Amor de Estudante escrita por Joana Guerra


Capítulo 10
Cavaleiro Andante


Notas iniciais do capítulo

Muito obrigada à Priscilla por ter favoritado, a toda gente que comentou e à Daniela pelas traduções de última hora! Se “Morena” é aqui a música-tema de Cida, “Cavaleiro Andante”, do Rui Veloso, podia muito bem ter sido a música-tema de Elano.



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Porque sou o cavaleiro andante

Que mora no teu livro de aventuras

Podes vir chorar no meu peito

As mágoas e as desventuras

Sempre que o vento te ralhe

E a chuva de maio te molhe

Sempre que o teu barco encalhe

E a vida passe e não te olhe

Porque sou o cavaleiro andante

Que o teu velho medo inventou

Podes vir chorar no meu peito

Pois sabes sempre onde estou”

(Rui Veloso, Cavaleiro Andante)

Coimbra, 17 de Junho de 2016

Elano entrou no apartamento agitando com a mão a embalagem de alpiste. Por um lado, chamava desse modo a atenção de Camões que se agitava na gaiola em antecipação pelo pitéu. Por outro lado, calava Isadora antes que ela abrisse a boca para criticar a presença do estudante no seu território marcado.

A única presença humana visível era a de Maria Aparecida, sentada à mesa enquanto rabiscava furiosamente no caderno de notas, anotando em colunas pouco simétricas as despesas já aparecidas e as que ela queria poder fazer desaparecer.

Ela continuava somando e subtraindo esperando em vão um resultado mais simpático, mas estava prestes a desistir de encontrar um erro milagroso.

— Pode entrar, meu capitão. A costa está livre. – convidou ela, atirando o lápis sobre o tampo do móvel.

O bom moço suspirou de alívio pela confrontação evitada e se sentou diante de quem se queria aproximar, ambicionando resolver o problema detetado:

— Cida, cê tá apertada de grana?

Constrangida, ela acabou assentindo. Não lhe era fácil assumir que tinha feito asneira com algo que era da sua inteira responsabilidade, mas com Elano ela podia confessar a verdade:

— Acabei comprando mais do que precisava. A bolsa de estudos não esticou tanto quanto eu gostaria e esse mês já estou no vermelho. Não sei como vou fazer agora. Não tenho coragem de pedir ajuda à madrinha.

Que espécie de cavaleiro seria ele se não a salvasse daquele dragão?

Elano percebeu que, pelo menos naquele caso, nem teria que polir a armadura para resolver aquela demanda. Fechando o caderno dela e arrumando o lápis azul, ele conhecia a solução perfeita:

— Olha, se você quiser estão precisando de garçonetes para o baile do hotel da Quinta das Lágrimas, que é já amanhã. É trabalho de peão, mas pagam cinquenta euros pelo dia. Eu também vou lá trabalhar de garçon.

O crédito não resolveria completamente o problema do débito, mas a ajuda era já muito mais do que ela poderia ambicionar:

— Será que me aceitam?

Ele sorriu. Teria que cobrar muitos favores para conseguir que a empresa responsável concordasse em contratar Maria Aparecida para um evento que era o ponto alto da alta sociedade coimbrã, mas ela não precisava saber disso:

— Deixa comigo. Eu falo com o meu patrão.

Independentemente da sua intérprete, uma Tracy Lord não estaria deslocada no evento que marcava o início da silly season.

Se era para admitir a verdade, o baile era apenas uma desculpa para que os ricos tivessem um pano de fundo adequado para exibirem os vestidos acabados de sair das passerelles e as joias frescas dos cofres-fortes, blindados por um sentimento de desculpabilização ao embrulharem a festa ao apelidá-la de beneficente.

Elano acabava de dispor os copos na bandeja, o penúltimo ato antes de começar a distribuir champanhe entre os detentores de um convite muito almejado.

O baile na Quinta das Lágrimas não era uma tradição, o que só reforçava o apelo quando se realizava.

Elano tinha conseguido a custo integrar Maria Aparecida no exército necessário para redecorar e fazer fluir o evento.

Podia parecer um passe de mágica para quem no início daquela noite entrava no edifício principal, depois de horas diante do espelho preparando a imagem que iria ser fotografada pelas principais revistas cor-de-rosa, mas tinha acarretado várias horas de trabalho invisível por parte de trabalhadores ocultos.

Num outro tempo, Elano se teria deixado chocar com a diferença gritante entre pobres e ricos. Uma das grandes lições que ele tinha retirado ao viver num país diferente do seu país natal, era a de que, independentemente de localizações geográficas, muitas chagas são universais. Muito mais do que apenas o idioma juntava Brasil e Portugal.

Mesmo sendo o país europeu uma terra que tinha congregado muitas raças e muitos credos ao longo de séculos, lutando para que estes se integrassem e se aceitassem mutuamente, a maior forma de racismo e de discriminação continuava sendo a de classes. 

Ainda que não admitida publicamente, a verdade é que para muitos o maior crime que alguém pode cometer é o de ser pobre. 

Anos antes, Elano ainda tinha tentado se envolver ativamente em política, mas rapidamente se desiludiu com o estado do mundo, considerando que podia canalizar energias para criar um mundo mais justo de uma forma mais direta, sem se desgastar em lutas que corriam em círculos para voltar ao ponto de partida.         

Para trás ficaram as passeatas em que gritava palavras de ordem segurando cartazes com palavras que eram também as suas, mas não chegavam ao destino pretendido.

Opiniões políticas à parte, nada impediria Elano de fazer um bom trabalho. Os dois pontos sempre tinham sido independentes.

Ele só esperava que Cida regressasse do labirinto de corredores interiores com o saca-rolhas necessário para fazer soltar o líquido borbulhante do seu invólucro de vidro cinzelado.

Um convidado apressado se inclinou sobre o balcão do bar ainda não aberto, compondo o laço do smoking enquanto ajustava o ângulo da selfie para que também contemplasse Elano:

— Um Martini, por favor. Shaken, not stirred.

O garçon rebelde se escondeu atrás de uma bandeja. Danilo já devia estar farto de saber que ele odiava exposição e que a última coisa que Elano queria era que aquela foto acabasse por ser vista pelos milhares de seguidores do Marra nas redes sociais.

Tinham sido horas perdidas, as que o primo de Megan Parker Marra havia gastado tentando explicar para o amigo conceitos tão corriqueiros como, por exemplo, o de como se faz um snap, mas no estudante de direito, a informação entrava devagar por um ouvido para sair correndo pelo outro. Elano não era capaz de entender o poder de alcance da mídia social.

— A gente não serve álcool a crianças, Danilo. – brincou o bom moço quando os flashes cessaram.

Aproveitando o enorme espelho que atravessava a largura da parede do bar, o milionário compunha o penteado ensaiado:

— Confessa, cara. Eu estou parecendo o James Bond.

Elano riu com vontade na cara do amigo, confirmando pelo canto do olho que o seu supervisor não estava também assistindo à cena:

— Você está parecendo um pinguim, isso sim.         

O bom moço já esperava que o amigo reagisse à ofensa inocente em tom de melodrama camiliano. Foi o que o Marra fez, colocando dramaticamente a mão sobre o lado esquerdo do peito enquanto arregalava os olhos:

— Você quer acabar com o Brotp? Continua dizendo isso e eu já não te levo em Cannes. A minha tia me deu aqueles convites, mas não disse que era obrigatório eu te levar.

Fragoso considerou que a ameaça que bem podia ter saído da boca de uma criança de cinco anos chegava a ser fofa, mas isso não o impediu de continuar rindo do amigo, se esquecendo de que ninguém cala um Marra:

— Pensando bem, acho que posso levar só a Cida e ficar uma semana tomando champanhe num iate perdido no Mediterrâneo. Que é que cê acha, Elano? Eu pegando a sua mina, dando os beijões que você não dá, chamando ao ouvido dela: Cida, Cida, Cida…

— O que é que tem a Cida?

A garota tinha acabado de regressar triunfalmente com o saca-rolhas desaparecido, mas nem teve tempo para cantar vitória ao descobrir Danilo com os braços em torno de si mesmo, abraçando um ser invisível enquanto proferia o nome dela repetidamente.  

— Tem que você fica linda de uniforme e eu tenho que regressar ao salão. Aquelas ostras não se vão comer sozinhas. – se despediu o melhor que conseguiu o Marra, se inclinando para beijar a mão dela e catando do chão os pedaços resultantes da explosão do mico.

A rolha da primeira garrafa finalmente se soltou com o abençoado utensílio. Ninguém tinha compreendido como é que era possível que, em garrafas que custavam pequenas fortunas, as rolhas tivessem ficado soldadas ao vidro.

— O Danilo estava estranho. – acabou comentando Cida, enchendo as flutes.

— O Danilo é estranho. – riu-se Elano.

Era um fato. Ela também se riu, relembrando os pequenos episódios passados na companhia do amigo.

— Não aguentei de curiosidade e espreitei para o salão no caminho de volta. Cê não sabe, Elano, mas é cada vestido mais lindo do que o outro. Nem na Galerie, a dona Sônia tem roupa tão elegante. Parece que tem um monte de realeza aqui do lado.

Nem o hábito faz o monge, nem o vestido a mulher. Mesmo de uniforme e cabelo apanhado, Maria Aparecida parecia a Elano muito mais uma princesa de conto de fadas do que qualquer outra de legítimo sangue azul.

Ele ainda podia roubar ao tempo alguns minutos preciosos. Sorrindo, Elano abriu a porta que dava para os jardins e a puxou pela mão:

— Se bem me lembro, estou te devendo uma dança.

Ela riu de vergonha. Parecia impossível que Elano se lembrasse de uma promessa fingida, resposta não esquecida a algo que ela tinha pedido debaixo de febre.

A noite de quase verão era produto de um sonho imaginado de calor morno e brisa serena. Era fácil imaginar que, debaixo da vegetação fecunda ou no topo da copa de uma das muitas árvores centenárias, se escondiam Puck e Oberon, preparando um plano para brincar com o amor jovem e promovendo trocas amorosas causadas por feitiços inquebráveis.

Caso não fossem os elfos ou as fadas que habitavam aquele bosque a fazer a sua magia, era de qualquer modo uma boa noite para pedir amor para a lua, redonda e fértil no céu do hemisfério norte.

De amor entendiam os insetos abrigados debaixo dos arbustos, em camas de folhas caídas e velhas cascas de árvore, mas o manto de invisibilidade os mantinha fora do alcance do olhar do par.

Elano não esperou mais quando chegaram a um local dos jardins onde se conseguia ouvir o produto das cordas da orquestra que tocava no salão e enlaçou a cintura de Cida, colocando pouca pressão na região lombar, ao mesmo tempo que colocava uma das mãos dela no seu ombro e pegava na outra, deixando escorregar os dedos. Sem lições, eles tentavam dançar uma valsa pela primeira vez. 

— A gente passou o dia montando essa festa beneficente e eu nem sei qual é a causa que eles querem apoiar. – riu-se ela, deixando que ele a rodopiasse com cuidado para não tombar sobre um dos canteiros de narcisos.  

— Acho que querem construir um aquário. É sério, Cida. – explicou ele enquanto tentava não embater contra os obstáculos já que ela morria de rir.

— Tá, Elano. Isso explica de uma forma muito estranha todo aquele marisco saindo da cozinha.

Os dois dançavam de uma forma absolutamente desajeitada. Não era bonito de se ver, mas era real.

Quatro pés esquerdos também tinham o direito de se expressarem em liberdade.  Um, dois, três, contava a música em passos precisos. Quatro, sete, nove, se moviam Elano e Cida, contrariando a lógica imposta.

Por sorte o ritmo abrandou, requerendo a mínima mobilidade dos dançarinos. Elano se viu debaixo de um ulmeiro centenário balançando milimetricamente Maria Aparecida nos braços, esperando por um final de canção que não vinha.

Durante a tortura musical criadora de um limbo, o bom moço apertou o abraço convencionado pela dança, criando uma interpretação própria do estilo.

Poderiam milhares de mulheres alegarem ser irmãs gémeas de Maria Aparecida, que ele encontraria sempre os pequenos traços que a diferenciavam e tornavam única.

Tanto ela se tinha tornado essencial para ele, que Elano temia o avançar do dia até que se tivessem que separar.

Ali, perdido em pensamentos, o impossível acontecia diante dos seus olhos. Sem que ele o conseguisse supor antes, entre o céu e a terra existiam dois corpos abraçados no final de uma dança.

A vida o vinha surpreendendo. Nunca Elano poderia supor que iria voltar a saber qual o sabor da comida da mãe, em refeições de partilha de mais do que só de alimentos para o corpo.

Contudo, nas semanas anteriores, Maria Neide abria a porta de casa ao filho e a Maria Aparecida com pontualidade britânica, de coração também ele aberto para se aproximar do menino abandonado e do homem regressado, reaprendendo a Cartilha Maternal para o conseguir ler.

O bom moço bem tentava explicar à mãe que Cida era apenas uma amiga e não a sua namorada, mas a senhora não via onde residia a diferença:

— Essa garota gosta de você, Elano. Dá pra ver isso no olho dela.

— Ela tem namorado, mãe.

— Isso se resolve com facilidade, meu filho.

A música nunca mais chegava ao compasso final e arriscava-se a provocar mais acidentes do que todos os bemóis e sustenidos daquelas partituras.

— Cê acha que Pedro e Inês também dançaram aqui?

A pergunta inofensiva de Cida fez brotar um diabinho no ombro de Elano. Porque é que ela teimava em olhar tanto para o passado e resistia com a teimosia do asno amado por Titânia a pensar no futuro?

— Essa era a casa deles. Só se fossem tontos é que não dançariam.

Ele contava a história como ela a queria ouvir, improvisando fatos históricos não passíveis de serem comprovados ou desmentidos.

Acontecimentos recentes também mereciam ser trazidos à tona, sem apelo por embelezamentos:

— Vi o Conrado chegando. Ele não veio falar com você?

Maria Aparecida encostou o queixo no ombro que sempre a amparava, escondendo os olhos daqueles que os podiam ler.

Era evidente que Conrado Werneck não desceria do pedestal dourado. Nunca ele quereria admitir perante a alta sociedade que estava namorando uma empregada plebeia.

A música enfim findou e meia dúzia de notas que se escaparam das cordas dos instrumentos ficaram pairando no ar, esperando ser levadas pelo vento para bem longe, mas Cida pareceu não perceber que era hora de terminar.

Ela pensava no carrossel de altos e baixos que representava a sua vida nas semanas anteriores.

Conrado a puxava e a afastava com a mesma força de movimento.

Ela se zangava com as atitudes que não conseguia evitar criticar, não conseguindo perceber como é que dentro de um homem que conseguia ser um príncipe com ela, também existia um monstro egoísta.

Mas depois ele vinha como uma criança pedindo colo, se valendo do estatuto de órfão de mãe para instilar pena em Maria Aparecida, a fazendo se sentir solidária com a dor dele e culpada por não compreender as suas atitudes.

Conrado Werneck podia não ter grande futuro como advogado, mas daria um ator digno de novela das sete ou, talvez, ele estivesse vaticinado a ser um daqueles intérpretes que desaparecem misteriosamente da televisão durante anos depois de um acaso de sucesso.

Se ele não terminasse com ela em breve, seria Cida a tomar a iniciativa.

— Tá na hora da gente voltar para dentro, Elano.

Nenhum dos dois queria dizer adeus àquele momento, mas todas as danças têm um final. A noite estava apenas começando.         

— Você tem que vir comigo.

— Agora, Elano? A festa ainda não terminou e os meus pés estão me estão matando.

Depois de horas trabalhando de pé, subindo e descendo escadas equilibrando bandejas, Maria Aparecida achava ter descoberto a verdadeira razão pela qual Cinderela tinha perdido o sapato no baile.

Se já lhe custava ter feito tantos quilómetros usando calçado confortável, a Gata Borralheira teria com certeza sorrido de alívio ao se ver livre daqueles saltos assassinos, ainda que de cristal, depois de ter passado a noite dançando em cima deles.

De cada vez que se cruzava com Elano, ele a tentava animar, zoando por gestos discretos com um dos convidados emproados. Mesmo de costas, ela sentia os olhos do estudante cravados nela, como uma rede de suporte caso ela cometesse uma gafe.

Cida só teria que suster a respiração um pouco mais. Com o avançar da hora, chegaria em breve o tempo de todo o mundo ir embora.

— O que é que aconteceu, Elano? Tenho um monte de material para levar para dentro e…

— Você confia em mim?

A que propósito vinha aquela pergunta? Claro que ela confiava. Maria Aparecida confiava até mais no bom moço do que em si mesma.

— Cida… você confia no Conrado?

— Que é que deu em você hoje? Às vezes eu acho que o Conrado é tão assim de outro mundo, mas eu sei que ele me ama.

Quem realmente ama tem a alma dilacerada quando tem que infligir dor ao seu amor, mas Elano tinha apenas uma chance de atravessar o coração daquele dragão com uma espada. Havia chegado o momento:

— Olha pra mim, Cida. Você não enxerga as coisas. Esse Conrado só existe na tua cabeça. Não é real.

— O que é que você está dizendo?

— Estou te pedindo que você venha comigo e veja a verdade com os seus próprios olhos. Quero que você queira ver a verdade.

Os elfos e as fadas do bosque se esconderam quando Elano aproveitou a escuridão para guiar Maria Aparecida até ficarem obscuros pela portentosa figueira da austrália cujas raízes se erguiam como chicotes do chão.

Entre seres mitológicos e seres reais, todos estavam à escuta, caçando as palavras de uma discussão abafada pelo ruído da água correndo da Fonte das Lágrimas.

— Há muito tempo que você me está devendo uma explicação, Conrado Wernek. Eu não sou qualquer uma para você me usar e jogar fora.

Cida estremeceu ao reconhecer a voz de Isadora, ainda que dois tons acima do habitual. O que é que aquilo queria dizer?

— O que aconteceu entre a gente foi coisa de uma vez só. Foi uma necessidade, Isadora.

Nos pés de Maria Aparecida cresceram asas, mecanismo de fuga infalível, mas Elano a segurou no mesmo lugar. Tal como quando se arranca um band-aid, era melhor fazer aquilo de uma vez só. Doía nele por doer nela, mas o bom moço não a podia deixar sair sem ouvir toda a verdade.

— Uma necessidade? Qual é, Conrado? Eu sou Isadora Muniz Lyra Sarmento. Nenhum homem me trata como você me tratou. Vai me dizer que se apaixonou de verdade pela empreguete?

Conrado apenas respondeu com silêncio. Sem ver a resposta física que nunca mente, seria impossível ter a certeza da tradução daquela mensagem.

A voz irritada da Sarmento continuava a ecoar pelo espaço, em ondas de amplificação de som:

— Eu conheço muito bem o seu jogo.

— O que é que você quer dizer com isso?

— Os seus amiguinhos já contaram para todo o mundo sobre a famosa aposta. Todo o campus sabe que você só está com essa desclassificada até a conseguir levar para a cama. Depois disso, ela volta para a cozinha, que é o lugar dela.

Estava o band-aid arrancado, mas Elano pensou que a ferida seria a causa de morte de Cida. Cambaleando, ela saiu da obscuridade não pronta para enfrentar Conrado e Isadora, mas apenas para ter a certeza de que os seus ouvidos não a enganavam e pregavam uma peça dramática.

Isadora podia ser uma falsa senhora, mas foi verdadeira na hora de acabar rapidamente com o que ela considerava ser uma palhaçada. A vingança sempre tinha sido um dos seus desportos favoritos:

— Cê tava aí, que-ri-da? Ótimo. Já falei com papai e mamãe e contei tudo o que você fez. Por isso, considere-se despedida, meu bem. E pode procurar outra casa. Ninguém quer viver com um empreguete atrevida.

Foi um ato desnecessário, Elano ter-se colocado entre as duas, porque Isadora já tinha destilado todo o veneno guardado. Sem mais delongas, a Sarmento saiu de cena.

É sempre cómica ver a reação de um cobarde ao ser apanhado em flagrante. Conrado recorria a argumentos que não teriam enganado uma criança de colo, como se o mundo tivesse feito uma conspiração maquiavélica para o tramar.

Cida o escutava em silêncio, esperando o momento mágico em que iria acordar e perceber que tudo tinha sido um sonho mau.

Werneck usava sujeitos, verbos e predicados numa confusão desconexa de quem não pode defender o indefensável.

Elano o ia desafiar para um duelo sem os dez passos de compasso de espera antes de se dispararem as armas, mas com um golpe de gancho esquerdo em cheio no nariz do patife.

Ele se sentiu apreensivo durante um milissegundo, quando sentiu que Cida o refreava, o afastando do caminho, mas ficou aliviado quando a viu levantando a mão e assentando um estalo sonoro na cara do playboy:

— Nunca mais quero olhar na sua cara, Conrado.

A garota ainda se conseguiu afastar com meia dúzia de passos periclitantes, mas as forças lhe faltaram quando os verdadeiros sentimentos se fizeram sentir, derretendo as suas pernas em material gelatinoso, a prendendo como planta no mesmo lugar.

Ela queria gritar, mas nem conseguia respirar. Tudo em volta ficou turvo quando ela se agarrou às cegas a Elano, ofegando dada a respiração superficial que parecia não lhe chegar aos pulmões:

— Pelo amor de Deus, me tira daqui.

Danilo dirigia com cuidado, tentando ao máximo evitar os buracos da estrada. Tinha demorado uma pequena eternidade para conseguir tirar a viatura do estacionamento.

A baixa velocidade a que seguia lhe permitiu ter tempo para olhar pelo espelho retrovisor para os ocupantes do banco traseiro.

Cida trazia da Quinta todas as lágrimas. Elano a abraçava, com a camisa toda ensopada do pranto que não parava de correr. Por um nanosegundo, o bom moço se castigou por ter forçado a que toda a verdade tivesse vindo à tona, mas, por vezes, para criar algo novo salubre é necessário destruir o velho doente.

Estavam chegando em casa quando um objeto embateu contra o para-brisas da viatura, bloqueando a visão. Estava chovendo…roupa?

Danilo saiu do carro verificando a origem dos objetos espalhados pela rua. Da janela do quarto andar, Isadora atirava os pertences de Maria Aparecida sem se preocupar com o alvo.

A precipitação inusitada levou a que Cida saísse do carro correndo com medo de que tivesse havido uma vítima inocente de qualquer crime.

A gaiola com Camões estava do lado do contentor do lixo. O pássaro estava assustado, mas nada mais.

Felizmente, não tinha sido atirado do quarto andar, mas antes depositado como um bem descartável. A garota suspirou de alívio, acalmando o animal enquanto Danilo e Elano catavam a roupa e os livros do chão.

Os cavaleiros modernos se aproximaram da sua dama, a levantando da berma onde ela se tinha sentado com a gaiola no colo. No meio do pesadelo, o sentido prático dela só se permitiu a uma pergunta:

— Para onde é que eu vou agora?

A questão nem se colocava. Havia muito que tanto Elano como Danilo tinham jurado lealdade à sua senhora. Foi o Marra a tranquilizá-la quanto ao único problema passível de ser resolvido naquela noite:

— O Conrado vai embora e você fica com a gente. A casa é sua pelo tempo que você quiser.

Excerto do diário da Cida:

Coimbra, 19 de Junho de 2016

Mãezinha,

Achei que estava construindo uma casa de concreto, mas afinal era tudo feito de palha seca, lama nojenta e madeira oca. O Lobo Mau nem teve que soprar com muita força para tudo ruir e cair na minha cabeça. O que é que eu faço agora, minha mãe? Como é que eu pego os cacos e começo de novo? Estou condenada a cometer sempre os mesmos erros?


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Notas finais do capítulo

O festival de cinema de Cannes decorre em Maio (Go Aquarius!), mas vou fechar os olhos para a incongruência. Para os leitores que podem ter ficado a pensar que eu estava atirando nomes ao acaso: Titânia, Oberon e Puck são personagens de uma peça de Shakespeare - Sonho de Uma Noite de Verão. Na peça, o Rei dos Duendes (Oberon)e Puck (um elfo) usam uma flor mágica para criar uma poção segundo a qual o atingido se apaixona pela primeira pessoa que vê. No meio da confusão, Titânia (a Rainha das fadas) acaba se apaixonando por um burro kkk.No próximo capítulo: Habemus declaração de Elano, mas será que o timing vai ser o melhor? Beijo para todos :).