Delta escrita por Rodrigo Silveira


Capítulo 4
Perseguido


Notas iniciais do capítulo

Voltamos com mais um capítulo. Espero que gostem.
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O enorme relógio da praça do shopping Variant parecia estar congelado. Seis e quarenta e cinco.

Confesso que nunca tinha tido um encontro antes. Precisava me livrar desse peso. Não que aquele fosse exatamente um encontro real. Na verdade, eu nem sabia exatamente o que Lea queria comigo.

Eu não conseguia imaginar quando teria uma chance daquelas de novo. Confesso também que havia mentido para meu pai, dizendo que iria para a casa de Dex. Aquilo não ajudaria em nada nos problemas de confiança que ele estava tendo comigo, mas, veja bem, era uma garota que um garoto como eu não teria outras chances fáceis assim. Mesmo percebendo que ela não queria ser vista comigo.

— Ei. Tá esperando alguém descer do relógio?

Quase pulei para trás ao ver Lea parada na minha frente. Em seguida dei um sorriso discreto de babaca.

— Oi.

Lea me olhou de cima a baixo e em seguida olhou ao redor.

— As meninas disseram que você era lesado. Mas isso é incrível.

Como sempre, eu não fazia ideia do que ela estava falando. A propósito, Lea estava linda. Ela estava com os cabelos soltos colocados para trás, e vestia uma roupa que eu definitivamente não sabia como chamar. Mangas longas, um pequeno decote na frente. E uma calça jeans.

— Ei! Se eu não precisasse, não estaria aqui. — Lea deu um tapa com certa força na minha cabeça — Presta atenção no que eu tô falando. — Ela apontou para dois homens. Eles estavam de pé na entrada do shopping, estavam vestidos de preto. — Não percebeu aqueles caras te olhando?

Olhei para eles e balancei a cabeça negativamente.

— Com certeza não são guardas. Vem. — Lea chamou — Vamos para a praça de alimentação.

A garota começou a caminhar. Pra variar, demorei um pouco a entender, depois levantei e a segui. Lea deu passos largos e eu tive que correr um pouco para alcançá-la. Nós paramos de frente à entrada do elevador e esperamos que ele descesse.

Virei para trás e dessa vez notei um homem vestido como os outros, talvez estivesse só disfarçando, mas não estava olhando para nós. Quando o elevador chegou, Lea me puxou para dentro.

Nós dois estávamos a sós lá dentro enquanto a máquina subia em direção ao quarto andar. Escorei-me na parte de trás tentando parecer descolado, enquanto Lea estava de pé, numa postura perfeitamente ereta, como costumava se portar na escola. Eu cogitei perguntar o que estava acontecendo ou, quem sabe, elogiá-la, mas desisti em seguida.

Quando as portas do elevador se abriram, nós havíamos chegado ao quarto andar: A área de alimentação. Havia bastante gente lá; afinal, era sexta à noite. As mesas estavam quase todas cheias. Crianças corriam de um lado para o outro. Eu tropecei em uma delas. Okay, duas.

Mais uma vez, Lea me puxou.

— Acho que seu pai deve ter usado muitas coleiras durante a sua educação. Vem. Achei uma mesa.

Seguimos desviando de alguns garçons e de outras pessoas até chegar ao lugar indicado por Lea. Só haviam duas cadeiras lá. Sentei de frente para ela. De perto, notei que Lea era muito mais bonita. Seus olhos eram de um castanho quase azulado. Peguei-me imaginando se poderia me perder naquela imensidão, mas ela estava muito séria.

— Direto ao ponto — Disse ela depois de olhar para os lados novamente. — O Sungro. Na noite em que ele morreu. Você estava com ele.

Pego de surpresa, neguei balançando a cabeça veementemente.

— Não. Não mesmo.

— As pessoas da escola estavam comentando. Disseram que os tiras foram atrás de você. Te interrogaram. Eles eram do governo?

Lembrei do que Taka havia dito antes. Sobre os homens serem realmente de lá.

— Acho que eles só queriam saber. Disseram que me viram em um vídeo junto com ele. Nós dois brigávamos muito. Sabe, desde o fundamental. — Respondi, me recostando na cadeira. 

Lea assentiu.

— E foram te interrogar. Certo. Já parou para pensar que poderiam não ser policiais? Quero dizer, existem comentários sobre o Sungro ser envolvido com gente da Revolução.

Mais uma vez, a imagem de Taka veio à minha mente. Neguei novamente com a cabeça. Decidi naquele momento ver o que eu descobria.

— Hum. — Ela começou — E onde você estava quando...

Lea silenciou repentinamente. Demorei um pouco a perceber que tinha alguém atrás de mim. Ao me virar, avistei um dos homens de terno. De óculos escuros, ele estava sério. Encarando nós dois. Lea limpou a garganta.

— Pois não? — Ela perguntou empinando o nariz levemente afilado.

O homem pôs as mãos nas costas da minha cadeira.

— Bem — Disse ele — Tenho alguém que deseja vê-los. Um amigo. Só uma conversa, sabe?

Olhei assustado para Lea. Tudo bem que eu era o homem ali, mas esperava que fosse ela a dizer o não. Pois se fosse eu, iria gaguejar completamente pelo nervosismo. Já podia sentir minhas mãos suando.

Mas Lea assentiu. Ela levantou-se devagar e dirigiu ao homem um sorriso quando ficou de pé.

Meus olhos quase pularam do meu rosto. O homem atrás de mim pôs a mão em minhas costas para que eu me levantasse. Confuso, obedeci. Deixamos o indivíduo ir à nossa frente. A todo o momento eu olhava para Lea, esperando que ela me revelasse o que estava acontecendo. Afinal de contas, há alguns instantes, nós dois tínhamos saído do térreo justamente para evitar aqueles caras. Lea, porém, mantinha sempre o olhar fixo para a frente, fitando o terno do homem.

E então, assim que passamos próximos a uma loja de roupas, Lea me puxou. Tropecei até que conseguisse me equilibrar para seguir a garota que se jogava entre as pessoas presentes na loja. Todos confusos sem saber o que se passava, pois agora um homem vestido de terno também entrara no estabelecimento correndo atrás de nós.

Por algum motivo, Lea jogava roupas enquanto corria, me dando o trabalho de desviar delas. Segui-a pela loja até entrarmos em outra. Mesmo que a escada rolante levasse as pessoas para baixo sem esforço algum, nós descemos correndo e, eu, tropeçando.

Percebi que Lea havia pegado um boné preto da loja de roupas e agora o colocara sobre a cabeça. Demorei até entender que era para esconder-se da IRIS. Então, cobri minha cabeça com o capuz do casaco branco que eu usava.

No meio da correria, tive a impressão de ter visto Taka sentado ao passar frente a uma livraria, mas Lea me puxou para que eu corresse mais rápido, antes que pudesse me certificar de que era o garoto.

Dentro do shopping já havia certa agitação, pois algumas pessoas já comentavam a perseguição que estava acontecendo. Por sorte, ou não, nós dois já tínhamos chegado ao estacionamento. Havia muitos carros lá, então seria obviamente mais fácil nos escondermos.

— Quem são esses caras? — Perguntei, quando as palavras tremidas saíram de minha boca. Nós estávamos agachados por detrás de um carro.

Lea não respondeu. Reparei que ela estava ofegante. Seu rosto estava vermelho. O olhar da menina tentava ver através dos vidros dos carros se o homem tinha conseguido nos seguir.

Um clique.

Eu senti um frio subir na espinha ao ouvir passos no estacionamento. Levantamos um pouco nossa vista e percebemos que o sujeito estava armado. Meu medo fez com que eu perdesse o equilíbrio e quase caí no chão.

Mais alguns passos. Outro individuo entrou no local. Ele estava vestido da mesma forma e, ao avistar o homem, sacou uma arma também.

— Certo. Crianças. — Disse um deles — Acho que perceberam que isso não é uma brincadeira. Mas nós prometemos que ninguém vai se machucar se colaborarem.

Tentando evitar mais problemas e sem noção nenhuma do que estava acontecendo, eu me levantei com as mãos para cima. Lea olhou para mim boquiaberta. Ela se levantou também, mas não estava com as mãos para cima. Toda corajosa, bem mais que eu.

Um dos homens olhou para nós, sorridente.

— Reen Kosh e Lea Vinsyl. Filha do Ex-Senador. — Disse ele com satisfação. — Vocês me fizeram correr um pouquinho. Vamos. Tenho que levar vocês para meu amigo.

— O pai dessa pirralha já me ferrou uma vez.

Mais passos.

Outros homens adentraram o local. Eles também vestiam o mesmo tipo de terno e óculos escuros. Não tinha como saber, mas acho que eram quase uns vinte. Senti meu coração acelerar quando eles começaram a nos cercar. Lea permanecia impassível e em nenhum momento aparentou estar com medo. Diferente de mim. Os homens se aproximavam mais e nós dois tentamos ficar o mais perto um do outro possível. Lea estava na minha frente e acredito que ela podia ouvir meu coração pulsando devido a sua cabeça próxima ao meu peito. Eu estava arfando bastante. Era a pressão. Minhas pernas, pra variar, estavam fraquejando. Meu instinto me mandava ir para frente dela.

— Sabia que eram vocês, porcos da IRIS! — Lea gritou para os homens.

Um deles chegou bem perto e puxou Lea pelo braço.

O que aconteceu em seguida foi muito rápido. Em um simples ato de reação, joguei meu braço para impedi-lo. Labaredas de fogo saíram de minhas mãos, jogando o homem em um dos carros. Lea caiu do outro lado. O alarme começou a soar. Os outros indivíduos engatilharam suas armas.

Todas elas estavam apontadas para mim e eu realmente não sabia o que fazer. Lea estava caída, atordoada pela pancada que levara ao cair. Levantei as mãos novamente em sinal de rendição. Percebi que elas fumegavam e isso fez com que alguns dos homens se afastassem um pouco, mas mantinham as armas apontadas para mim.

— Não se mexa — Gritou um deles, sua voz atravessando o barulho do alarme. – Seu monstro. Fique onde está, aberração.

Olhei para minhas mãos novamente. Eu juro solenemente que isso nunca havia acontecido antes. Elas estavam avermelhadas e com vapor saindo delas. Seja o que for que eu tivesse feito, não sabia explicar como. Aquela era, definitivamente, a situação mais desesperadora que eu já vivenciara. Ao meu redor, os homens pareciam confusos e as armas pareciam tremer nas mãos de alguns deles. Acho que a situação também era inesperada para eles.

— Ninguém falou em uma coisa assim. Esses revolucionários não param de fazer monstruosidades — Gritou um indivíduo. Eles tinham parado de avançar. Estavam apenas parados, estáticos.

Um som de chiado começou a crescer vindo do teto. Todos nós olhamos para cima. Parecia o som de alguma coisa movida a eletricidade, sobrecarregando. Então, as lâmpadas explodiram, deixando a escuridão encobrir tudo. Alguns tiros foram disparados em direção ao teto. Cobri minha cabeça com as mãos e dei um berro.

Em alguns momentos, flashes de luz se ascendiam muito rapidamente, mostrando os homens suspensos no ar e depois devolvia o estacionamento à escuridão. Tudo o que eu escutava era o som de tiros e gritos dos homens junto ao barulho de coisas sendo arremessadas de vez em quando. Eu permaneci abaixado com os olhos arregalados, tentando adaptar a vista à escuridão.

Um estalo pequeno se seguiu e, depois, um silêncio aterrorizante. Ao longe, as luzes mais distantes, que pertenciam à parte da saída do estacionamento, acenderam-se. Como um fantasma, Taka apareceu na minha frente me olhando de cima de um dos carros.

— Não é o que eu chamaria de passeio agradável no shopping, mas deu pra pelo menos fazer algum exercício, não acha, Reen? — Falou ele, debochando.

Meu peito subia e descia, ainda ofegante. Olhei rapidamente de Taka para Lea e vi que ela ainda estava caída, sem reação.

— Não encoste nela! — Gritou Taka, pulando de cima do carro, o que fez com eu me afastasse de Lea, assustado. — Olha as tuas mãos. Vai queimar a garota.

A luz avermelhada e incandescente ainda vinha da minha mão. Taka foi até Lea e a pegou pelo braço, levantando-a e apoiando-a em seus ombros. Em seguida, olhou para mim que ainda estava sentado no chão.

— Tente não encostar em nada. Vamos sair daqui, boy.

Ignorei ser chamado de boy e me levantei, acompanhando-o enquanto ele levava Lea. Olhei de relance para trás e vi alguns dos homens caídos. Seus corpos fumegavam, longe, no estacionamento.

A saída do shopping dava para uma estrada, onde tinha um ponto de ônibus, Taka estalou os dedos. Uma câmera que estava próxima a nós explodiu espontaneamente. Olhei para ele, nervoso.

— A IRIS está cega aqui. — Falou Taka, enquanto colocava Lea sentada no meio-fio.

— Ei! Tá se sentindo melhor? Foi uma pancada forte, né? — Disse Taka à ela que continuava desorientada, depois, voltou-se para mim. — E você, tá mais calmo?

Eu apenas acenei positivamente com a cabeça, mesmo que aparentasse que não.

Taka deu um tapa na minha cabeça. Lembrei, enfim, de que eu não sabia o que diabos estava acontecendo. Dei dois passos para trás, quase tropeçando em meus próprios pés.

— Quem dos dois teve a brilhante ideia de um encontro em lugar público? — Ele berrou — Eu te avisei que os caras estavam te vigiando. Quase te pegaram. Não sei se posso te manter seguro aqui. Vamos ter que te levar.

— Que droga foi aquela? Me levar? Tá doido? — Berrei de volta para ele — Quem são aqueles caras? Com certeza não são do shopping. Se ainda é sobre a morte do Sungro, eu já falei que não sei de nada. Eu não consigo lembrar — Minha voz de quem quer chorar começou a se mostrar — Mas você, eu tenho certeza que te vi lá. A polícia devia ir atrás de você. Que merda é essa com as minhas mãos? Que merda é essa de Revolução?

Taka ficou sério. Ele apenas olhou para mim e apontou para minhas mãos. Olhei para elas e a coloração avermelhada tinha voltado. Eu sentia um calor emanando delas, mas não sentia queimar.

— Apenas se acalme. Isso aí passa. — Falou Taka, pausadamente. — E eu já disse que não é a polícia que está atrás de você. O nosso problema está um pouco acima disso.

Taka tirou a colete de couro que estava vestindo e cobriu Lea, ficando apenas com uma camiseta branca. Ele passou o olhar sobre mim. Olhei para trás e vi que um ônibus se aproximava.

— Você vai para casa agora — Falou ele, enquanto dava sinal para que o coletivo parasse — Eu vou levar ela de volta.

— Não — Eu insisti. Se em algum universo maluco eu tinha algo a ver com aquilo, eu era responsável por ela — Não te conheço e não vou deixar ela sozinha com você.

O ônibus parou perto de nós. Taka deu uma risadinha.

— Bem, eu sou apenas um nobre desconhecido que salvou vocês dois. E, de toda forma, a menina é muito mais valente que você. Agora vai e... — Taka fez um gesto, assoprando as próprias mãos. — Relaxa.

Os argumentos de Taka eram, no mínimo, convincentes. Ele também não estava errado sobre ela ser mais valente. O motorista do ônibus tocou a buzina e eu entrei.

Quanto ao último conselho de Taka, eu não tinha como segui-lo. Seria quase impossível relaxar depois de tudo o que estava acontecendo. Era difícil me situar em meio a tantas coisas que eu não conseguia entender. Normalmente, era Dex quem me situava de volta no que estava acontecendo, mas nem mesmo ele saberia dizer alguma coisa. E foi naquele momento que eu decidi não envolvê-lo naquilo tudo. Eu mesmo resolvi que não me envolveria mais. Jurei a mim mesmo não chegar mais perto de Taka ou Lea.

Encolhi-me no banco do ônibus quase vazio. Olhei a palma das mãos que, aos poucos, perdiam a vermelhidão e retornavam a coloração original. Tentei não olhar para a câmera da IRIS, instalada no teto da condução.

[...]

Doom, Doom, Rowl.

A música do The Black White Fears tocou em meu telefone, revelando que eu estava recebendo uma ligação. Não estava nem um pouco a fim de me levantar. De todo modo, independente de quem fosse, seria um alívio para aquele sábado tedioso. Para evitar ser visto pelas câmeras e por quaisquer outros malucos, decidi ficar um tempo dentro de casa.

Estiquei-me para pegar o celular na cabeceira do lado da cama. Dex.

— Oi Dex. — Falei, encostando o aparelho no rosto.

— Conta tudo. — Falou a vozinha do outro lado.

— Ah. Bom dia pra você também. Contar tudo o quê?

Dex deu uma risadinha.

— Você sabe do que eu estou falando. Do encontro. Vocês ficaram? Sabe, eu shipo muito vocês dois.

Estiquei todo meu corpo na cama e fiquei olhando para o teto. Em minha cabeça, voltaram todas as coisas estranhas e sem sentido que aconteceram na noite passada. Mas tinha prometido a mim mesmo deixar Dex fora disso.

— Não rolou nada, Dex. — Respondi — Ela só queria saber do Sungro e tal.

— Até parece — Dex parecia indignado — Você é muito mole mesmo. Acho que ela queria alguma coisa.

Revirei os olhos, mesmo que Dex não pudesse vê-los.

— Consegue o contato da Lea no ImaFan? — Eu pedi —Sei que você tem suas fontes.

— Hum. — Dex deu uma risadinha. — Sabia que estava interessado nela. Vai tentar outra vez?

— Qual é. Só quero ter ela adicionada.

Instante de silêncio.

— Impossível. — Falou Dex. — Eu já me adiantei. Ela não tem perfil em nenhuma rede social.

— Mesmo? — Parecia que minha curiosidade sobre quem Lea realmente era não seria saciada pela internet. — Valeu então, Dex.

— Vem pra minha casa. — Dex convidou — A gente pode conversar sobre sua falta de sorte no amor enquanto você perde pra mim no Devils online.

— Acho que vou deixar pra próxima, Dex. Não tô muito disposto hoje. Acho que estou doente. Febre.

Um pouco de silêncio.

— Então tá — Dex concordou — Quando curar seu coração partido, me liga.

— Tá. Te vejo segunda. — Dei uma risada de deboche e desliguei o telefone. Feito isso, me sentei na cama.

Tudo bem, era hora de começar do dia. O relógio marcava dez horas da manhã. Mas eu já estava acordado desde as oito. Eu tinha passado duas horas olhando para minhas próprias mãos. Nenhuma queimadura. Além disso, tentei recapitular todas as coisas que estavam acontecendo ultimamente. A morte de Sungro. De algum modo, eu sabia que estava lá quando aconteceu. Lembrava também que tinha alguma coisa a ver com drogas e que Taka estivera lá. Mas não sabia dizer como essas coisas tinham ligação.

Passei pelo corredor e fui até a cozinha. Meu pai não estava lá, o que era uma novidade. Ele não costumava sair. No máximo, ia caminhar um pouco pela vizinhança, mas isso era cedo. Sentei-me à mesa. O café não estava preparado. Mais uma novidade.

Sobre o balcão, ao lado da pia, havia um caderno. Nas folhas, uma série de coisas escritas que não faziam sentido. Alguns números desconexos e algumas coisas rabiscadas cheias de garranchos cobrindo outras coisas. Entre os rabiscos, consegui distinguir dois nomes: Grower e Ruben. Nunca tinha ouvido falar.

Deixei o caderno exatamente onde estava. Meu pai detestava que mexessem em suas coisas. Cheguei a imaginar que fosse o cara que ele tinha dito antes, em cuja casa iríamos ficar. Com certeza não era um amigo próximo, pois ele não tinha nenhum. No máximo falava de longe com algum vizinho. Tentei pensar em algo que nos mantivesse ali em Nova Eufrades mesmo; afinal ir para Nova Ascensão estava fora de cogitação. Quem deu esse nome a uma cidade?

Depois de preparar leite com chocolate, que para falar a verdade tinha ficado doce demais, decidi me dedicar ao FLYERSTEP. Meu pai havia preparado um lugar no quintal para que eu treinasse. Antes de chegar até lá, ouvi meu celular tocando novamente.

Sobre a cama, ele exibia uma notificação em sua tela. Era uma mensagem na rede social ImaFan. O usuário chama-se @FilhoDeZeus, seja lá o que fosse um “Zeus”. Rapidamente, abri a série de mensagens, que dizia:

Yo!

Sou eu, Boy. O cara “enérgico”.

Da escola. E do shopping.

Caso queira saber, a garota que tu quer pegar tá bem. Levei ela para casa.

Os pais dela pensaram que ela tinha saído comigo.

Sou um ótimo partido.

É Isso.

Vlws.

Caso ainda não tenha entendido quem é (Sei que você é lesadinho).

Sou eu, o Taka.

Mensagens deletadas com sucesso. Mas de certa forma, era confortante saber que Lea estava bem. De todo o jeito, eu não me envolveria mais nisso. Voltei para meu caminho rumo ao quintal.

Treinar os movimentos do jogo não me parecia bom aquele dia. Nem mesmo a música atordoante que enchia o quintal estava me animando. Ainda assim, era a primeira vez, desde a vitória no interclasse, tirando correr desesperado pelo shopping, que eu fazia um exercício físico.

Portas bateram dentro da casa, me fazendo entrar apresado pelo corredor, quase esbarrando em meu pai que acabara de entrar. Por um momento, o nervosismo me fez pensar que eu colocaria fogo em meu próprio pai. Mas aquela coisa estranha só tinha acontecido uma vez. E não aconteceu dessa vez também. Ao invés disso, tropecei para trás batendo a cabeça na parede.

— Tá ficando maluco, Reen Kosh? — Ele perguntou — Quer me derrubar?

Uma risada, misto de nervosismo e alívio, foi tudo o que consegui expressar.

O senhor Erik me olhou de cima abaixo. Eu estava todo suado.

— O que você estava fazendo?

— Só jogando um pouco. FLYERSTEP.

Ele fez uma careta.

— Droga. Você não acha que se esqueceu de alguma coisa, Reen?

— O senhor me conhece, pai. Eu nunca sei se esqueci.

Meu pai deu um passo para trás.

— Dentes, Reen. Vá escovar seus dentes.

Quem nunca?

[...]

Assim que voltei do banheiro, peguei meu celular novamente. Olhei algumas mensagens no ImaFan. Eram de Dex, gabando-se por bater recordes no jogo “superinteressante” que a gente jogava. Estirei-me na cama novamente. Coloquei os fones de ouvido, ansioso para que as batidas frenéticas tirassem Taka, Lea, ou quem mais fosse, da minha cabeça.

Não consegui. De alguma forma, eu sentia que já tinha visto Taka antes. Remoer os últimos acontecimentos me fazia ficar perdido de um modo que nem mesmo eu estava acostumado. O rosto de Lea vinha à minha mente insistentemente. Eu não parava de pensar sobre o jeito que ela enfrentara os homens. Eles pareciam conhecer seus pais. Quem realmente era ela?

O celular vibrou, noticiando outra mensagem. Taka.

@FilhoDeZeus:

Yo.

Sou eu de novo.

Vamos sair.

Pera.

Não é um encontro. Acho que você deve saber de algumas coisinhas.

Isso é. Se quiser. Os caras consertaram a falha nas câmeras do posto. Mas na rua dezessete tem um beco.

Tá limpo.

Me encontra lá às quatro da tarde.

Coloquei o celular na cabeceira da cama. Eu, definitivamente, não ia. A promessa de não me envolver nisso, seja lá o que fosse, ainda estava de pé. Levantei-me e fui até a sala. Meu pai estava lá, sentado em sua poltrona, lendo um livro. Sentei ao seu lado no sofá e liguei a TV.

— Vai atrapalhar minha leitura. — Falou ele, sem tirar os olhos do livro. Seu rosto parecia cansado e preocupado, como se não tivesse dormido.

— Onde o senhor estava?

Ele fechou o livro fazendo esforço para se levantar.

— Por aí. Fui ver algumas possibilidades de viagem. Encontrar alguns amigos.

— Sério? Não sabia que o senhor tinha amigos.

Meu pai seguiu para o corredor.

— Claro, acha que só adolescentes irresponsáveis têm amigos?

Levantei-me para segui-lo.

— Ah, vamos, pai. Não vai esquecer aquilo? Só foi uma festa.

— Então foi uma festa. — ele virou-se para trás. — Obrigado por contar. Está dois dias atrasado. Uma festinha irresponsável flagrada pelas câmeras da IRIS acaba com currículo de um jovem. Essas coisas sabem tudo sobre você. Eles não estão ai só para ver os criminosos. Eles veem tudo.

— Para, pai. — Disse, ficando de frente para ele, olhando-o de baixo. — O senhor não acha que está fazendo uma tempestade em um copo d’água? 

Ele apenas suspirou e entrou em seu quarto. Eu entrei no meu e fiz questão de bater a porta. Por um instante, pensei ter visto labaredas de fogo pelo lugar. Assustado, suspirei, tentando me acalmar.

Por algum motivo, o conselho de Taka realmente dava certo. Minha temperatura continuava a mesma. Eu não queria voltar para a cama e não estava nem um pouco a fim de dançar, quero dizer, jogar FLYERSTEP.

Então decidi por aceitar o convite de Dex para ir até a sua casa, por mais imprudente que isso fosse. Vestindo uma calça jeans e uma camiseta verde, fechei a porta do meu quarto e passei em frente ao de meu pai para avisá-lo, mas desisti na mesma hora.

No meio do caminho, preenchi a cabeça de “pensamentos positivos” que me impediriam de achar perigoso o fato de estar indo até a casa do Dex. Também ajudaria com a possibilidade de pegar fogo em público. No meio dos pensamentos, a ideia de ver o pequeno e jovem Dex envolvido naquela situação perturbadora pela qual eu estava passando pressionava bastante. Muitas coisas estavam mudando e de forma totalmente misteriosa agora e, como sempre, eu lutava para me reencontrar naquele mundo novo. Mas eu sabia que tinha de abrir mão de meu amigo, aquele que sempre estava lá para por as coisas em minha cabeça no lugar. Entretanto, não dessa vez. Pela segurança de Dex, decidi evitá-lo. Tirá-lo de perto de mim, por um tempo.

O ônibus chegou e eu subi nele, porém agora tinha um novo destino. Encontrar Taka.


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Notas finais do capítulo

Até a próximo. Pode ser o último capítulo do arco, quem sabe.



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