Delta escrita por Rodrigo Silveira


Capítulo 3
Amnésia


Notas iniciais do capítulo

Ame o Taka.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/676896/chapter/3

Respirar estava difícil. Acordei engasgando. Minhas costas estavam estiradas. Sentei-me tossindo. Eu estava no chão de um gramado. Olhei ao redor e reconheci a vizinhança em que moro. Atrás de mim estava a casa do senhor Richard, um homem que ajuda quando a perna do meu pai enguiça. Juro que isso acontece frequentemente. Fiz um esforço para me por de pé. Nesse momento, senti uma dor fortíssima no abdômen, como agulhas que penetravam cada vez mais fundo. Caí novamente ao chão com as mãos apoiadas na grama.

A dor me fez engasgar e cuspir. Por pouco não vomitei. Mesmo com a vista embaçada, observei que não havia ninguém por perto. Tentei lembrar o que tinha acontecido, mas foi em vão. Quando a dor no abdômen amenizou, senti uma pontada aguda na cabeça. Passei a mão em meus cabelos procurando por sangue. Nada.

Depois de ficar de pé, apoiado na caixa de correios do vizinho, andei alguns passos para ver se conseguia. Consegui.

Mais à frenteapenas minha casa estava com as luzes acesas. Senti o que todo adolescente sente quando sabe que fez besteira.

Meu pai reinava, sentado em sua poltrona na sala. Sua perna metálica, cruzada sobre a outra. Ele me olhava sério. Conhecia esse olhar. Nunca era boa coisa.

— Reen Kosh. — Ele começou. Sua voz estava baixa, talvez para não acordar nenhum vizinho. — Onde você estava?

A tentativa de caminhar até ele de modo confiante falhou. Meus olhos tremiam e minhas pernas bambeavam. Apoiei-me ao seu lado no sofá. Meu pai olhou para mim de cima a baixo. Mesmo nunca tendo bebido antes, eu estava perfeitamente trajado como um bêbado. Meus cabelos estavam cheios de grama e minha roupa, toda suja e fedida.

— Você... Bebeu? — Ele perguntou. — Onde foram parar os seus sapatos?

Boa pergunta. Não sei responder até hoje.

Meu pai apontou para a janela. Lá fora, uma câmera da IRIS, virada para a rua.

— Se alguma daquelas merdas te pegou, seja lá o que você estava fazendo, tudo o que você tem planejado pra vida já era. Pode esquecer faculdade, ser jogador de FLYERSTEP, e tudo mais.

— Eu não estava fazendo nada. — Comecei minha defesa do indefensível, mesmo sabendo que não podia sustentar meus argumentosEu sequer podia me sustentar no sofá.

— Então onde estava? — Papai aumentou o tom de voz — Dormindo? Com certeza não. Eu chequei. Três vezes. Pensei que tivesse se perdido, liguei pro Dex. Você não estava em lugar nenhum. Nenhum que eu conheça. Onde você estava, Reen? Não me faça ir à polícia checar onde as câmeras te flagraram.

Minha voz começou a sair toda tremida. Sentia que ia começar a chorar a qualquer instante. Aí eu vomitei. Meu pai passou as mãos em seus cabelos que começavam a ficar grisalhos.

— Banho. Depois, cama. Agora.

Não tenho lembrança se ele me ajudou a ir pro quarto ou a tomar banho. Simplesmente apaguei.

Na manhã seguinte, acordei antes do despertador tocar. Aproveitei pra ajustá-lo. Havia um gosto estranho na minha boca. Fui ao banheiro, tomar banho, escovar os dentes...

Algumas coisas da noite passada vieram à minha mente. Lembrei-me de estar com Sungro e de ter visto o garoto misterioso da escola. Olhei-me no espelho enquanto escovava os dentes. Tinha algo de errado comigo, mas não sabia o quê. Fiz uma careta para mim mesmo e cuspi a pasta.

Quando tirei minhas roupas no box para tomar banho, descobri o que tinha de errado. Não. Não era puberdade. Do lado esquerdo do meu abdômen, um pouco acima do umbigo, havia uma marca, como uma cicatriz. Um triângulo desenhado em minha pele. Receoso, toquei devagar na barriga. Nenhuma dor.

“Meu Deus” eu pensei. “Fizeram uma tatuagem em mim!”. “O Sungro vacilou feio comigo”. ”Meu pai vai me chutar com a perna de ferro dele”.

Terminei o banho rapidamente e vesti o uniforme azul da escola sobre uma camiseta preta. Desci as escadas pensando em qual seria a melhor maneira de esconder a tatuagem do meu pai, já que contar para ele estava fora de cogitação.

— Bom dia! — Disse, com o sorriso mais nervoso das treze cidades.

Ele estava sentado à mesa tomando café. Apenas olhou e acenou para mim positivamente. Caminhei até a geladeira e peguei uma maçã. Sobre a mesa havia uma jarra de suco. Coloquei um pouco em um copo e me sentei. Meu pai apenas observou em silêncio.

— Nem te falei — Comecei sem graça — Ganhei o campeonato de...

— Nem um pio. — Ele advertiu. — Depois da escola, nós vamos conversar. Não quero que você se atrase e perca mais aulas. Fiquei sabendo do seu baixo rendimento, mas isso nem se compara com a palhaçada da noite passada.

Ia abrir a boca para me defender, mas o olhar dele me calou. Saí sem dizer nada. Era melhor assim.

Durante a caminhada até o ponto de ônibus, forcei minha cabeça pra ver se me lembrava algo da noite passada, mas não consegui. Eu sabia que envolvia tatuagens e a influência de Sungro. E ele ia pagar, não importava o quão grande o cara fosse.

E foi assim que o ônibus passou por mim.

Quando cheguei à escola, parecia que um clima pesado tinha se instalado. Por algum motivo, as pessoas estavam todas amedrontadas. Todos isolados em seus grupinhos próprios e alguns professores discutindo, sérios, entre si. Sali, a diretora da escola, estava lá quando eu passei. Ela me olhou por um instante com o olhar vazio e desviou em seguida.

Por algum motivo, eu me sentia culpado por algo. Parecia que a qualquer momento alguém ia apontar o dedo na minha cara. O fato de não saber absolutamente nada do que eu tinha feito na noite passada me deixava mais nervoso.

— Tá sabendo? — Dex apareceu como um fantasma ao meu lado, fazendo-me pular quase dez metros. — Do Sungro?

Meu coração apertou ao ouvir o nome.

— Não — Respondi, balançando a cabeça enquanto pegava os livros em meu armário. — O que ele fez dessa vez?

— Se envolveu com gente errada. Confrontou uns tiras noite passada. — Olhei sério para Dex. — Ele morreu. Estão falando que estava envolvido com a Revolução.

Meu estômago embrulhou como na noite passada. Apoiei-me no armário e abri a boca esperando vomitar.

Alguns alunos de um grupinho olharam para nós quando Dex falou em “Revolução” mas em seguida voltaram a falar entre si.

Dex veio mais pra perto de mim tentando prestar alguma assistência.

— Como assim? — Perguntei, sem fôlego. Minha cabeça girava e a garganta estava seca. — O que aconteceu?

— Ninguém sabe. — Dex explicou — Foi ontem à noite. O posto explodiu. Ele estava com os caras lá e tal. As câmeras não funcionaram direito e não tinham testemunhas.

Minhas pernas fraquejavam insistentemente. Parecia que elas queriam me derrubar a qualquer momento. Dex afastou-se um pouco. A própria diretora caminhou até nós.

— Está se sentindo bem, rapaz? Vá até a enfermaria. Acompanhe-o, Dex.

Dex obedeceu à ordem e me acompanhou até o local. A enfermeira não estava lá. Tomei a liberdade de me deitar em uma maca e fiquei encarando o teto.

— A notícia pegou todo mundo de surpresa.

Dex estava visivelmente desesperado. Ele também parecia suar frio e estava ficando pálido. Eu senti que precisava acalmá-lo.

— Calma, Dex. — Falei — Eu vou sobreviver. Foi só tontura. Vou estar de volta para a segunda aula, como sempre.

Dex assentiu, nervoso.

— Taka. Não sei o sobrenome.

Olhei pra ele, confuso.

Dex continuou:

— O novato. Disseram que ele é do segundo ano. Não fala com ninguém. E não se sinta especial. Ele fica olhando estranho assim pra todo mundo parecendo que está procurando alguém.

A informação não era tão relevante naquela ocasião, mas já era um pouco de alívio. Ainda tinha um gosto estranho em minha boca. Queria conseguir me lembrar do que tinha feito na noite anterior. Estava com medo de ter tido envolvimento na morte de Sungro. Assim que isso passou pela minha cabeça, sacudi-a rapidamente e me levantei.

— Chega de descanso — Disse, saindo da sala — Vamos voltar às aulas.

Dex me seguiu.

— Certo. — ele informou — Sexta é dia de aula de história pra você, então está indo para o lado errado.

E aí eu mudei de direção.

[...]

Em geral, eu ficava especialmente mais perdido nas aulas de História. Falar de coisas que aconteceram há mil anos não ajudava alguém que não conseguia se situar no dia a dia. Não que Andrew fosse um mau professor ou fosse má vontade minha, mas eu simplesmente não me concentrava ao ouvi-lo falar de como a antiga população mundial destruiu suas casas e tiveram que erguer cidades no céu pra gente morar.

Reen.

A voz da diretora Sali me trouxe de volta. Quase pulei da carteira. Meus olhos piscavam assustados. Um dos colegas de classe tirou uma brincadeira, mas foi corrigido com um olhar severo da diretora.

— Por favor — Falou ela com uma voz séria. Seu rosto magro e de pele escura ergueu o nariz imponente. — Me acompanhe. Algumas pessoas precisam falar com você.

O silêncio se reestabeleceu na sala.

Meu estômago embrulhou novamente. Minhas mãos gelaram com o medo de que fosse alguém perguntando sobre a morte de Sungro. Eu poderia negar tudo, mas não tinha cem por cento de certeza de que não estava envolvido.

Levantei-me envergonhado e olhei para os lados. Havia me tornado o centro das atenções da sala. Então segui até a porta e a diretora colocou a mão em minhas costas, conduzindo-me até a diretoria.

A sala da direção nunca esteve tão amedrontadora antes. Ela fechou a porta depois que entrei e me deparei com dois homens lá dentro. Um estava sentado no lugar da diretora e o outro, de pé ao seu lado. Eram impressionantemente assustadores. Ambos vestiam um terno branco com distintivos com o símbolo de Nova Éden, um olho em meio a uma bandeira trêmula. Eles eram carecas e usavam óculos escuros. Definitivamente, não eram guardinhas de esquina. Sali ficou escorada na entrada da sala.

O homem que estava de pé fez sinal com a mão para que eu sentasse frente a eles. Obedeci.

— Reen Kosh Odon? — O homem sentado perguntou. Sua voz era grossa e áspera.

— Presente. — Falei, meio sem graça.

— Onde estava na noite de ontem? Antes que responda mentindo, sabemos que você não estava em casa. Erik Odon, seu pai, ligou para a casa de Mekan Lithman, mãe de seu colega, Dex Lithman, à sua procura. Algumas câmeras de monitoramento registraram seu encontro com Sungro Gonzalez ontem pela manhã na frente da escola. O rapaz morreu ontem à noite. Ele estava envolvido com gente perigosa, gente que mexe com drogas e armamentos pesados. Alguns informantes sugeriram que possam ser membros da Revolução infiltrados em Nova Eufrades. Muito bem, comece.

Sabe quando você fica sem ter o que dizer? Pois é. Fiquei assim. Eu não conseguia formular uma frase sequer. Todas as informações passadas eram verdadeiras. Meu pai havia falado sobre ligar para Dex. O encontro com Sungro também tinha acontecido. Quanto às armas e drogas, realmente não sabia. Isto é, minha mente me dava flashes sobre alguma coisa na noite anterior. Sungro realmente estava comigo, mas eu não sabia onde, nem por quê.

— Eu... — Comecei. Estava sem o que dizer e percebi que os homens notaram. — Eu e o Sungro brigamos. Quer dizer, ele e eu sempre discutíamos por causa de esportes. Ontem teve o jogo de FLYERSTEP e ele queria jogar basquete. Não o vi depois disso. — Sabia que era mentira, mas estava tentando me afastar o máximo que podia de qualquer que fossem os problemas.

— Reen — O homem de pé falou — A polícia não está medindo esforços para encontrar as pessoas envolvidas nisso. Por algum motivo, todas as câmeras do local estavam defeituosas. Mas a IRIS está trabalhando nisso. Iremos recuperar o máximo de imagens possível e localizar todas. Se estiver metido nisso, nós vamos te achar.

A ameaça velada fez com que o estômago embrulhasse mais. Perguntei-me quantas vezes por dia isso podia acontecer.

— Eu acho — Disse virando o rosto para a diretora, minha última defesa — Que a escola é um lugar para manter os alunos seguros.

O homem que estava sentado levantou-se bruscamente.

— Os alunos, mas não os criminosos.

Eu quase caí para trás. Meu Deus! Eu estava batendo de frente com um policial. Desde quando eu tinha enlouquecido? O motivo pelo qual o próprio Sungro implicava comigo era que eu era calmo demais. E ali estava eu, discutindo com dois tiras. Era melhor abaixar a bola.

— Desculpa se pareci desrespeitoso. — Eu disse — É que eu contei tudo o que sabia. Quer dizer, o que não sabia. Eu sinto pela morte dele, mas eu realmente não sei nada sobre isso.

Um grande “Eu acho” voou sobre minha cabeça naquele momento.

Um dos homens passou ao meu lado indo em direção à porta.

— Alguns outros alunos já foram investigados. Tenha mais cuidado. Não ande sozinho pela rua. Os olhos da IRIS estão em toda parte, mas não podemos garantir a segurança de todo mundo, todo o tempo.

Okay, isso sim parecia uma ameaça. O homem abriu a porta, seguido pelo outro, Sali os viu saírem e em seguida olhou para mim.

— É melhor ir para casa, Reen. Sei que seu dia hoje foi bem complicado — Ela pôs as mãos sobre meus ombros. — Muita coisa está acontecendo muito rápido. Você deve descansar. Siga o conselho dos policiais e tome cuidado.

Levantei, ia dizer que podia ficar para as outras aulas, mas realmente não acreditava nisso. Segui rumo aos corredores, observado pela diretora.

Antes de sair, porém, decidi passar no banheiro, quem sabe lavar o nervosismo estampado em meu rosto. Assim que entrei, fui diretamente até a pia e liguei a torneira, deixando a água gelada percorrer por minhas mãos e em seguida levei-as ao rosto, sentindo a baixa temperatura.

Assim que levantei o rosto, o garoto que me observara no dia anterior estava lá, refletido pelo espelho da pia. Taka. Esse era o nome que Dex tinha dito. O rapaz de pele escura me observava de braços cruzados, encostado na parede próxima à saída.

— Você tem feito muita besteira ultimamenteReen — Ele falou — Ou deveria dizer, Zero-três?

Eu gelei instantaneamente depois que Taka falou.

Virei e fechei rapidamente a torneira quando vi que tinha a deixado aberta no susto. Depois, voltei-me novamente para o cara.

— Hã? Você falou comigo?

Taka abriu um largo sorriso.

— Ah. Desculpa. Não está acostumado com os números. Você tá legal, boy?

Boy? Zero-três? Aquela seria a cereja perfeita para ser colocada no bolo de coisas estranhas que estavam me acontecendo naquele dia. Ajustei a mochila nas minhas costas e dei um passo em direção à saída.

— Só um pouco chateado com umas coisas — Eu falei.

— Entendi. Teu parceiro morreu né?

Então, ele também sabia. Mas afinal, quem era aquele garoto?

— Ele não era bem meu parceiro... Acho que teu nome é Taka né? Desculpa, sei que você tá tentando ser legal, mas não tô muito bem.

O sorriso de Taka aumentou ainda mais.

— Entendo — Disse ele — A noite de ontem, foi incrível, hein?

Meu rosto virou-se pra ele a cem quilômetros por hora. Taka percebeu que tinha me pegado de surpresa e sorriu ainda mais. Por algum motivo ele estava quase saltitante.

Um flash de memória sobre a noite passada veio a minha mente.

—Você — Eu disse.— Você estava lá!

— Sim. Ficou com amnésia? Não se lembra da coisa incrível que você fez? Foi tipo, você fez tudo ir para os ares.

Dei dois passos para trás. Taka sabia coisas sobre a noite passada.

Em busca de respostas, levantei o uniforme e a blusa preta exibindo a marca em forma de triangulo em meu abdômen. Taka fechou o sorriso. Ele arqueou as sobrancelhas como se estivesse interessado.

— Sabe alguma coisa sobre isso? — Perguntei nervoso — Viu como isso veio parar aqui?

— Cara — Taka começou — Tu tem uma barriga bonitinha e tal. Mas precisa pegar um sol. Tá muito branquelo, saca?

Aquela foi a gota d’água. Passei por ele esbarrando em seu ombro e fui saindo do banheiro.

— Cuidado com os caras que te interrogaram. — Dessa vez Taka não parecia estar brincando. — Acha que eles interrogaram outras pessoas? Só estão aqui por você. Se cuida.

O que aconteceu no banheiro me deixou tão nervoso quanto o interrogatório na diretoria. Depois de ter tropeçado e me recompor, caminhei apressado até a saída.

— Fica de olho neles — Taka gritou. — Porque eles já estão de olho em ti.

Enquanto abria meu armário desesperado, Dex apareceu na tentativa de me matar do coração.

— Tá maluco ex? Quer me matar?

— Não. — Ele falou afastando-se um pouco — Desculpa. Fomos liberados mais cedo. Tá indo pra casa? Quer que eu vá com você? Pro caso de se sentir mal.

Não que Dex fosse uma grande ajuda caso eu desmaiasse no meio da rua, mas aceitei a proposta do garotinho. Antes de sair da escola, ainda olhei para trás, porém, Taka não estava lá me observando.

Seguimos por algumas ruas até uma íngreme descida onde ficava o ponto de ônibus mais próximo. Eu só conseguia pensar no turbilhão de coisas que estavam acontecendo ao mesmo tempo. A morte de Sungro, a marca misteriosa em meu abdômen, os caras que me interrogaram mais cedo, e Taka, o “Boy” que dissera que eles estavam observando exclusivamente a mim. De repente, Dex me puxou pelo braço.

— Beleza. — Ele falou, sentando-se em um banco na rua — Já pode parar de andar. Chegamos à parada, percebeu?

Certo. Eu estava em frente ao ponto de ônibus, mais um dos enormes cartazes em 3D da empresa de monitoramento e segurança. O presidente Nelos mais uma vez estampava a propaganda com os dizeres: “Vigiamos pela segurança do Estado Celeste”. Nesse instante, olhei e vi uma câmera próxima a nós e os calafrios subiram pela minha nuca. Eu me senti “especialmente” vigiado.

E novamente Dex me puxou, fazendo-me entrar no ônibus que acabara de chegar. Nós subimos e sentamos um do lado do outro. Confesso que eu estava bastante apreensivo. Olhava para todos os lados, observando todas as pessoas sentadas próximas, enquanto Dex tagarelava sobre sei lá o quê. E quando chegamos próximo à minha casa, obviamente ele me puxou, me acordando dos devaneios.

Nunca estive tão ansioso para sair da rua e entrar em casa. Toquei a campainha umas três vezes ignorando a dificuldade do meu pai de andar. Ele abriu a porta alguns instantes depois disfarçando a cara feia que estava quando olhou para meu amigo.

— Dex — Meu pai falou antes que entrássemos. — Se não se importar, eu gostaria que aparecesse por aqui depois. Eu e o Reen precisamos conversar.

Dex deu dois passos para trás e voltou-se para mim.

— Nos vemos amanhã então, Reen.

Assenti e entrei em casa, calado. Estava tentando não esboçar nervosismo, mas não estava funcionando.

Papai me esperou entrar e em seguida fechou a porta, dirigindo-se até sua poltrona. Tentei ajudá-lo, mas ele recusou, apontando para o sofá para que eu me sentasse. Obediente, e tentando evitar qualquer circunstância que me rendesse uma surra, sentei e coloquei minha mochila no chão ao meu lado.

O sermão começou:

— Reen Kosh Odon — Isso não era um bom sinal, pois como é de conhecimento geral, nunca é legal ser chamado pelo nome completo pelos pais. — Sabe quem esteve aqui hoje?

— Não — Respondi, distante, tentando olhar o relógio que ficava lá na cozinha.

— A polícia — Eu quase virei do avesso quando ele disse isso. De repente, todas as sensações de nervosismo, mãos geladas, suor, embrulho no estômago, estavam de volta. Tipo, mil vezes mais fortes.  — Eles me contaram absolutamente tudo. Disseram que chegaram a suspeitar de você. Como você esconde essas coisas de mim, Reen? Você nunca fez coisas tão irresponsáveis. Aquele garoto, o tal de Sungro, ele morreu, sabia? E se tivesse sido com você?

Minha boca se abriu e se fechou umas vinte vezes. Eu parecia um idiota, mas meu pai já sabia disso. Muita gente sabia de coisas das quais eu sequer me lembrava. Aquilo era muito perturbador.

Meu pai não estava segurando o tom agora. Com certeza os vizinhos podiam ouvi-lo. Fiquei apenas de cabeça baixa, igual a um cachorrinho. Olhei algumas poucas vezes para meu pai, desviando o olhar em seguida enquanto ele bradava sobre responsabilidade e como aquilo podia afetar o meu futuro.

— Os caras disseram que as câmeras deram defeito. Dê graças a Deus por isso. Eles não podem fazer nada com a gente. — Ele levantou-se. — Mas eu posso. Vamos sair daqui. Vai precisar de outro lugar para recomeçar. Dizem que Nova Ascensão é uma ótima cidade. Você é esperto. É bom jogador. Vai conseguir. Vamos passar uns dias na casa de um amigo. Ele me deve uns favores. Depois arranjamos outro lugar.

Eu ia me levantar para protestar contra a ideia de ter que deixar minha vida para trás. Não gosto de falar disso, mas Janine, minha mãe, estava enterrada na cidade. Dex era o único amigo que eu tinha, mas isso não o fazia menos importante.

Nesse momento, o som da campainha soou na sala. Meu pai voltou-se assustado para a porta. Ele fez sinal com a mão para que eu não me aproximasse da porta. Então seguiu até ela e olhou para fora pelo olho mágico.

Coloquei minhas mãos tremidas nos bolsos novamente. Ele pôs a mão na maçaneta e depois parou, olhando para mim.

— É para você. — Ele disse e passou por mim indo para o corredor.

Levantei-me do sofá e caminhei até a porta me perguntando quem seria. Dex havia se esquecido de alguma coisa? Taka tinha me seguido para dar em cima de mim na frente do meu pai? Olhei pelo olho mágico.

Lea.

A garota estava parada na entrada. Isso seria a única coisa boa do meu dia? Achava que não. O que ela poderia querer comigo? Uma entrevista? Perguntar sobre a morte de Sungro? Ou mais alguma pergunta que eu deveria, mas não sabia a resposta? Lea já ia embora quando abri a porta.

— Oi. — Disse, um pouco sem graça.

Ela voltou-se para mim. Estava vestida exatamente como a tinha visto no dia anterior. O uniforme da escola perfeitamente engomado e os cabelos negros amarrados em um rabo de cavalo. O caderno estava apoiado em seu braço esquerdo. Ela me olhou com um semblante diferente. E instantes depois voltou ao normal: Imponente e o nariz levantado.

— Vai me deixar entrar? Vim ver como você está.

Ótimo, já tinha pagado mico. Todo envergonhado, eu a deixei passar. Ela parou na sala olhando ao seu redor. Minha casa não era uma mansão, do lado esquerdo da sala, havia a cozinha separada apenas por um balcão.

— Então? — Ela perguntou, me olhando de cima a baixo, como eu tinha feito com ela. — Você está bem?

Passei a mão nos cabelos como eu fazia toda vez que eu queria parecer um idiota.

— Eu... Vou sobreviver. Eu acho.

— As pessoas estavam falando de você. Que passou mal. Era muito chegado ao cara que morreu? Vi vocês discutindo uma vez.

— Não é como se fossemos inimigos. Éramos tipo, rivais. Eu acho.

Dei uma leve arfada. Eu realmente não queria falar sobre isso com ninguém. Mesmo com uma garota linda como Lea, ainda que disfarçada com uma máscara de secretária.

— Sabe. Acho que ainda não tô bem. Se importa de...

— Claro. — Ela disse olhando pra mim. Parecia sem muita emoção — Nós marcamos.

— Tá. — Disse, observando-a passar por mim em seguida e fechando a porta para a única garota gata que tinha vindo à minha casa em toda minha curta vida.

Instantes depois que Lea saiu, o lesado aqui percebeu que não sabia seu número e não a tinha em nenhuma rede social. Assim, teria de esperar para vê-la na escola.

Fui então para o meu quarto. Antes de chegar lá, passei pelo quarto de meu pai. As luzes estavam acesas, mas a porta estava fechada e com certeza eu não queria chamá-lo. Portanto fiz questão de ser o mais silencioso possível ao entrar no dele.

Pulei na cama e deitei de bruços, rezando para que eu adormecesse o mais rápido possível e o dia terminasse. Esperando que quando despertasse, tudo não passasse de um pesadelo. Mas não consegui. Aquele dia estava perceptivelmente mais quente. Talvez fossem as duas blusas. Tirei uma e decidi então pôr os fones e passar a ouvir música.

E ali estava eu. Na mesma posição em que estivera quando tudo começou. Mas dessa vez, estava decidido, não importava o que acontecesse, a não me levantar da cama. Eu não iria a lugar nenhum.

A música parou repentinamente. Alguém estava ligando. Sentei rapidamente e tirei o celular do bolso. Dex. Atendi, me deitando novamente.

— Oi Dex.

Você tá bem? Seu pai te chutou com a perna de ferro dele?

Rir um pouco não me fez mal.

— Não. Mas ele tá uma fera. Chegou a falar em sair da cidade. Não sei.

Silêncio. Dex voltou a falar, dessa vez com uma voz suplicante.

Não pode ir embora, Reen. Por favor.

— Eu sei. Acho que consigo convencê-lo. Vamos ver o que rola. Mas, tipo, não foram só coisas ruins que rolaram hoje.

Conta.

— Lea Vinsyl veio aqui.

Mais silêncio. Dessa vez, voltou todo animado.

Conta, Reen! Vai! Ela te beijou? Vocês ficaram?

Virei-me na cama, incomodado com o calor.

— Não, mané. Ela só veio ver se eu tava bem.

Até parece.

— Pois é. Também estranhei.

Acho que vocês dão certo juntos. Tem o perfil dela no ImaFan?  Devia adicionar.

— Não. Mas o que ela ia querer com um cara como eu, Dex...?

Não tenho certeza em que parte da conversa, mas em algum momento, eu adormeci.

[...]

Chamas, fogo, correria.

Eu escutava gritos por toda parte. Minha visão estava coberta por uma imensa nuvem de fumaça. Tentei avançar procurando um caminho para sair de onde quer que eu estivesse, mas minhas pernas não moviam.

Os gritos continuavam. Pareciam de gente desesperada.

Mais fumaça. Tentei gritar, mas minha garganta não obedecia. Estava seca. As lagrimas involuntárias molharam meu rosto até que sentisse um gosto salgado na boca. Então minha cabeça movimentou-se involuntariamente até que eu avistasse minhas mãos.

Mas não eram elas. Eram pequenas e delicadas. Estavam sujas de preto. Meu corpo parecia pequeno e as pernas fraquejavam. Caí sendo tomado por um choro intenso.

Aqui! — Gritou uma voz ao longe. Eu podia reconhecê-la em qualquer lugar. Era meu pai.
Ele estava ali. Mas eu não conseguia chamá-lo.

Foi aí que eu despertei.

Estava inteiramente suado ainda vestido com a camiseta preta do dia anterior grudada ao meu corpo devido ao suor. Toquei a cocha da cama e sentindo um vapor quente subir.

Fiquei de pé e encarei o espelho. Estava me sentindo como o campeão universal de FLYERSTEP. Meu cabelo, todo desgrenhado, bagunçado do sono. Sorri para mim mesmo feito bobo e me surpreendi com todo aquele bom humor.

Segui pra tomar uma ducha. Infelizmente, para acabar com a minha alegria, adivinha o que eu encontrei assim que tirei a roupa? Aquela coisa ainda estava ali. Não podia ser uma tatuagem, pensei.

— Bom dia — falei ao meu pai na cozinha.

O café ainda nem estava na mesa. Olhei paro o relógio acima da estante. Seis e meia.

— Pois é. — Ele respondeu — E essa sua boa disposição?

Comecei a esboçar um sorriso, mas o rosto dele dava a entender que ele ainda não tinha superado aquilo tudo.

— Aproveite e não perca nenhuma aula. Vai ser bom se despedir dos alunos e professores.

Quase desabei sobre a mesa.

— Ah pai. Ainda tá nessa de ir embora? A IRIS serve pra vigiar e impedir criminosos e não adolescente imprudentes e impedi-los de entrar na faculdade.

— Que bom que sabe que é imprudente — Disse ele tomando um gole do café. — E descuidado. E desatento. E irresponsável...

— Você está resumindo a vida de um adolescente senhor Odon — Falei levantando. — Bom, acho que posso morar no parque e trabalhar limpando algum supermercado. Boa sorte na cidade nova pai.

Segui até a porta com aquela sensação de estar sendo observado a todo o momento pelo olhar de indignação dele.

[...]

Adivinha quem ficava voando durante o percurso do ônibus até a escola? Enquanto meus olhos fitavam a paisagem, eu não parava de pensar no que o tal de Taka havia dito:

‘’Eles não estão brincando. Acha que eles interrogaram outras pessoas? Só estão aqui por você. Se cuida” “ Fica de olho neles. Porque eles já estão de olho em ti.’’

Na escola, as coisas passaram a ficar relativamente normais a respeito do ocorrido com Sungro. Tirando alguns alunos do time de basquete, poucas pessoas realmente iam sentir falta do jeito grosseiro e dele.

Durante a primeira aula do dia até ganhei os parabéns do professor de química, pois aquela era a primeira vez no mês em que estava indo a aula. Eu ainda não tinha encontrado Dex naquele dia. Então assim que o intervalo tocou, saí em direção à uma árvore próxima do pátio da escola, onde costumávamos ficar.

E ele estava lá. Encolhido, escorado na árvore mexendo no celular. Rapidamente ele ergueu os olhos quando me viu caminhando em sua direção.

— Oi Reen — Ele disse abrindo um sorriso. — Te procurei depois da primeira aula. Você não tinha chegado.

— Na verdade — Falei sentando ao seu lado — Eu estava na aula. Na primeira e na segunda.

Dex ergueu as sobrancelhas.

— Quem diria, essa disposição toda é por causa da Lea?

Dei um tapa na cabeça de Dex.

— Cai fora, mané. Só estou me acordando mais cedo esses dias.

Dex assentiu com a cabeça.

— Impressionante. O que o amor não faz com um cara.

Mais um tapa.

— Mas ai — Eu disse — já que tocou no assunto, o que você sabe sobre ela? A Lea.

Dex sorriu maldosamente, mas rapidamente desfez o sorriso para evitar mais um tapa.

— Ela é do jornal da escola.

— Ok. Conta uma novidade.

— Sei lá, disseram que era a diretora do jornal. Aí tiraram ela e colocaram uma tal de Lily, porque ela era maluca.

— Realmente não consigo entender o que ela queria comigo. Disse que queria saber se eu estava melhor.

— Só podia ser maluca mesmo.

Terceiro tapa.

— Sabe por que diziam que ela era maluca?

— O Guz do nono ano falou que ela queria publicar um monte de matérias nada a ver sobre teorias da conspiração. Uma coisa assim.

Estirei-me na grama olhando para cima.

— Reen — Dex chamou — Olha o teu amigo.

Levantei a cabeça para ver quem era. Taka. Ele estava perto dos bebedouros os braços cruzados, de longe o sol fazia os brincos em suas orelhas brilharem. Mas ele não estava olhando para nós. Me esforcei um pouco e encontrei o que ele estava olhando. Lea.

— Olha — Disse Dex — A sua namorada mudou o visual.

Lea estava visivelmente diferente. Ela estava com os cabelos negros soltos pendendo sobre os ombros e não usava os óculos que lhe davam um ar de mais velha, agora, acho que tinha a minha idade. Deixei meu amigo falando sozinho e fui até ela que estava conversando com outras amigas.

Que merda eu estava fazendo? O que eu ia dizer? Simplesmente pedir o telefone dela? Cobrar um encontro depois de tê-la dispensando da minha casa? Minhas mãos começaram a suar. Ela nem olhou para mim. Lea e suas amigas passaram por mim e eu fiquei com mais cara de trouxa do que de costume. Alguns alunos que estavam no pátio perceberam o que aconteceu e soltaram algumas risadas. Se Sungro estivesse ali, com certeza teria sido pior.

Tentei disfarçar indo até o bebedouro. Taka não estava mais lá. Depois disso, voltei até onde Dex estava sentado. Havia uma expressão de derrota em seu rosto.

— Você tá magro Reen — Começou ele — Quem sabe ela não te viu.

A cabeça de Dex foi salva de mais um tapa pelo sinal que tocou. Seguimos juntos de volta aos armários da escola. Ainda tinham alguns alunos rindo. A sensação de ser observado por tanta gente era bastante perturbadora. Me fazia lembrar das câmeras.

— Ei. — Chamei Dex — O que você sabe sobre a IRIS?

Dex parou pensativo enquanto me esperava pegar os livros.

— A dos olhos, ou a das câmeras?

— Essa que sabe que você morre de medo de passar perto de gatos e cachorros na rua por causa da alergia no seu bumbum.

Dex se encolheu.

— Primeiro. Não tenho alergia. Não mais. Segundo, o presidente Nicolas aprovou a lei que dizia que todos os lugares públicos das treze cidades deveria ser munidos de câmeras de segurança em vista da segurança dos cidadãos e que a principal desenvolvedora dessa tecnologia seria a IRIS, que por acaso, era dirigida por ele na época.

— Nossa. E esse jeito de falar parecido com um professor? Se eu não tivesse interessado já teria morrido de tédio.

— E por que esse interesse na IRIS?

— Bom... — Eu estava formulando uma mentira para não contar à Dex o que estava acontecendo.

— Ei — Ele interrompeu — Teu pai se livrou da ideia de ir embora?

— Não. Estou pensando em trabalhar em algum supermercado...

E aí eu fui puxado. Dessa vez era Priscila, professora de matemática que me levara para dentro da sala.

Assim que o sinal tocou e os números pararam de levitar sobre minha cabeça, Corri para a saída, mas Dex não estava lá. Caminhei apressando tentando evitar os alunos que riram de mim mais cedo.

Então fui puxado outra vez. Virei-me para falar com Dex. Mas não era ele. Uma figura um pouco mais baixa que eu vestindo um blusão cujo capuz cobria a cabeça deixando apenas uma parte do rosto exposta. Depois de alguns instantes consegui reconhecê-la:

Lea.

O que ela podia querer? A menina tinha me tratado como se eu fosse um fantasma durante o intervalo e agora estava ali parada na minha frente.

— Tá se escondendo de alguém? — Perguntei e instantaneamente lembrei-me das câmeras instaladas próximas à escola.

Ela pôs a mão em um dos bolsos do blusão e retirou um pedaço de papel. Antes que eu me movimentasse para recebê-lo, ela o empurrou em meu peito e passou por mim bem rápido como se estivesse esbarrado. Como bom lesado que sou, deixei o papel cair. Agachando-me o mais rápido que pude para pegá-lo, abri o papel, e lá estava escrita a seguinte mensagem:

Hoje à noite. Shopping Variant. Sete horas. Sem atrasos.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Curtiu? Diz o que achou. Até o próximo.