Delta escrita por Rodrigo Silveira


Capítulo 6
Vingança


Notas iniciais do capítulo

Momentinho de silêncio por vocês sabem quem...



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No meio da multidão, eu podia ouvir coisas como “Ele era só um garoto” ou “Essas câmeras não nos protegem em merda nenhuma” de um bando de desconhecidos, mas naquele momento, euque era amigo de Dex, não sabia o que dizer. Ou sentir.

Taka me puxou para longe da multidão. No céu, uma enorme nuvem chuvosa estava se formando. Ele me levou de volta pelos becos até ter certeza de estarmos perfeitamente escondidos. Então ele me soltou e eu caí escorado em uma parede.

Chorei quase sem voz, sentindo as primeiras gotas d’água da chuva tocando a minha pele. Em pouco tempo, a neblina tornou-se um temporal. Meu peito doía enquanto eu lutava comigo mesmo para segurar aquela dor e não romper em prantos. Eu também estava lutando para não me descontrolar e deixar que as chamas saíssem de mim, mas entendi que era para isso que Taka estava fazendo chover.

Ele estava ali parado, mas respeitou meu momento de dor e não olhou para mim; não fez piada alguma, nem demonstrou compaixão. Só estava olhando para cima, quem sabe, checando se as câmeras estavam realmente desligadas.

[...]

Eu nunca ficava doente. Mas no dia seguinte, quando acordei, senti algo pesar em meu peito como se fosse uma enorme ressaca, coisa que eu nunca tive, só pra deixar claro. Dex. Esse era o pesar. Eu ainda não havia assimilado a perda. Era como se não tivesse acontecido. Ele só não estava ali comigo naquele momento. Era como se estivesse em outro lugar.

Permaneci deitado por um bom tempo. Estava sem camisa, vestindo um short curto. Sabia que Taka tinha me levado até em casa, mas não me lembrava dos detalhes. O cara tinha deixado o seu inseparável colete de couro pendurado na minha cama.

A imagem do menino gentil e atencioso que era Dex combatia a imagem do corpo deitado ao chão na minha cabeça. Na verdade, me pesava saber que era culpa minha. De algum modo, se eu estivesse lá, o teria protegido, ou ao menos tentado.

Depois de finalmente me levantar, fui até o banheiro. A cada passo que dava, o chão parecia ter centenas de agulhas que perfuravam meus pés descalços. Mais uma vez, meu pai não estava em casa. Durante a noite, ele se dedicara a consolar a senhora Lithman, mãe de Dex, coisa que eu não tinha força de espírito para fazer. Diante do espelho, encontrei um estranho. Meus olhos estavam avermelhados e inchados. Não precisava de memória alguma pra saber que eu tinha chorado a noite toda. Meus cabelos estavam bagunçados e ressecados, e por mais forçado que pudesse parecer, a marca em formato de triângulo em meu abdômen era a única coisa que eu tinha de familiar. Também era o que me mantinha preso àquela realidade assustadora, lembrando-me insistentemente que a IRIS me queria. Assim como recordava que a morte de Dex, definitivamente, estava reZacionada a isso.

Segui desnorteado em direção ao quintal. Alguma coisa precisava ser feita, e o ar livre. Livre também de câmeras. Ajudaria-me a pensar.

O clima do quintal estava estranhamente pesado, não havia correntes de ar passando naquele momento. Apesar de eu estar sem camisa, o calor estava insuportável. Até mesmo as roupas estendidas no varal estavam inertes. Eu suspeitava que eu mesmo estivesse causando aquele clima quente apesar de não saber como controlar. Taka havia falado sobre manter a calma e não se estressar com ninguém, mas a única pessoa com quem eu estava realmente furioso era comigo mesmo.

Toquei levemente meu pé no piso de FLYERSTEP, nem me dei ao luxo de ligar o som. Por um momento, vi o chão em que meu pé tocou esfumaçar. Depois, nada aconteceu.

— O que está tentando fazer? Uma dança sensual? Uma dica. Não é bem assim que funciona. Nossa. Você é até que fica bem sem camisa. — A voz de Taka soou irritantemente reconhecível.  Eu o encontrei escorado na mureta do vizinho. Bufei olhando para ele, irritado. — Mas como eu disse, precisa fazer mais exercícios.

— Primeiro — Disse eu. — Pare de dar em cima de mim, seu viado. Depois, é crime entrar na casa dos outros sem permissão.

— Desculpe. Sei que não está tendo um bom dia. — Falou Taka, com um tom sério. — Em minha defesa, eu não entrei aqui sem permissão. Foi seu pai que me deixou entrar. Afinal, eu sou o colega solícito que o trouxe para casa ontem. E, a propósito, eu vim buscar meu colete.

Passei por ele para pegar o colete. Queria me livrar de meu “colega solícito” o mais rápido possível.

— Está no meu quarto. Vou buscar.

— Posso te dar um conselho? — Perguntou Taka, de braços cruzados. Naquele dia ele estava vestindo uma camisa longa, cujas mangas iam até os punhos. Eu parei na porta do quintal. — Você não deveria andar sem camisa. — Ele apontou para a marca na minha barriga. — Alguém pode ver essa sua cicatriz sexy.

Corri até o varal e retirei uma camiseta, vestindo-a rapidamente. Passei por Taka em seguida sem sequer olhar para ele. Fui apressado ao quarto e tirei ligeiramente o colete de Taka da cama e caminhei de volta ao quintal. Para minha surpresa, encontrei Taka já dentro de casa, no corredor.

— Eu falei pra não entrar na minha casa! — Minha voz tinha um misto de ódio e choro — Você sabia de muito do que estava acontecendo. E não fez nada pra salvar o Dex.

Os ombros de Taka contraíram-se como se ele estivesse relaxando.

— Olha. Minha missão aqui é proteger você. Ninguém mais. — Falou ele. — Se fosse possível, eu o teria salvado. Eu te acompanhei, não foi? Te avisei pra deixar todo mundo de fora. O que está começando é perigoso.

Joguei o colete em Taka, que o segurou velozmente. Depois, coloquei o dedo no peito dele, ignorando completamente o aviso de não se irritar, e berrei:

—Vai se ferrar. Você diz que está aqui pra me proteger, mas não diz por que essas pessoas estão atrás de mim. Eles mataram o único amigo que eu tinha. O único que me explicava o que estava acontecendo. Que fazia as coisas fazerem sentido.  Mas eu não soube como protegê-lo. Não sei o porquê dessa merda — Disse, levantando a camiseta e expondo a marca. — estar aqui. Parece que você sabe, mas não quer explicar. Então, de novo, vai se...

Nesse instante, meu pai apareceu no corredor. Abaixei rapidamente a camisa e me afastei de Taka.

— Eu estou interrompendo? — Meu pai perguntou.

Percebendo a situação constrangedora em que estávamos, Taka abriu um sorriso na direção do meu pai.

— Não se preocupe, senhor Erik, não está interrompendo nada. Ele não faz meu tipo. Aliás, soube que ele tem até uma namorada.

Olhei para ele indignado, com o que estava supondo.

— Filho — Meu pai falou, sério. Porém, havia uma expressão em seu rosto lutando para parecer manso comigo naquele momento. — Vim avisar que o funeral será às seis da noite.

Toda a fúria que eu estava sentindo foi canalizada pelo momento.

— Nos vemos outra hora, Reen. — Disse Taka, sem expressar sentimento algum. — Obrigado por me deixar pegar meu colete, senhor Erik.

O garoto passou por nós atravessando a porta sem olhar para trás.

— Sei quando você não está bem, Reen Kosh — Falou meu pai, escorando-se em uma parede por causa da perna. — E hoje você está horrível. Agradeça ao seu amigo outro dia.

— Ele não é meu amigo. Na verdade eu não... — Eu me segurei. Precisava manter a mentira. A IRIS não ia se envolver com meu pai. Isso não. — Ele é só um cara da escola.

— Ainda assim, ele te trouxe em casa, te emprestou o colete dele, ele foi legal com você. Ser grato é importante, às vezes.

Apenas me virei e voltei para o quarto. O que ele disse era verdade. Eu não estava nada bem, o que era bem estranho. Tranquei a porta e me joguei na cama.

Talvez fosse justo cogitar agora a ideia de papai de sair dali. Não era seguro. Nem para mim, nem para os que estavam ao meu redor. Mas eu não tinha para onde ir. Tirando a cidade de Judas que, por ser uma zona de guerra, não havia nenhuma cidade suspensa que fosse livre das câmeras. E como Taka não estava disposto a ajudar com nenhuma informação, eu estava completamente impotente mesmo com as repentinas labaredas de fogo, pois eu não sabia como controlá-las.

Bati a cabeça na parede na tentativa de brigar comigo mesmo, para retomar as memórias daquele dia. Do dia em que tudo começou. Os usuários de drogas, como Sungro morreu. O dia em que eu fiz uma coisa imprudente.

Uma coisa imprudente. Acho que era o que eu precisava fazer.

Talvez eu quisesse me vingar.

Não importava de quem, mas era o que eu queria fazer agora.

[...]

Não havia muitos presentes no enterro. Apenas algumas pessoas da escola. Alguns alunos com quem eu sabia que Dex conversava casualmente.

Sendo sincero comigo mesmo, eu acreditava que era o único amigo de verdade que ele tinha. O jeito intelectual e animado demais de Dex não agradava muita gente. Mas isso não impedira a amizade entre nós. Às vezes Dex sabia que eu não estava o escutando, mas continuava suas explicações na esperança de me fazer encontrar um rumo.

Era difícil me controlar em uma situação como aquela. Eu precisava parecer forte, mas a culpa ainda pesava em meu peito. A causa da morte oficial era um infarto repentino. Era difícil acreditar, mesmo se eu não soubesse que a IRIS estava envolvida. Eu simplesmente não conseguia olhar na direção do caixão. Ele estivera fechado durante todo o velório e isso me poupara da dor de ver o rosto de Dex abatido pela morte. Tudo o que eu precisava era me lembrar dele sorrindo.

Meu pai não estava próximo da cova. Ele estava sentado em um banco um pouco afastado próximo a outro túmulo. Sua perna metálica o impedia de permanecer de pé por muito tempo. O nome de Janine Odon, minha mãe, estava esculpido na lápide à sua frente, mas ele não estava olhando para lá. Meu pai também parecia não estar olhando em direção ao funeral, seus olhos, que ultimamente pareciam sempre estar cansados, estavam mirando o céu de cor cinza quase azulada.

No meio das pessoas presentes, assim que elas começaram a se dissipar, finalmente eu pude ver a mãe de Dex, Mekan, uma mulher de meia idade, que agora parecia bem mais velha. Estava com um vestido da cor do céu. Era a única pessoa que não estava de preto. Seu semblante estava inconsolável. E isso quebrava meu coração. Passei a mão apertando o paletó preto por cima do abdômen onde ficava a marca triangular. De alguma forma, eu sabia que aquilo era a origem das chamas que saíam do meu corpo sem me queimar.

Enfim, caminhei em direção a Mekan. A mulher de feições cheias, porém abatidas, me olhou com um relance de ternura em seus olhos tristes. Ela me abraçou. Eu era apenas um pouco mais baixo que ela, permitindo que Mekan repousasse a cabeça em meu ombro. Pude sentir os cabelos grisalhos dela tocando meu rosto.

— Ele te amava. — Falou ela com a voz seca. — Queria ser igual a você.

Ninguém deve ser igual a mim. Eu sou um irresponsável, um monstro pensei, mas decidi que nenhuma palavra sairia da minha boca. Isso me impediria de desabar em prantos. Ninguém ali jogaria um balde d’água em mim quando estivesse em chamas. E Taka, definitivamente, não estava ali para fazer chover. Então finalmente a soltei, brigando com meu rosto para forçar um sorriso.

Assim que me virei para procurar meu pai, vi Lea se aproximando. Ela estava acompanhada de Sali, a diretora da escola, não havia sinal algum dos pais dela. Tinha algo no olhar da garota. Uma sensação de derrota por trás dos óculos.

Sali parou mais atrás e Lea avançou, segurando-me pelo paletó e me puxando para um lugar mais afastado no cemitério. Assim que me soltou, pude a olhar mais de perto.

— Preciso falar com você. — Disse ela, quase sem voz.

Eu enchi os pulmões de ar. Precisava contar a decisão que havia tomado mais cedo.

— Não. — Eu me adiantei. — Eu preciso falar primeiro.

Ela me olhou de volta com certa decepção. Eu continuei:

— Já chega. Cansei de ser perseguido. Eles não vão fazer o que fizeram com o Dex com mais ninguém. Eu não vou ser vítima de ninguém. Hora da vingança. Preciso da sua ajuda, preciso de você. — Olhei Lea firmemente nos olhos. Ela ia abrir a boca, mas eu segui falando. — Você sabe todas aquelas coisas sobre a IRIS. Eu preciso me aprofundar. Descobrir o que está escondido. Nós podemos derrubar eles. Impedir que mais gente se machuque. Tirar essas câmeras da nossa cola, da nossa vida.

Quando terminei de falar, eu esperava que Lea dissesse alguma coisa. Ela virou o rosto e deu uma pequena risadinha. Eu recuperei o fôlego.

— Você viaja demais. — Lea falou finalmente. — O que você acha que está acontecendo aqui, Reen? É o enterro do seu melhor amigo. Meu Deus, o que eu estava pensando? Eu fui atrás de você, cheia de teorias e idiotices, como se duas crianças pudessem derrubar o império que eles construíram. Olha isso, Reen, eles têm apoio do presidente de Nova Éden. Podem derrubar qualquer um. Não ligam se é uma criança ou um idoso. Ninguém vai preso. Eu desisto. Vamos fingir que isso nunca aconteceu.

Contrariado, abri e fechei a boca algumas vezes, enquanto minha cabeça processava a informação. Depois, consegui falar:

— Não, espera, nós podemos. Você viu o que eu posso fazer. Só preciso de um pouco de treino. Acho que o Taka pode ajudar também. Tem que acreditar. Todas as informações que você tem. São muito valiosas.

Lea arfou como se estivesse exausta.

— Tinha um cara, seu lesado. Aqui. Estava olhando pra mim. A diretora Sali também viu. A IRIS está em toda parte mesmo. Seja lá o que eles querem. Estão levando a sério. — Ela pôs o dedo em meu peito — Vai pra casa. Acabou. Pra todos nós.

Então ela se virou e me deixou sozinho, processando a informação. Não restaram muitas pessoas naquele momento. Meu pai ainda estava sentado ao longe. Fiquei um pouco sozinho, tentando lidar com o fato de que estava sem chão. Tinha perdido todo o apoio que poderia ter. Dex se fora e Lea me abandonara. Eu não fazia ideia de onde estava Taka e nem se ele poderia ajudar. A ideia de contar o que estava acontecendo para meu pai ainda não passava pela minha cabeça. Mudar para outra cidade parecia tentador, ainda que soubesse que era inútil.

Minutos depois, fui até meu pai. Ele não parecia incomodado com a demora. Talvez pensasse que eu precisava de um tempo sozinho. Talvez não fosse verdade. Aquele era o tipo de momento em que eu precisava de alguém para me dizer o que fazer.

— Acho que já podemos ir — Eu falei, pondo-me na frente dele, entre ele e o túmulo da minha mãe, a quem eu aprendi a ignorar na vida, já que meu pai dificilmente comentava sobre ela. Tudo que eu sabia era que ela havia morrido quando eu tinha dois anos, no mesmo acidente em que meu pai perdera a perna. Apesar de não ter derramado sequer uma lágrima, eu tinha a sensação de que meu rosto parecia inchado e meus olhos estavam cansados.

Ajudei meu pai a ficar de pé e ele bagunçou meu cabelo gentilmente.

— Vamos então — Ele falou, sem expressar nenhum sentimento, nem exigir que eu prestasse alguma reverência diante do túmulo da minha mãe. — Precisa dormir um pouco. Os próximos dias vão ser difíceis.

E ele nem sabia o quanto.

 


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