O CAMALEÃO SIDERADO escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 6
Capítulo 6




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Faltava pouco menos de dez minutos para as oito da noite quando chegou na cova da sua Mãe e ela já estava lá.

— Pensou que eu não viesse moço – Perguntou a menina fazendo um desenho na terra com um galho seco.

— Se eu pensasse isso não teria vindo – Retrucou secamente, mas com cuidado para não ser indelicado.

— Já te disse que eu só quero ver com os meus olhos a minha Luli. Depois vou embora e você pode até atravessar a rua quando me ver por aí.

— Tudo bem. Quem tá na chuva é pra se molhar mesmo – E começou a cavar esperando terminar mais um capítulo desse pesadelo sem fim.

— Bonitas palavras – Ralhou a menina enquanto firmava o corpo para acompanhar o trabalho da exumação dupla, canina e humana.

 

Já acostumado com a profundidade do caixão, Diolindo, desceu no buraco e terminou o serviço com as mãos. Chegou na tampa da urna e olhou pra cima. A menina observava num misto de curiosidade e medo.

— Tapa o nariz que vai feder – E em seguida abriu a tampa.

— Meu Deus do céu! – Gritou a menina com as duas mãos bloqueando o nariz e ao mesmo tempo olhando para os lados para ver se havia alguém. Mas naquele horário em pleno carnaval até o vigia deveria estar dando os seu pulinhos atrás de alguma fanfarra.

— Olhe aqui a sua Luli – Apontou pro animal na escuridão sem querer firmar a vista pra não ter que ver os restos de sua Mãe outra vez.

A menina franziu as pálpebras, e conseguiu identificar as pintas no rosto e o rabo comprido. Sua Luli estava deitada de uma maneira estranha, como se tivesse se aninhado num espaço entre o corpo da velha e o caixão, debaixo do braço direito do corpo.

— É ela mesmo – Confirmou a garota com os olhos marejando, mas sem querer tirar as mãos do nariz.

 

Diolindo saisfeito daria procedimento ao quarto enterro da sua Mãe quando ouviu um arfar. Inicialmente leve, mas foi ficando menos espaçado. Voltou os seus olhos para o animal e o viu com a barriga latejando, ou aquilo seria respiração? Não podia ser. Aquele animal estava enterrado por quase vinte e quatro horas. A menina se assustou com um espasmo de Luli e saiu correndo dali como quem foge do capeta.

 

Ele ficou ali olhando a agonia do bicho e num ato instintivo puxou suas pernas e o jogou pra fora do buraco e do corpo apodrecido de Dona Dirce. Rápido como quem rouba fechou a tampa da urna e jogou terra por cima de qualquer jeito esquecendo de ajeitar a cruz e por as flores murchas de volta no lugar. Virou-se para o animalzinho e massageou seu peito em movimentos regulares. Expulsou alguns insetos e vermes que teimavam em achar que aquilo era carne morta e acarinhou o seu rosto. Aos poucos Luli recobrava os sentidos e finalmente abriu os olhos contemplando quase carinhosamente o seu algoz e salvador. Começou a respirar com menos dificuldade e a mexer as patas.

 

Ele catou-a no colo procurando a menina e caminhou para a saída do cemitério que aquela altura ainda tinha o portão aberto. Passou por uma trilha de vômito fresca e deduziu que aquela garota não haveria de querer mais a sua cadelinha ressuscitada dos mortos. Provavelmente iria ter pesadelos com uma vira-lata zumbi vagando à noite procurando a sua dona.

 

Luli ficaria bem no quintal da sua casa, desde que não roesse os ossos da cisterna. Passou no Almeida para pegar o embrulho que deixara com a Selma, mas ela havia acabado de sair. Voltaria no dia seguinte, mas mesmo assim não perdeu a viagem e pegou as cervejas. Agora a bichinha já balançava até o rabo, parecia que não teria sequelas de ter sido enterrada viva. Sua Mãe dizia que Deus escreve certo por linhas tortas, mas aquelas linhas fizeram uma curva grande demais. Já conseguia enxergar o porque dos acontecimentos daquele dia estranho.

 

Ele tinha certeza que Desirée iria adorar a novidade. Entrou em casa, colocou Luli no chão e foi atrás da mulher. Não estava no quarto da sua Mãe, nem no seu, nem na cozinha, nem no quintal, nem na sala. Abriu a porta do banheiro e ela estava placidamente sentada no vaso sanitário com as mãos segurando o queixo. Dava impressão que estava com prisão de ventre e que defecar não seria fácil. Mas pelo cheiro que se avizinhou ela já tinha feito cocô. Delicadamente levantou-a e de sobreolho viu que de fato havia fezes boiando. Pensou que para quem comia pouco ou nada ela estava bem dos intestinos. Deu descarga e a levou para o quarto, mas não sem antes limpá-la. A essa altura Luli era só festa. Tomaria banho primeiro com a sua mulher e em seguida limparia o animalzinho para alimentá-lo.

 

Com as tarefas mais urgentes cumpridas, Diolindo deitado na cama com Desirée, observava Luli, agora saciada com o resto da sopa do dia anterior, domindo em cima dos seus chinelos.

De repente sentiu uma desorganização no seu cérebro que conhecia muito bem. Se levantou e o mais rapidamente possível correu tropeçando para o quintal. Lá, caiu no chão violentamente e começou a debater-se no chão. Os músculos contraiam e distendiam rapidamente, a sua língua estava dura como pedra e um ataque convulsivo chegaria a qualquer momento. Luli acordara e viera para perto dele. A pobrezinha queria ajudar, latia, gania, mas não via como aproximar-se do homem cujo corpo não parava quieto. Até que uma violenta convulsão o fez vomitar e recobrar os sentidos aos poucos. Ele sabia que o ataque epiléptico viria a qualquer momoento sem a medicação, mas tinha esperanças que demorasse um pouco mais, só até a farmácia abrir. Não gostaria de se arriscar fora da comunidade. Havia muitos anos que não saia do seu entorno ainda mais com transeuntes bêbados travestidos andando soltos por aí. Seguraria firme até quarta de cinzas.

 

Ainda deitado, alisou o pelo curto daquele ser inocente e cheio de amor pra dar sem pedir nada em troca. Levantou-se com cuidado, jogou um balde de água nos seus dejetos e tomou outro banho. Entrou no quarto, apagou a luz deixando Luli dormir por ali naquela noite e se aninhou no corpo da sua mulher.

 

Quando acordou pela manhã surpreendeu-se pela posição de conchinha outra vez. Mas desta vez era ela quem o abraçava. Precisava sair para comprar comida, cimento e pegar o embrulho com Selma. Ainda não sabia o que fazer com a ossada. Mas lembrou que antes de tudo isso teria algo de suma importância para fazer. Correu pro quintal e desenterrou a dentadura da Mãe que escondera ali perto do limoeiro por precaução. Lavou a prótese e foi escavar o dente indicado por Franco. Pegou uma chave de fenda velha, apoiou o objeto num toco de árvore e martelou delicadamente. O dente era maciço e não ôco como deveria. Tentou mais um, mais outro e quando chegou no último molar, desistiu. Triste e com raiva, pensou em trucidar o ex-padre quando o encontrasse. Agora não sabia o que fazer para pagar as prestações de Desirée. Teria que pensar. E achava que pensava melhor com álcool no juízo. Talvez hoje pedisse algo mais forte para tentar aplacar essa dôr que nunca havia sentido dentro do peito.

 

Jogou as ferramentas no chão com estrépito, assustando Luli que acompanhava cada movimento dele, e saiu de casa.

 

Selma era sempre uma visão reconfortante, ainda mais quando estava trajando uma legging de microfibra fúcsia.

 

— Selma, hoje vou querer tomar uma dose daquela pinga de jaca famosa do Sr. Almeida

— Preciso perguntar se você têm certeza?

— Não. Quer dizer, eu não sei se tenho, mas sei que quero.

 

Dessa vez Diolindo ficou no balcão proseando com a mulata, já que aquela manhã de segunda de carnaval não tinha qualquer movimento.

 

— Acho que estão curando a ressaca – Ela disse virando a garrafa do líquido desbotado sobre um copo americano. – E você, tá curando alguma coisa?

— Na verdade acho que tô é procurando mais doença. A cabeça não anda boa desde que minha Mãe morreu.

— Imagino a sua dor – Disse a mulata com um dó verdadeiro pondo a sua mão cor de chocolate importado em cima das mãos magras e pelancudas dele que naquele momento não tinham cor alguma.

— Pior que é dor que remédio não passa.

— Nessas horas a gente gostaria de ver nosso ente querido nem que fosse mais uma vezinha só, né?

Diolindo engasgou com o primeiro gole da pinga de jaca e levou dois minutos pra parar de tossir.

Selma achando que havia dito alguma coisa de errado, pediu desculpas e foi até a jukebox por algo pra levantar o astral. "Levante a cabeça" de "O Som Nosso de Cada Dia", sempre dava resultado.

 

Ei rapaz!

deixe de pensar em besteira e pense mais na sua vida!

Que é capaz de você conseguir o que procura e muito mais ainda.

 

Ei rapaz!

deixe de pensar em besteira e pense mais na sua vida!

Que é capaz de você conseguir o que procura e muito mais ainda.

 

Vai ter que lutar e não se iludir

com falsas promessas

não interessa

o que você, o que você, deixou pra trás.

 

Levante a cabeça!

Como a música era curta e surtiu efeito no astral de Diolindo, Selma programou a máquina para repetí-la mais duas vezes. Com o bar vazio e o Sr. Almeida ausente para visitar a outra filha que havia parido gêmeos, Selma fez companhia ao homem de aparência alquebrada. Ela gostava genuinamente dele. Era um homem maduro e ingênuo. Sua alma era transparente e ela quase podia enxergar o seu coração batendo descompassado pelas angústias de ter sobrevivido a tormenta de dedicar toda a vida adulta a uma Mãe autoritária. Ela lhe arrancara o de mais precioso, a vida e o amor próprio, e agora, com a ausência repentina dela, ele se sentia perdido. Era como soltar um passarinho criado em gaiola. Ele até poderia sair por aí voando, mas não saberia que rumo tomar lá fora.

Selma achava quase charmoso aquele homem de aparência frágil, envelhecido, era como um adolescente em pele de avô. Ela mesmo se pegava surpreendida com tanto cuidado e preocupação com Diolindo, afinal era uma mulher no auge da beleza, de trinta e dois anos, vaidosa, com um séquito de homens arrastando de tudo por ela. Já recebera propostas tentadoras, mas permanecia fiel aos seus sentimentos. A falecida esposa do Sr Almeida a criara como filha quando fora largada pela mãe no lixo em frente ao bar e nunca fez distinção entre sua filha branca e sua filha preta. Decidira se dedicar aos pais adotivos para sempre. Quando Dona Dorotéia morrera tragicamente atingida por uma jaca na cabeça, ela ficou inconsolável, mas o velho Almeida supriu sua carência de afeto. Ele sempre lhe dedicou tempo para fazer os deveres da escola mesmo que às vezes não soubesse distinguir a letra B do número oito. Mas o que contava mesmo era o poder indestrutível do amor.

Ficaram ali proseando descontraidamente até a assombração predileta de Diolindo aparecer. Franco.

— Booom Dia meu bom rapaz! Cedo no bar? Isso não é típico da sua pessoa – Proferiu com ar zombeteiro.

Diolindo preferiu não alimentar o ódio crescente pelo homem e pediu a Selma que lhe servisse mais uma pinga de jaca.

— Posso tomar uma destas aí por sua conta? Põe mais uma Selminha – Pediu sem esperar a resposta do homem.

 

Ficaram ali se olhando, como um alfaiate faz quando surge dúvidas na medida do cliente para confecionar um terno caro, saborearam outro gole da bebida até alguém entrar no bar e roubar a atenção de Diolindo.

 

— Oi moço! – Disse a menina ex-dona de Luli assustando-o com a sua aparição repentina.

O padre a chamou para perto de si e a abraçou.

— Crianças representam o que há de mais puro na vida Diolindo. Quando se têm a graça de beber um pouco dessa pureza você quase levita!

— Chega! – Gritou Diolindo descontrolado puxando a menina para si. – Chega de bancar o bom samaritano enquanto o que você quer eu sei o que é.

Virou-se para a menina.

— Afaste-se desse homem, eu te digo, ele é mau, é ruim, não é essa coisa boa que você pensa!

Selma que estava servindo um cliente que entrara no bar, parou e foi de encontro a confusão que estava se iniciando.

— Calma moço, tá tudo bem. Ele me dá abrigo de vez em quando na barraca que ele dorme sozinho lá perto do campinho – Argumentou a garota piorando as coisas.

— E o que ele faz com você?

— Velo pelo sono dela Lindinho – Sussurou Franco destilando ironia pelas presas.

— Nunca me chame assim outra vez!

 

Descontrolado, Diolindo se levanta e golpeia o velho na cabeça, que titubeia e cai no chão do bar com as pernas pra cima.

— Vixe – Disse a menina e saiu de fininho achando que a polícia ia chegar logo,logo e não iam gostar de ver uma menor de idade num bar na companhia de dois bêbados. Iam levá-la para a mãe. Isso não.

 

Selma ajudou a levantar o velho e o pôs sentado numa cadeira mais distante do balcão e deu-lhe água e voltou-se para Diolindo. Ele estava aturdido, quase catatônico olhando para o punho que usara e sem acreditar que derrubara um homem com o dobro do seu peso. Apesar da idade avançada, Franco era um touro. Mesmo assim sentia-se como aliviado por algo que não sabia direito o que era. Selma estava ali, abraçando-o, fazendo-o desarmar o punho em riste. Ele aceitou o peito da mulher e chorou abraçado a ela, com vergonha, com medo de tudo dar errado, de sua Mãe lhe chamar outra vez na sepultura, de sentir vontade de bater no padre outra vez, de ter que devolver Luli, de ter que devolver Desirée, de ter que abrir um cofre, de ir preso por guardar ossos humanos em casa, do seguro não depositar o dinheiro na sua conta, da farmácia nunca mais abrir. Medo, medo, medo.

 

Selma passou a mão nos ralos cabelos dele e sem dizer uma palavra beijou-lhe a testa. Enxugou suas lágrimas com a barra do avental que usava no trabalho, enxugou uma gotinha que teimava em querer escorrer de um dos seus olhos e não queria que aquele momento acabasse nunca mais. Aquilo merecia mais que uma pinga de jaca. Com Diolindo recuperado e surpreso com a atitude da moça, viu-a abrir uma garrafa de licor de sapoti, envelhecido pelo Sr Almeida por anos apenas para momentos especiais. Uma dose daquilo arrancava o couro do bolso de um Zé como ele. Com Franco fora de combate dormindo sentado na cadeira, ele se acalmara. Olhou para fora do bar pra ver se via a menina, mas não a viu. Ficou surpreso por ela não ter aberto o bico.

 

— Aqui, e essa vou tomar com você. Vou fechar o bar mais cedo hoje. – Conclamou a mulata fazendo tintin e tomando o primeiro gole da forte bebida.

 

Ele ajudou Selma a baixar as portas do estabelecimento quando os poucos clientes se foram e ficaram pelo lado de dentro do bar, não sem antes arrastar a cadeira onde Franco dormia profundamente para a calçada. O velho saberia se virar e amanhã não lembraria de absolutamente nada.

 

— Lindinho! Posso te chamar assim?

— A única que me chamava assim era minha Mãe, mas você pode.

— Se eu disser que tô gostando de você, você acreditaria?

 

Ele engoliu seco e não sabia o que dizer. Mas na falta das palavras há os gestos, Puxou-a para perto de si e beijou-a apaixonadamente. Aquilo não significava que não amasse Desirée, claro, mas também não podia mais represar sentimentos da sua infância. Era vidrado naquela mulher desde sempre. Quando ia comprar mantimentos no Sr Almeida, Selma sempre estava ali com um sorriso enorme e prestativa como ninguém. Nunca achou que tivesse chance com uma menina mulher de tamanha beleza, ainda mais com a sua Mãe pegando no pé e vigiando.

 

Uma vida inteira passou pela cabeça dos dois enquanto os lábios estavam conectados, interrompidos apenas pelo despertar do ex-padre do lado de fora praguejando.

 

— Diolindo seu filho da puta, vou contar tudo o que eu sei pro povo, vou lhe deixar na merda, o mundo vai saber de quem você é filho. Você vai pagar caro por isso. – Berrava o padre sem saber que o seu alvo estava ali dentro se amassando com a mulher que ele se aproveitou quando criança, mesmo que ela não soubesse disso até hoje.

 

Pelo lado de dentro, Selma tapava a boca de Diolindo que, agoniado demais, queria responder aquelas acusações. Com Franco longe e ele mais calmo, pediu desculpas pelo rompante e pelo beijo.

 

— Por este último não precisa, eu gostei. Mas não quero que nada mude entre nós, tudo bem?

— Tudo bem. Obrigado Selma.

 

Depois de pegar umas latas de sardinha, pães e uma dúzia de ovos, ele beijou-a mais uma vez, desta vez na face, abriu a portinhola de saída e foi para casa.

 

Esquecera mais uma vez no bar o embrulho que o neto da dona Geruza lhe entregara.


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