Amor de Estudante escrita por Joana Guerra


Capítulo 8
Não desistas de mim


Notas iniciais do capítulo

Muito obrigada a todos quantos comentaram! Como diria a Atena de ARDJ: "Gosto disso!". A música-tema é um bis para o Pedro Abrunhosa, mas o homem merece: “Não desistas de mim”. Capítulo um pouco mais sério porque o momento também o é e, afinal, a zoeira tem mesmo limites ;). Depois retomo a programação habitual.



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“Há um perfume que ficou na escada

E na TV o teu canal está aberto

Desenhos de corpos na cama fechada

São um mapa de um passado deserto

Eu sei que houve um tempo em que tu e eu

Fomos dois pássaros loucos

Voamos pelas ruas que fizemos céu

Somos a pele um do outro

Não desistas de mim

Não te percas agora

Não desistas de mim

A noite ainda demora”

(Pedro Abrunhosa, Não desistas de mim)

Coimbra, 18 de Maio de 2016

Maria Aparecida estava desaparecida desde uma hora indeterminada. Foi apenas quando o almoço não se materializou milagrosamente em cima da mesa que Isadora e Ariela deram o grito de alerta, mais por receio de que a empregada para todo o serviço não se apresentasse também para fazer o jantar e as restantes tarefas da casa do que por afeição pela companheira de brincadeiras de infância.

O detetive escolhido para desvendar o truque de mágica só podia ser Elano. De entre todos, o bom moço era aquele com mais pistas para achar a fugitiva silenciosa.

Uma denúncia angustiada delatou a causa do crime, o que foi o suficiente para o estudante compreender o meio empregue para a fuga da empreguete das Sarmento.

O sol já descia no céu azul livre de nuvens quando Elano subiu correndo a rua inclinada até encontrar um edifício de estilo românico do século XII.

Não estava muito longe dos edifícios principais da Universidade e a rua estava cheia de estudantes e de turistas que começavam a afluir à cidade, mas ele estava certo de que não estaria muita gente na localização pretendida.

Vista do exterior, a Sé Velha de Coimbra lembrava um pequeno castelo, com muros altos coroados de ameias e com poucas e estreitas janelas. Fazia sentido que, naquele dia, Cida se quisesse esconder numa fortaleza.

Faziam parte do estilo de construção as paredes austeras e robustas, grossas como árvores centenárias, cuja principal função era resistir a ataques de exércitos inimigos. Elas não constituiriam um obstáculo para Elano.

A Sé Velha estava deserta àquela hora do dia. Aqui e ali ainda se avistava uma ou outra beata, daquelas que praticamente habitam construções religiosas do género, mas o tamanho do edifício convidava à solidão e à introspeção.

 As janelas reduzidas não permitiam iluminar um espaço tão amplo, mas escuro, que apenas tinha sido invadido pela maravilha tecnológica de um pequeno circuito elétrico, discreto para manter a coerência de uma construção com quase mil anos de história.

As pedras empilhadas em colunas muito altas conferiam um ar solene, mas criavam um ambiente frio de ar pouco renovado crivado de incenso de muitos dias.

Elano percorreu a nave comprida, olhando de relance pelos bancos longos de madeira escura até que os seus olhos chegaram perto do altar-mor.

Ainda longe, Elano reconheceu as costas de Cida, com os seus cabelos compridos soltos, sentada no banco mais próximo ao altar principal. Ele a reconheceria em qualquer lado.

Ela não denotou surpresa ou qualquer outro sentimento quando ele se sentou do lado dela, apenas enxugando com a parte posterior das mãos os restos de lágrimas que lhe tinham colocado tons avermelhados em volta dos olhos.

— Sabia que te ia achar aqui.

A voz de Elano lhe soava como dentro de um sonho, como uma mão que a puxava para fora de um pesadelo. Continuando com os olhos fixos num Cristo crucificado barroco, ela deu a primeira mostra de reconhecimento por quem se encontrava do lado dela:

— Você me conhece bem, Elano.

Ele respirou fundo, não tendo a plena certeza da veracidade daquela afirmação:

— Às vezes, acho que não te conheço de todo, Cida.

Ela não gostou da resposta merecida. Se não se podia apoiar em Elano, ia se abrir com quem?

Cida não podia partilhar o seu objeto de dor com Conrado. Aliás, ela não sabia mais se podia partilhar algo da sua vida com ele.

Nos últimos tempos, os gestos românticos excêntricos do playboy se tinham novamente multiplicado no intuito de amolecer o coração de Maria Aparecida, mas já não surtiam o efeito inicial.

Cada vez mais desiludida, ela começava a vislumbrar os estalos no verniz que recobria a forma como ela via Conrado. Se retirasse completamente essa película brilhante que a fazia enxergá-lo de um modo difuso, o que sobraria do relacionamento deles?

Maria Aparecida agarrou com as mãos o banco em que se encontrava sentada, tal como um náufrago que se agarra à última tábua de salvação num mar agitado.

— A sua madrinha me ligou e me explicou tudo. Você deixou a dona Valda assustada. Ela passou a manhã te tentando ligar e você sem atender.

— Não conseguia falar com ela, Elano. Não conseguia falar com ninguém.

Eles sussurravam, mas as palavras ecoavam em seu redor e eram absorvidas pelas pedras desgastadas. Quantas palavras não tinham sido já confiadas àquele depósito de memórias individuais e coletivas?

As memórias reproduzidas dentro da cabeça de Maria Aparecida naquele momento eram muito próprias. Aquele dia assinalava a memória do falecimento da mãe. Seria realmente legítimo usar a palavra “aniversário” para sinalizar um nascimento e também uma morte? Não deviam os especialistas encontrar um termo aplicável a apenas um dos casos e libertar o outro do ónus da associação?

Cida podia não ter palavras, mas possuía uma abundância de lágrimas que jorravam como vinagre morno pingando sobre o chão de pedra.

— Sinto a falta dela todos os dias, mas hoje é pior. Dói mais e eu não tenho como evitar. Custa muito ser sozinha no mundo.

Ela não sabia se tinha realmente proferido aquilo ou se Elano tinha entrado dentro da sua cabeça, como tantas vezes antes tinha feito, mas ele deu mostras de entender, estendendo a mão sobre a dela, a envolvendo com calor e compreensão.

Uma das beatas que circulavam perto do altar, compondo os arranjos de flores que não precisavam ser compostos, pigarreou num tom de discordância.

Era um daqueles tipos caricaturais que pareciam já não existir na atualidade, uma senhora idosa vestida de perpétuo luto, cabelo grisalho envolto numa mantilha gasta, sapatos ortopédicos pesados e muito interesse pela vida alheia.

Elano retirou a mão de cima da de Cida e a colocou do lado da dela, sobre a madeira de mogno do banco. Ele não a precisava tocar para a segurar. A memória da carne é fraca. A memória da alma é para sempre.

Elano Fragoso também voltou atrás no tempo, preso a lembranças guardadas no fundo da alma que se cruzavam com as dela e que nunca antes tinham sido partilhadas. O menino dentro dele também queria falar:

— A minha mãe era lavadeira e quando eu tinha nove anos e a minha irmã Alana só dois, nossa mãe nos deixou e a Penha nos pegou para criar. A Penha tinha sonhos, mas começou a trabalhar como doméstica para dar o que comer para a gente e nunca se queixou. Nunca deixou faltar nada.

Elano tinha abafado aquela história desde a infância, como se fosse um dado adquirido que tivesse acontecido a outro e não o beliscasse nos seus sentimentos.

Maria Aparecida encostou o dedo mínimo ao dele e eles se cruzaram, se enrolando em ânimo que faltava aos dois, enquanto ele continuava:

— A Penha foi… a Penha é uma guerreira. Eu só vou ter um futuro porque ela abdicou do dela. Se não fosse o altruísmo dela, eu não sei o que teria acontecido comigo e com a Alana.

— Lamento muito, Elano…

Ela falava a verdade, agora com dor na voz por ela e por ele, apertando a mão do bom moço enquanto o temporizador ligava as pequenas lâmpadas do interior do edifício.

— Cida, o que eu quero dizer é que você foi amada. Por pouco tempo, mas foi. Nunca te vão poder tirar as memórias do tempo que você passou com a sua mãe.

Ele chorava também e a garota rodou no banco, se abraçando a ele, numa confusão de lágrimas das quais já não era possível conhecer proprietário. Eles eram um, o mesmo, o todo.

Elano se deixou levar pela comoção desconhecida, sentindo o batimento cardíaco de Maria Aparecida trepidando contra o seu peito. Como é que ela não via que eles eram uma única alma em que batiam dois corações?

A beata voltou a pigarrear, revoltada com tanto contato físico dentro de um edifício religioso. Se a pobre senhora encontrasse alguém se conhecendo no sentido bíblico na sacristia, teria com certeza um ataque cardíaco.

Contrafeitos, eles se soltaram do abraço apertado, mantendo os dedos entrelaçados e as expressões graves. Elano respirou fundo, contendo o choro:

— Você continua a ser muito amada. Família também é aquela que a gente vai conhecendo ao longo da vida. Vai ter sempre alguém do seu lado.

— Eu sei. A minha mãe disse a mesma coisa quando o meu pai morreu, mas eu sei que ela nunca superou essa dor. Ela me dizia que só as histórias de amor famosas são trágicas, mas era mentira.

— As grandes histórias de amor não precisam ser trágicas, Cida.

— Eu sei que a história dos meus pais não é tão grande como a de Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, Pedro e Inês…

— Cê tá enganada. É maior porque teve você. Tenho a certeza que você é fruto de um grande amor.

— Ninguém vai conhecer a história de amor entre uma arrumadeira e um motorista. Pedro fez Inês rainha depois de morta, Tristão quase destruiu um país por Isolda…

— E o que tem isso? Tiveram glória, mas morreram jovens e foram separados. Cê tem dúvida que qualquer um deles ia preferir envelhecer no anonimato, mas junto do seu amor?

Elano não acabava de inventar a roda ou de descobrir o fogo, mas abria os olhos de borboleta de Maria Aparecida para um novo mundo, cosmos real e não inventado pela fantasia de um autor benévolo para com o véu da verdade.

As maiores histórias de amor eram as mais simples. Duas pessoas que se reconheciam entre erros e acertos e se agarravam para nunca mais se soltarem.

— Eu espero um dia viver um amor assim.

O murmúrio de Maria Aparecida era uma prece de um tempo esquecido e agora relembrado e, num dos altares secundários, um Santo António do século XVII com um sorriso de Mona Lisa parecia concordar com ela.

Repartindo os pesos antigos entre os dois, Elano e Cida sentiam a redistribuição de energias. É mais fácil carregar um fardo se ele for suportado por dois pontos que criem um equilíbrio. 

— Cida, sempre que você precisar, você me vai chamar, a gente vai sair e você desabafa.

— Você gosta assim tanto de um caso complicado?

— Eu sou quase um advogado. Adoro um caso enrolado.

Os dois se levantaram e desceram a nave principal, lado a lado em tom processional, saindo da escuridão para a luminosidade do por do sol.

Ambos tinham a face sulcada de lágrimas e a certeza de ter encontrado uma afinidade que não se repete com facilidade.

Elano segurou no braço dela para a voltar para ele:

— Cida, você tem que se libertar do que te faz mal. Tô falando sério.

Ela sorriu pela primeira vez naquele dia, desconhecendo que, nos anos que se seguiriam, construiria memórias associadas ao dia 18 de Maio que seriam de felicidade e nunca mais de dor:

— Eu não estou habituada a ter alguém lutando assim por mim.

Elano sorriu também, feliz só por ser o causador do sorriso de Cida:

— Então você vai ter que se habituar. Eu não desisto fácil.

Não desistir facilmente era sina de família. Maria da Penha também era assim, o que transparecia no tom de voz com que, horas mais tarde, falava ao celular com o irmão:

— Elano, tu é um cara sangue bom, mas como tu é inseguro, menino. Tu é o sonho de toda a garota. Tu tem que tomar uma decisão. Ou rouba essa garota pra você ou enterra esse amor dentro de tu. Não dá pra ficar nesse sofrimento.

— Não consigo. Quando me apaixono é assim: fico tímido, fico travado. Quero falar e não sai.

— Não aguento mais te ver assim, Elano.

Ele se deixou vencer pela dor que o assaltava, confiando a verdade ao único colo que tinha tido na vida:

— É ela, Penha. - dizia ele perto das lágrimas – Sempre foi. Sempre vai ser ela. O que é que eu faço agora?

O destino é um diabinho impossível de aprisionar numa garrafa e de impraticável planejamento.

Não foram precisos mais do que sete dias para o destino mostrar o quão traiçoeiro realmente é.

Elano tinha acabado de começar um turno no restaurante quando teve que fazer uma entrega especial na copa do hotel mais luxuoso da cidade.

Era normal encontrar muita gente de diferentes proveniências sempre que se dava o caso de lá ter que fazer entregas. Aquele hotel era não só o preferido de muitos turistas estrangeiros, como fazia questão de empregar no seu corpo de trabalho uma verdadeira torre de Babel de funcionários.

 O estudante podia ter esperado encontrar muita gente que lhe chamasse a atenção, mas não aquela mulher atarefada a varrer o chão, fardada de azul, que era uma cópia perfeita, ainda que mais velha, de uma das irmãs do futuro advogado.

Em choque, petrificado com um misto de dor e de surpresa, Elano deixou escorregar as palavras pronunciadas com medo:

— A senhora aqui?

Excerto do diário da Cida:

Coimbra, 18 de Maio de 2016

Mãezinha,

Como eu queria o seu colo nesse momento… Não é verdade que o tempo cura todas as feridas. O tempo pode dissimular a dor, mas ela continua lá. Acho que a única dor maior do que a de perder um pai ou uma mãe, é a dor de perder um filho. Não passa um dia sem que eu me lembre da senhora e do meu pai. Sei que, estejam vocês onde estiverem, também nunca se esqueceram de mim.


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Notas finais do capítulo

É engraçado como o caminho de todo o mundo vai dar a Coimbra ;). Aceito e agradeço sugestões para o nome desta nova personagem, que tanto marcou Elano. No próximo capítulo: Espero que os leitores sejam surpreendidos positivamente pela Cida. Na minha cabeça, estou ficando muito feliz com essa garota ;). Beijo para todos!