Amor de Estudante escrita por Joana Guerra


Capítulo 11
Não Posso Esconder o que o Amor Me Faz


Notas iniciais do capítulo

Muito obrigada a todos (ou no caso todas) quantos comentaram! A conversar é que a gente se entende :). Se eu estiver usando muitas referências que não sejam de fácil compreensão estejam à vontade para comentar. O que me é conhecido pode não o ser pelos leitores e vice-versa. Vamos trocar uma ideia, gente :P. A música-tema (Não posso esconder o que o Amor me faz) é de um álbum maravilhoso da Roberta Sá (Delírio).



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“Não posso esconder o que o amor me faz

A sua ausência dói e eu não sou capaz

De suportar o medo

E a solidão da espera

Ninguém é dono do destino, pode crer

Diz o poeta que conhece o que é o amor

Ninguém esquece a dor

Sem merecer perder o que era bom

Volta e me traz aquele amor

O desejo é uma guerra no meu coração

Gente como eu merece paz

Por misericórdia, um beijo de paixão”

(Roberta Sá, Não Posso Esconder o que o Amor Me Faz)

Coimbra, 3 de Julho de 2016

— Tá demorando muito para essa asa sarar.

Elano deixou de teclar ao ouvir o lamento de Maria Aparecida. Tirando os óculos, o garoto abandonou o computador e se inclinou sobre a gaiola com olhos de especialista na vida animal:

— O veterinário avisou que ia ser mesmo assim, Cida. Cê vai ver que em breve ele fica bom. A colisão contra a janela doeu muito, mas ele é um sobrevivente.

— Espero que você tenha razão, Elano.

O garoto a abraçou por trás, deixando cair o queixo sobre o ombro da garota ao mesmo tempo que corria os olhos com satisfação pelos pequenos objetos que ela tinha espalhado pelo apartamento:

— Eu quero que você se sinta em casa…

— Eu me sinto em casa, Elano. Eu finalmente me sinto em casa.

Não tinha sido um processo sem os seus pequenos percalços. Ainda na noite de todos os horrores, Conrado Werneck havia exigido a sua manutenção como morador naquele edifício.

A arma nada secreta escolhida para o duelo foi a infantilidade do playboy. Conrado ameaçou fazer queixa perante Otto sobre a injustiça sofrida, garantindo que o pai iria levar a reclamação a uma instância superior: Jonas Marra.

Certo de que mesmo na prisão o seu tio saberia quem realmente era culpado da injúria proferida, Danilo não teve uma grama de paciência para a ameaça vã, mas resolveu o problema usando como inspiração outra criatura que sofria de falta de maturidade:

— Cara, o prédio é meu. Ou você sai pela porta, ou os seus pertences saem pela janela. A escolha é sua.

A lei do retorno era o primeiro artigo da Constituição pessoal dos Marra. Se Cida tinha sido despejada sem direito a aviso prévio, o bom carma protegeria o milionário da ação contra Conrado.

Por via das dúvidas, não custava lavar a alma dos insultos que Werneck lhe teria com certeza enfiado nas costas. No dia seguinte, Elano e Cida viram Danilo chegando da rua com um grande saco de sal grosso e grossas velas brancas de meio metro.

— É para colocar no quarto do falecido Conrado. – explicou ele – Já estou farto dessa assombração na minha vida.

Não era só a questão de limpeza espiritual, mas também a questão de redistribuição de espaços que teria que ser decidida.

Elano sabia que Cida nunca aceitaria dormir no quarto que tinha sido de Conrado, mas também ele não tinha estômago para deitar naquele colchão conspurcado.

— Você dorme no meu quarto e eu durmo na sala. Não tem problema. –resolveu o bom moço, vendo que ela não queria aceitar.

Um pequeno problema de fácil resolução no meio de nuvens negras mais complicados de dissipar.

Maria Aparecida sentia uma vergonha indevida, pejo desnecessário por ser o tópico do momento no campus universitário. Bastaram meia dúzia de cliques para a história da aposta infame ser conhecida por todos e a garota se tornar na atração de um circo tecnológico.

Não fosse Elano e Danilo se terem oferecido para criar uma muralha figurativa e real em torno da garota, a acompanhando no trajeto de e para a faculdade, lhe teriam faltado as forças para confrontar toda aquela gente que a olhava como se ela fosse uma aberração em exposição.

Numa noite, Cida havia perdido todas as certezas sobre a vida, o amor, a família e até sobre o passado. Tinha partilhado toda uma existência do lado das irmãs Sarmento, mas a família a tinha colocado quase literalmente no caixote do lixo sem um momento de hesitação.

Nem a redoma de vidro criada artificialmente pelos garotos protegia Maria Aparecida de se cruzar involuntariamente com Isadora e Ariela pelos caminhos da vida ou no pequeno patamar do quarto andar do prédio.

Está enganado quem pensa que o pior sentimento que alguém pode demonstrar por outra pessoa é o ódio. O sentimento que mais corrói é o da indiferença.

Era isso que as quase irmãs de criação de Cida emanavam face à presença que fingiam não notar da garota que tinha crescido com elas.

Os dois garotos que a tinham conhecido meros meses antes a aconselhavam quanto às amarras a soltar, numa terapia de grupo baseada na técnica de encher o estômago de sorvete, estando todos sentados no sofá da sala com música inspiradora tocando ao fundo num volume mínimo:  

— Você ficou órfã muito cedo, mas aquela nunca foi a sua família.

— Eu sei, Elano. Só que eu preferia acreditar no contrário. Dói muito não ter alguém no mundo. Eu inventei que a Isadora e a Ariela gostavam de mim porque eu não queria ficar sozinha.

Entre duas colheradas de brownie gelado, Danilo reforçava a boa sorte saída do meio daquela confusão de sentimentos:

— O Conrado não presta. Você tem que dar graças a Deus por se ter livrado daquele cara. Tudo acontece por algum motivo.

Podia não ser o mais correto por se encontrar em terras portuguesas, ou talvez fosse mesmo essa a razão, mas Maria Aparecida se sentia pronta para dar o seu próprio grito do Ipiranga:

— Eu quero ajeitar a minha vida, sabem? Eu quero ser independente, me formar, ter o meu apartamento…

— …e virar socialite?

Ela prosseguiu, sem reparar na intromissão de Danilo ao discurso que lhe vinha das entranhas com uma força de panela de pressão chegando no ponto em que a válvula de segurança se rompia:

— Preciso de tempo para mim, para as minhas coisas.

O Marra não podia deixar de aplaudir o elóquio com o entusiasmo de um aficionado por ópera vendo o pano baixar no La Scala:

— Bravo, minha bela!

O milionário tinha os seus próprios planos quando chamava Elano à parte, sempre insistindo no mesmo ponto, brandindo o dedo indicador com o fervor de uma avó casamenteira querendo resolver o futuro da neta solteirona convicta:

— Se vocês não ficarem juntos, não vou ficar feliz, não.

Não era esse aparentemente o único passo em falta antes do cliché “e viveram felizes para sempre”? Muitos parágrafos separavam ainda aquela história da palavra “Fim”.

Maria Aparecida se sentia em casa no presente, mas não sabia o que fazer no futuro. Talvez ela se sentisse ali segura, mas com a consciência de não querer que a prendessem numa gaiola dourada, porventura não tão diferente da gaiola que segurava Camões.

Perdida em pensamentos quando Elano se desgrudou dela, a garota continuava correndo os dedos pelas barras de ferro que delimitavam o espaço de circulação do pequeno animal quando picou o dedo indicador num ponto proeminente. Uma única gota de sangue rubro coloriu a pele alva, chamando a atenção do garoto que examinou a ferida superficial.

— Não me vai desmaiar, Bela Adormecida, vai?

 Como sempre, Elano procurava conferir leveza aos pequenos momentos da vida, certo da rapidez de ação quanto ao caminho a percorrer. O estudante foi rápido a colocar o dedo da garota debaixo de água corrente, procurando ao mesmo tempo o estojo de primeiros socorros.

De nada adiantavam os protestos de Maria Aparecida quando ela afirmava que, mesmo agradecendo aqueles cuidados, era completamente capaz de resolver por si mesma aqueles pequenos problemas.

Mil vezes ela o afastasse, mil vezes ele regressaria. O estudante entendia que seria daquele modo que um dia, por magia, Cida enxergaria o amor dentro do coração dele.

Estava tranquilo, mas não estava favorável. Aquela foi para Elano a melhor e a pior época daquele ano.

Cida deixava o seu tempo nas mãos do bom moço, confiando de olhos fechados nas decisões dele.

Era fácil transformar as pequenas banalidades em hábitos entranhados, vícios de alma impossíveis de serem abdicados. A felicidade ocupava o trono daquela casa.

Em breve se criou a dependência das segundas-feiras passadas jogando poker, as noites de terça-feira com a certeza de serem sempre noite de cinema em casa, as horas das quartas-feiras passadas arrastando móveis para ganharem o espaço necessário para improvisar uma pista de dança para os três loucos embriagados pela alegria.

No fim-de-semana saíam para a rua e sorviam com tragos largos a vida que seguia em volta deles. Por vezes aparecia Neide e cozinhava para todos num clima de família se reunindo para festejar a vida.

Nem todo o ouro do mundo teria o mesmo valor para Elano do que aqueles pequenos momentos. Uma ou duas vezes por semana, o garoto levava uma manta, uma ecobag com o lanche e uma Cida pela mão e passavam a tarde deitados sobre o gramado do Parque Verde, vendo debaixo da sombra de uma árvore cuja sombra projetada brincava com os raios de sol que a atravessava os turistas e os autóctones passeando de canoa ou de barquinho no rio calmo.

As águas do Mondego corriam devagar, numa preguiça de quem não tem pressa para chegar à foz e desaguar para o mundo. O bom moço queria congelar aquele fluxo de massa, certo de querer fazer parar o tempo.

Ele antecipava o momento em que Cida se virava, pousando a cabeça no peito dele depois de levantar os óculos escuros, lhe entregando um livro ao acaso, sempre com o mesmo pedido:

— Lê pra mim, Elano.

Ele lia pausadamente, criando memórias preciosas que seriam estimadas por toda a sua vida.

Inventava histórias de tempos idos e sonhava com histórias ainda por vir. Eles tinham tempo de sobra. Um dia ela encontraria o caminho até ele, livre de todos os fantasmas do passado.

Elano julgou ter encontrado a via aberta numa das primeiras noites de julho. O tempo aquecia e Danilo lhe deu o empurrão para sair só com Cida, sem terem hora para voltar.

Acabando cada um o seu sorvete, o dela de chocolate e o dele de morango e laranja, dirigiam-se com calma, caminhando sem pressa, no sentido do Penedo da Saudade.

O Penedo era um ponto turístico com uma simbologia de outro género. Quando um garoto encontrava uma garota especial que valia a pena impressionar, a levava lá. Elano tinha finalmente encontrado a garota certa para o passeio.

Uma mistura entre parque e miradouro da cidade de Coimbra, o Penedo da Saudade permitia avistar a parte oriental da cidade até ao rio Mondego. Espalhados pelo miradouro se encontravam vários textos inscritos em pedras, incluindo poemas de amor. Era de uma forma muito apta que um dos espaços se chamava Sala dos Poetas e foi para lá que o casal se dirigiu.

Todas as cidades têm um encanto especial à noite. Daquele local se conseguiam observar as centenas de pontos brilhantes entre o branco e o amarelo-torrado que iluminavam a cidade como luzes de natal.

Elano tinha passado várias horas assistindo documentários da NASA só para conseguir impressionar Maria Aparecida com os seus conhecimentos dignos de astrónomo conceituado sobre as constelações do hemisfério norte.

Entre as luzes da terra e as luzes do céu, ele guiava os dedos da garota, mostrando a lição aprendida:

— E ali, no espaço entre o seu polegar e o seu dedo indicador, fica a Ursa Maior. Muitos povos a representavam com a figura de um carro e a usavam para localizar a estrela polar, descobrindo assim qual a direção do norte, o caminho para casa.

Elano tinha feito bem o trabalho de casa, atendendo a que conseguiu acertar em tudo sem sequer tirar os olhos da garota. Ela só percebeu o fato quando ele passou o polegar pela comissura dos seus lábios e Cida olhou para ele em interrogação.

— Só queria limpar o chocolate que tinha no canto da sua boca.

Não era tudo o que ele queria, mas Elano desejava com tanta força que aquele fosse um momento perfeito, que encontrar as palavras adequadas lhe parecia impossível.

Se afastando, o estudante procurou nos azulejos com poemas uma frase que soltasse todas as outras.

— Elano, o que é que você está fazendo?

— Estou procurando as palavras certas.

Ela não o entendeu, olhando para os poemas alheios sem achar a relação entre uma coisa e outra:

— Então, usa as suas.

Uma estrela cadente cruzando o céu estrelado pareceu ao garoto ser o sinal enviado para lhe mostrar que havia chegado a hora de abrir o seu coração. Com as luzes da cidade iluminando o espaço ao longe, Elano encontrou uma voz certa para as palavras a proferir:

— Durante muito tempo eu tive medo de ter algo que fosse tão importante para mim, que eu não suportasse a ideia de o perder. Só que depois apareceu você. A gente é tão certo, Cida.

Não causou espanto ao garoto que ela arregalasse os olhos em tom de surpresa, abrindo a boca sem emitir som. Elano continuou, deixando sair em torrente de jato o que tinha escondido durante longos meses:

— Você não sabe como foi difícil esse tempo todo. Você tão perto e tão longe. Você completamente cega por aquele palhaço e eu te consolando enquanto você me chamava de irmãozinho. Eu não quero ser seu irmão. Nunca quis.

Um diálogo tem duas vias, mas aquela conversa teve apenas uma. Cida se manteve petrificada de susto quando Elano a abraçou e desabafou antes de a beijar:

— Eu sou louco por você desde a primeira vez que eu te vi. Eu sou completamente apaixonado por você, Maria Aparecida.

Sem lhe dar tempo de resposta, o garoto juntou os lábios com os dela, sentindo joelhos que fraquejavam. Inicialmente julgando que eram os dele, só depois percebeu o estudante que afinal tinham sido os joelhos dela a dar de si e a segurou apertando o abraço.

Entre lábios que davam e recebiam, Elano segurou com uma mão na face dela e a sentiu fazer o mesmo na cara dele. Como numa imagem ao espelho, Cida reproduzia todos os movimentos do garoto, se entregando para que ele a envergasse.

Por um momento, tudo foi tão mágico quanto ele tinha imaginado e o seu final feliz estava derretido entre os seus braços.

Quando se quebrou o beijo e Cida compreendeu as implicações do que tinha feito, o que Elano tinha de vontade de sorrir, tinha ela de vontade de chorar, num pressentimento de erro inevitável.

No lugar mais seguro do mundo, ela se sentia perdida:

— Desculpa, eu não consigo ainda. Estou precisando de um tempo para digerir o que aconteceu, entender o que se passa dentro da minha cabeça, o que eu estou sentindo, sabe?

Ela não podia cometer, num espaço de tempo tão curto, o mesmo erro três vezes. Não com Elano, a última pessoa no mundo a quem ela podia partir o coração. Daquela vez não dava para avançar sem certezas que ela não tinha. Maria Aparecida nem se sentia dona da sua própria vida:

— Não te posso dar o que não é meu, Elano.

Ele não estava pronto nem para desistir, nem para a soltar de um abraço apertado. Desiludido, mas resiliente na sua paciência, o bom moço só queria poder acalentar aquele sonho:

— Me diz se pelo menos dá para ter esperança.

Ela sorriu, certa de poder responder com a verdade àquele pedido:

— Claro que dá.

Desde o início dos tempos que ele era dela e ela era dele. Se tinha que esperar que Maria Aparecida lhe abrisse o coração, Elano esperaria, certo de que tinha tanto amor que valia pelos dois.

As contas não podiam bater certo quando ele tentava dividir pela metade o que devia ser multiplicado em dobro. O bom moço quis esquecer a matemática continuando a rodar com Maria Aparecida nos braços, numa panorâmica de 360º pela cidade adormecida:

— Eu espero, meu amor. Eu espero o tempo que for preciso.

Excerto do diário da Cida:

Coimbra, 1 de Julho de 2016

Mãe,

 Está chegando o dia em que eu vou viver a minha vida do jeito que a senhora sonhava para mim. Hoje, eu começo de novo. Livre. Forte. A senhora vai ver. Ninguém me vai parar. Tive que bater com a cabeça, mas aprendi a lição, minha mãe: eu me basto.


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Notas finais do capítulo

Penso que se os leitores tiverem a oportunidade de visitar Coimbra já nem vão precisar de guia:). No próximo capítulo: aniversário de 20 anos da Cida. P.S. – Tenho feito um grande esforço para conseguir as postagens semanais, mas não as posso garantir como certezas. Espero que possam compreender isso. Beijo para todos!