Algo estava errado, ele sabia disso.

― Bem... ele... ― O Sr. Ferrara engoliu em seco, olhando para todo o espaço do quarto, menos para Théo.

Sua mãe se aproximou dele, tocando sua mão, acariciando-a de leve.

― Ah, querido, eu lamento muito...

O estômago de Théo afundou e o sangue escapou de rosto.

― Kalleo faleceu pouco antes de o socorro chegar após o acidente ― falou o Sr. Ferrara. ― Não houve nada que a equipe de socorro pudesse fazer. Eu lamento.

A dor emocional foi mais insuportável para Théo que a dor física causada pelos ferimentos em seu corpo, corroendo-o de dentro para fora, esmagando tudo pelo caminho, destroçando todo seu interior em apenas um simples vazio. Um enorme buraco negro abriu-se em seu peito e podia sentir o medo crescente da percepção de tudo a volta.

Kalleo morreu. Ele estava sozinho. De novo, assim como quando entrara na São Diego. O instituto que lhe deu um amor, um propósito, enquanto ele esteve preso naquele mundo.

O doutor Ferrara e seus pais o olharam com expectativa, esperando por alguma reação dele, que aos poucos sentiu a adrenalina subindo por seu corpo acompanhado pelos tremores. Sua respiração ficou ofegante e lágrimas quentes escorreram livremente por seu rosto.

― E-ele não pode ter morrido ― balbuciou, os lábios tremendo incontrolavelmente.

― Eu lamento, Théo. ― O Sr. Ferrara baixou a cabeça, desviando o olhar novamente de Théo.

Théo se remexeu na cama, sentindo o mundo a volta oscilar. Começou a grunhir quando tentou sentar-se na cama, a dor dos ferimentos lhe trazendo à realidade, mas ele não se importou. Queria se levantar. Queria sair e ir atrás de Kalleo. Tinha que vê-lo e comprovar que ele estava vivo.

Havia algo de errado em tudo aquilo. Não havia como ele ter sobrevivido e Kalleo não.

― Mas eu estou vivo... Ele tem que estar ― ele se exaltou.

― Quando o carro capotou, ouve uma falha no airbag do motorista e ele não foi acionado. Kalleo teve uma contusão muito forte no pescoço depois de ter batido o rosto no volante.

Théo fechou as pálpebras com força, como se pudesse ignorar tudo o que tinha ouvido. Não podia ser verdade. Ele não podia estar morto. Devia ser alguma brincadeira de mau gosto, punindo-o por ter fugido do reformatório, e Kalleo com certeza estaria em outro quarto exatamente como esse, provavelmente detrás dessas paredes.

Théo riu histericamente, os olhos alarmados enquanto chorava.

― Isso é uma brincadeira de mau gosto? ― choramingou baixinho, o rosto se contorcendo numa careta. ― Não tem graça.

Mas os três adultos apenas encaram Théo com perspectiva. As feições complacentes e angustiadas, lamentando internamente.

― Eu queria poder dizer que é uma brincadeira, filho ― falou seu pai, pondo a mão no ombro de Théo.

Théo se afastou daquela mão, os olhos arregalados em pânico nítido. O bip no monitor de batimentos cardíacos aumentou, soando numa frequência mais alta. De repente, tudo que estava preso a Théo o incomodava. O colar cervical, as faixas presas ao seu pulso, as agulhas e tubos no seu braço. Pregos pareciam perfurar seu crânio e a dor por todo seu corpo aumento num nível alarmante e sufocável. Num acesso de raiva e desespero, arrancou as agulhas e tubos do braço e puxou as pernas para fora da cama.

― Não, Théo! ― gritou o Sr. Ferrara, se debruçando sobre ele, tentando deixá-lo imóvel na cama. Mas Théo tentava sair daquele aperto, se debatendo.

― Me solta! Eu quero sair. Eu preciso ver Kalleo! ― berrava a beira das lágrimas que caíam furiosamente.

― Se acalme! ― forçava o médico. ― Vou ter que sedá-lo.

― NÃO!

Seu pai e sua mãe fizeram o mesmo tentando imobilizá-lo na cama. Uma enfermeira irrompeu pela porta do quarto com uma prancheta em mãos e ficou imóvel no instante em que olhou para o leito.

― Segure-o ― o médico ordenou para enfermeira e ela o fez.

O sangue jorrava para fora de seu braço e Théo sentia seu corpo queimando. Mas isso pouco importava. Ele precisava se levantar e ver Kalleo.

Enquanto o seguravam na cama, Théo sentiu uma picada no braço. Rapidamente, sentiu sua cabeça rodou e teria caído no chão se estivesse em pé com a tontura que lhe atingiu. Seu corpo pesou, e ele parou de lutar, as pálpebras pesando sobre os olhos que ainda escorriam lágrimas.

Antes de cair no sono profundo, sussurrou apenas uma palavra enquanto olhava para os rostos aterrorizados de seus pais:

― Kalleo...

* * *

Dizem que quando uma mãe perde um filho, ela sente como se uma parte dela tivesse morrido junto, deixando apenas um enorme vazio no seu interior. Um vazio que, com o tempo, seria preenchido. Era assim que Théo se sentia após ter acordado e assimilado tudo que aconteceu. Kalleo não era seu filho, e sim o garoto que amava intensamente, mas mesmo assim, com sua morte, Théo sentia um enorme espaço vazio dentro de si, como um buraco negro que absorvia sua força vital, deixando-o completamente vazio, limpo de todos os sentimentos que poderiam lhe causar felicidade, deixando apenas a dor. A dor era o único sentimento vivo dentro dele, e não a dor física, que agora tampouco importava, mas sim a emocional. Estava destroçado de dentro para fora, e não conseguia fazer outra coisa a não ser ficar deitado, totalmente calado e chorando até seu corpo entrar em espasmos trêmulos frenéticos. Foi assim o restante do dia.

Sua mãe repetia constantemente que tudo ficaria bem, que, com o tempo, essa dor que ele sentia iria passar, mas Théo não achava que isso era possível. Como algo que dói veementemente poderia simplesmente ser amenizado com o tempo, como se nada disso um dia tivesse sido importante? O passar do tempo apenas deixaria mais sequelas e um vazio que a mente humana iria tentar evitar pensar. A dor não seria esquecida. Ela ainda estará lá, só que escondida no patamar mais profundo da mente, esperando que algo a instiga para voltar como uma bomba impactante e destroçar os sentimentos como sempre faz. Basta uma vaga recordação, um objeto ou até mesmo uma música para se despertar. Por que é assim que funciona. Os humanos escondem seus medos e traumas no mais profundo de suas mentes, para simplesmente poder ignorá-los e dizer que superou. Mas essa não é a verdade.

Cada segundo que se alastrava foi insuportável. Tudo ao redor. As portas batendo, as vozes, o farfalhar das cortinas. Tudo. Théo só ficava pensando em querer ver Kalleo, poder conversar com ele, tocar seu rosto, beijá-lo mais uma vez. Mas não podia. Nunca mais. Não houve uma chance para despedida e nem nada. Ele simplesmente morreu de uma hora para outra, num momento inesperado, levando uma parte da alma de Théo consigo. O pedaço de céu que deu a Théo e o levou de volta consigo.

Théo não respondia em nenhuma das tentativas que seus pais tentavam em conversar com ele. Era frustrante para eles, mas eles tinham que entender o lado do filho. Ele apenas queria ficar sozinho e poder lamentar sem testemunhas. Depois de minutos pedindo para deixá-lo a sós, finalmente seu pai concordou e levou sua mãe para fora do quarto. Théo sabia que eles estavam com medo dele ter outro ataque e quisesse sair à procura de Kalleo.

Seu celular estava sobre a mesinha ao lado da cama. Tinham encontrado na sua calça jeans depois que o despiram e vestiram uma camisola hospitalar. Desbloqueando a tela, foi direto na galeria de imagens e lá estava: a foto que tinha tirado com Kalleo na manhã em que acordaram juntos. Théo sorria como um bobo na imagem, uma criança alegre após ter ganhado algodão doce, e Kalleo estava com os olhos fixo nele, com o cabelo negro bagunçado estranhamente sexy para seu rosto. Aquela foto parecia ter sido tirada há anos pela enorme falta que ele fazia.

Sem pensar, Théo discou o número de Kalleo. Despois de seis toques, a voz de Kalleo rasgou o silêncio da linha, cálida e dócil, rouca e sensual: “Oi, aqui é a caixa postal de Kalleo. Deixe uma mensagem”. E o bipe soou. Théo ficou calado, ouvindo o silêncio da linha, o lábio inferior tremendo. Mas ele não tinha nada para falar. Não para ser perdido numa caixa postal que Kalleo nunca ouviria.

Desligando a chamada, abriu novamente a foto deles dois, afundando mais na cama.

* * *

Mesmo depois de ter dormido a noite toda a base de remédios, quando Théo acordou sentia mais cansado do que nunca. Sua mãe lhe ajudou a andar até o banheiro, carregando o tripé com o soro atrás dele. Foi preciso Théo repetir três vezes para a Sra. Ângelo concordar em fechar a porta do banheiro para ele ter um pouco de privacidade.

Evitou olhar seu reflexo no espelho, abominando o quão desgraçado ele estaria, mas não resistiu à tentação. Sua bochecha esquerda estava inchada, e toda a lateral direita do rosto estava com cortes superficiais do vidro das janelas do carro. Um grande corte se espalhava no lábio inferior, arroxeado como uma amora. O lugar onde o cinto de segurando o prendia no peito estava com a pele arroxeada e parecia queimar em fogo vivo sempre que tocava.

Encostando a testa no azulejo branco e frio da parede, respirou profundamente, tentando regular a respiração que começava a acelerar.

Podia prever a descarga de sentimos tentando penetrar a breve zona de conforto que sentira desde que Kalleo morrera. Estava cansado de chorar.

― Théo? ― chamou sua mãe preocupada, do outro lado da porta. Ele tinha demorado demais.

Respirando fundo, ele respondeu:

― Estou saindo.

* * *

Mesmo deitada numa cama hospitalar, Zoe ainda era Zoe. Um pouco abalada por causa do ferimento, mas ainda era ela.

Assim que soube que a amiga estava no mesmo hospital que ele, Théo implorou de joelhos que o deixassem vê-la. Demorou-se uma hora para conseguir convencer seus pais e o Sr. Ferrara.

No quarto, havia uma mulher de cabelos ruivos, assim como os de Zoe. Devia ser sua mãe. Ela saiu do quarto assim que Zoe viu Théo e pediu para deixá-los sozinhos.

Sentando-se na cadeira próximo a cama da garota, ele segurou a mão dela. Os olhos da garota encontraram os seus, e eles ficaram se olhando por um tempo. Sabiam que não precisavam falar nada para sentir a dor um do outro.

Rompendo o silêncio, ela falou:

― Eu lamento...

Théo fungou, lutando para não chorar.

― Parece que todos que eu amo, acabam me abandonando...

Piscando os olhos sonolentos, ela murmurou:

― Não é verdade. Eu ainda estou aqui...

* * *

Quando Will apareceu em seu quarto pouco antes do meio-dia, Théo exibiu um pequeno e frágil sorriso de felicidade culposa. Culposa por que sentia que não podia se dar ao luxo de ficar alegre quando o cara ao qual amava estava morto. Mas feliz por ver um dos poucos amigos que lhe restara.

Will entrou com um sorriso resignado no rosto, os olhos castanhos analíticos por todo o corpo de Théo deitado sobre a cama hospitalar. A aparência de Will era totalmente diferente da de Théo. Ele tinha cabelos castanhos como chocolate, que cobriam grande parte da testa e as orelhas um pouco pontudas como as de um duende. Théo sempre adorou fazer piadas sobre elas. E os lábios eram finos, sendo o inferior mais grosso que o superior. Mas isso não o fazia um garoto “feio” aparentemente. Théo sempre achou Will o cara mais descolado do colégio, por estar cercado de garotas.

― O colar cervical combina com seu novo visual ― brincou Will.

― É a última peça da moda ― retrucou.

― Imagino que tenha tido que chupar a balconista pra conseguir?

― Você é vidente por acaso?

― Tenho duas bolas, uma delas, com certeza, é de cristal.

E Théo riu. Um riso acompanhado de choro, todos os sentimentos se misturando. Eram sempre assim suas conversas com Will. Por isso gostava tanto dele, pela forma desvairada e brincalhona.

― Soube por tudo o que passou. Falei com sua mãe pelo telefone e vir assim que pude ― disse Will, o olhar dizendo claramente que sabia de tudo a respeito de Kalleo. Ele não pareceu se surpreender, por que Théo nunca chegou a falar de nenhum garoto com ele, já que ele nunca se interessara por algum. ― Eu lamento.

― Você não faz ideia do quanto odeio essa palavra. ― Théo limpou as lágrimas do rosto com as costas das mãos. ― Parece que todos só têm isso a dizer e não fazem nada para me ajudar a sair daqui e ir vê-lo.

― Eu sei, cara. Desculpe. Onde estão seus pais? ― perguntou ao notar mais ninguém no quarto.

― Foram em casa. Precisavam pegar algumas coisas e logo estão voltando.

― Acha que vão te deixar sair para o enterro dele amanhã?

― Amanhã? ― Théo congelou sobre a cama.

― Não sabia? Sua mãe quem me disse... ― E então Will se retraiu ao ver o olhar de descrença de Théo. ― Tenho certeza que ela ia te contar... ― tentou consertar.

― Ela não contou ― falou secamente.

Nesse momento, a porta do quarto se abriu novamente e a Sra. Ângelo irrompeu pelo quarto.

― Oi, Will ― ela sorriu ao vê-lo.

― Olá, Sra. Ângelo.

― Quando ia me contar que o enterro de Kalleo seria amanhã? ― Théo falou asperamente, as feições duras no rosto.

A Sra. Ângelo parou na metade do caminho para a cama, o rosto paralisado desmanchando lentamente o sorriso que se transformava em resignação.

― Ia esperar até o doutor Ferrara lhe analisar para saber se você teria permissão para ir ― ela suspirou, os ombros caindo.

― E se ele dissesse que não estou apto para ir ao velório, você não iria me contar? ― retrucou.

A Sra. Ângelo aproximou o passo lentamente, os olhos esverdeados cautelosos.

― É claro que iria. ― Mas não chegou a falar com convicção.

Théo simplesmente suspirou, fechando os olhos, tentando ignorar.

* * *

Théo passou o restante do dia esperando impacientemente pelo Sr. Ferrara para saber se enfim poderia sair para ver Kalleo. Quando o doutor checou todos os ferimentos de Théo, fez uma careta de ponderação e Théo soube exatamente no que ele estava pensando: se seria bom para ele ir ao enterro do cara que ele amava. De fato, Théo o compreendia, pois não sabia exatamente o que lhe aguardaria. Sabia que iria irromper em lágrimas e entrar na mesma crise que o invadia desde que soube da verdade. Mas mesmo assim, ele tinha que ver Kalleo. Precisava vê-lo mais uma última vez para se despedir de seu corpo e ter a certeza de que ele estava realmente morto, por que mesmo com todos dizendo que ele morreu, ainda havia uma luz no peito de Théo, fraca e difusa, dizendo que havia uma remota chance dele estar vivo.

― Por favor ― sussurrou Théo, implorando ao Sr. Ferrara.

― Tudo bem ― cedeu, torcendo os lábios. ― Você poderá ir desde que esteja a todo o momento acompanhado de seus pais. Mas ao cair da noite ― agora ele falava para os pais de Théo, ― devem trazê-lo de volta. Ele ainda precisa ficar de observação, até que todos os ferimentos estejam cicatrizados.

― O.K. ― Théo foi forçado a concordar.


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