O CAMALEÃO SIDERADO escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 5
Capítulo 5




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Ele não poderia se demorar muito, afinal Desirée ficara só. Mas havia dentro dele uma vontade de sumir do mapa e a única maneira que encontrara de aplacar essa agonia era buscar o álcool como fuga. Deu os primeiros goles na cerveja gelada e fechou os olhos por um momento pra saborear o encanto daqueles eflúvios. Ao abrí-los viu sentado à sua frente uma figura desconhecida, mas que sabia o seu nome.

— Desculpa Diolindo, nem pedi pra sentar – Disse o rapaz franzino e educado que aparentava não ter mais que vinte anos de idade.

— Quem é você? – Como sempre, ele preferia optar por ser o mais direto possível diante de uma situação estranha.

— Sou Fredson, neto da D. Geruza, amiga de longa data da sua falecida Mãe.

— Ah, muito prazer – respondeu sem muito entusiasmo lembrando da sua visita no asilo. – E como vai D. Geruza? Bem?

— Morreu. Ontem à noite. O coração de vovô não aguentou. Já estava velhinha a pobrezinha – Disse pausando a fala e segurando um embrulho na mão. – Pediu que lhe entregasse isso. Não me pergunte o que é e o porque, mas foi algo que ela prometeu à sua mãe que faria e me incumbiu da tarefa. Se você quiser ir ao velório, vai ser no cemitério aqui mesmo da comunidade.

 

Ao ouvir a palavra cemitério, o líquido que até então estava descendo prazeirosamente goela abaixo, agora parecia mais um feixe de arame farpado e Diolindo engasgou. Pediu desculpa, limpou a sujeira e pegou o embrulho na mãe do rapaz.

 

— Farei o possível.

— Acho que minha avó gostaria muito que você fosse. Ontem ela passou o dia delirando no hospital e balbuciava o seu nome o tempo inteiro.

 

Diolindo sabia bem porque. Tinha tascado um beijo de novela na boca desdentada da pobre anciã. Bem provável que nunca tivesse sido beijada assim pelo avô desse rapaz.

 

— Tudo bem. A que horas será o féretro.

— Esperamos enterrá-la ainda pela manhã. – Confirmou o rapaz já se levantando para desepedir-se.

 

Apertaram-se as mãos e o rapaz afastou-se em passos firmes. Diolindo brincava com a pequena caixa nas mãos. Era leve. Não abriria em público, o faria apenas em casa. Melhor, pediria que Selma guardasse e na volta do cemitério passaria aqui no boteco para uma saideira e recolheria o embrulho misterioso. Aquela altura do campeonato ele já não tinha curiosidade por mais nada, talvez por medo de achar mais uma encrenca no meio do caminho. Era provável que a velha estivesse devolvendo algo de sua Mãe que ela pegou para si no asilo como a dizer que estaria melhor com ele. Era isso.

 

Fixou o seu olhar em Selma que atendia com agilidade e um sorriso exuberante o número crescente de clientes que apareciam por ali no domingo de carnaval, e mesmo sem acreditar que teria que ir ao cemitério já se sentia melhor. Aquela moça era um azougue. Queria ter a mesma energia. Com a duração da bateria dela poderia resolver seus problemas a toque de caixa.

 

Pediu a mulata que guardasse o embrulho. Selma confirmou que estaria ali quando ele voltasse, pois hoje não haveria folga. Deixou meia dúzia de cervejas pagas para quando voltasse e uma gorjeta apreciável o que fez a moça a produzir o seu sorriso dedicado apenas aos frequentadores Vips do boteco, e se foi caminhando para encontrar os mortos outra vez.

 

Na entrada do cemitério viu uma mocinha jovem de seus doze, treze anos chorando. Imaginou que fosse pela falecida, apesar da sua aparência um tanto despojada para os padrões da família.

— Não chore mocinha. Ela já estava velhinha mesmo.

A menina parou então de chorar e olhou-o com uma cara de indignação.

— Como assim velha? Ela só tinha quatro anos.

— Você está aqui para enterrar uma criança? Desculpe perguntar, é sua irmã?

— Não moço. Eu perdi a minha cachorrinha, Luli. É uma pequenininha assim, pretinha com manchas brancas no peito, rabinho comprido, orelhas sempre em pé, uma vira latinha sapeca. Ela foi vista a última vez entrando aqui no cemitério essa noite. E depois mais nada.

 

Diolindo engoliu sêco e começou a comparar a descrição que a menina dera. Apesar de estar escuro ele lembrava de todas essas características. Matara a criatura de estimação de uma pobre menina.

 

— Não chore. Se ela tiver que voltar pra você vai acontecer e pronto. Mas é sempre bom se preparar pro pior, caso ela não apareça.

A garota soltou-lhe um olhar que poria abaixo uma porta de aço.

— Ela vai aparecer – Retrucou zangada e lhe mostrando o dedo médio.

 

Ele saiu de fininho sem saber o que dizer pra menina e se dirigiu à capela onde estava sendo velado o corpo da D. Geruza. Na entrada, já havia muita gente e logo de cara topou com o ex-padre.

—Diolindo meu bom homem! – Bradava num volume dois tons acima do normal mostrando a alteração do seu estado devido aos efeitos dos coquetéis molotov que ingeria em forma de bebida barata.

Estava bem vestido, apesar de puídas, as roupas estavam limpas e o homem até cheirava a loção pós barba, que tinha aparado para a ocasião. Curioso ele por ali. Talvez a chuva o tivesse impedido de ir ao enterro da sua Mãe.

 

— Olá Franco – Disse-lhe em tom sêco e sem nenhum entusiasmo estendendo-lhe a mão.

— Deixe essas formalidade de lado, vamos entre pra se despedir de uma das melhores amigas da sua Mãe. Soube que você deu-lhe um último presente em vida lá no asilo.

— Eram coisas da minha Mãe.

— Estou falando do beijo – E estalou os lábios nas costas da mão soltando uma gargalhada típica de falastrões escandalosos chamando a atenção dos presentes.

 

Tentou se desvencilhar do homem ao se aproximar dos familiares, mas ele parecia um carrapato miserável grudado no seu pé.

Inclinou a cabeça e cumprimentou a filha mais velha e as netas da mulher, apresentando-se. Algumas demonstravam conhecimento quando citava o nome de sua Mãe, pois eram muito chegadas desde que vieram morar na comunidade. Depois recolheu-se a um canto da capela e assistiu aos cânticos religiosos entoados por todos.

 

O lugar estava abafado e quente, piorando com a quantidade de gente. Tentou ir tomar um ar lá fora, mas ao ver a menina dona da cachorrinha lançando um olhar furioso para ele, decidiu ficar por ali mesmo na companhia do ex-padre.

 

— Me pediram pra fazer a eulogia. Me recusei, não me senti digno. Conheço essa mulher há muito tempo, mas essa honra não me cabe – Balbuciou Franco com os olhos marejados.

Pela primeira vez Diolindo o via como um ser humano. Um homem que estudou toda a sua vida para se dedicar a Deus, descobre a fraqueza da carne da pior maneira.

O ex-padre deu uma olhada lá fora e algo o interessou. Pede licença a Diolindo e sai da capela. Ao vê-lo abordar a garota da cachorrinha que ele havia matado com uma pá na cabeça sem querer, decidiu também sair para não deixar que o pior pudesse vir a acontecer. Ao se aproximar, Franco consolava a criança encostando a cabeça dela na sua barriga protuberante enquanto alisava os seus cabelos.

 

Ele não sabia o que fazer pra frear aquele assédio de um pedófilo sobre uma criança. Não podia concordar com aquilo nem por um segundo. Apressou o passo em direção aos dois e decidido falou pra garota.

 

— Eu sei onde está Luli.

 

Puxou a garota pelas mãos e saiu de perto do padre indo em direção as sepulturas. O padre sem entender patavina ficou com uma sensação de frustração e com raiva do bom homem, que estava se saindo bom demais para o gosto dele.

 

— Veja mocinha, me desculpe pelo mau jeito, mas eu tenho que te dizer a verdade. – Buscava as palavras enquanto a guiava em meio as covas. – Não há jeito fácil de te dizer o que eu vou te dizer, mas prometo falar a verdade pra você e você pode perguntar qualquer coisa que vou te responder.

 

A menina sem entender nada o seguiu, mas ainda com uma desconfiança raivosa daquele homem insuportável.

 

— O que você quer me dizer? Que eu não vou mais encontrar a minha Luli? Você sabe de alguma coisa ou só tá me enrolando?

— Calma. Vou te levar ao lugar onde eu a vi pela última vez. – Sabia que estava enrascado, mas era a única saída para livrá-la das garras de Franco. Afinal uma menina pobre, provavelmente de uma família numerosa, com tantos irmãos e irmãs que a mãe levaria dois dias pra sentir falta de algum membro da prole, procurando um vira lata num cemitério, era presa certa nas mãos de um homem doente e sequioso por sangue novo pra satisfazer suas piores necessidades.

 

Ao chegar diante do muro que pulara na noite anterior, apontou para o chão.

— Foi aqui que eu vi Luli morta – E buscou o olhar da menina que ia do chão para a cara dele.

— Você acha que eu sou alguma idiota. Sou nova mais não nasci ontem moço. Como você quer que eu acredite em você, hein? – Disse colocando as mãos na cintura e levantando o topete.

— Porque fui eu que a matei ontem à noite.

 

A menina soltou as mãos da cintura e partiu pra cima dele e começou a esmurrar o seu peito. Ele a conteve como pode.

 

— É verdade, mas foi sem querer. Se você se acalmar prometo contar tudo.

 

E Diolindo contou tudo. Tudo mesmo. Na verdade desabafou. Chegou às lágrimas. Parecia que estava num confessionário. Aquele garotinha era o seu padre confessor. As crianças eram abençoadas com a proteção dos anjos. Não escondeu uma vírgula do que viera fazer ali. Não tinha medo que ela contasse a alguém. Não tinha medo de nada. Na verdade tinha medo sim. Mas apenas de uma coisa. E era exatamente o que ele não queria ouvir que a menina disse.

 

— Só acredito vendo.

 

A vontade era de mandar aquela criaturinha pedante pra puta que o pariu. Mas sua mãe deveria a essa altura estar preocupada em como parir mais um.

 

— Não posso fazer isso.

— Porque? Você já fez antes.

— Eu não aguentaria fazer isso outravez.

— Se você não me provar que Luli tá ai embaixo enrolado nos braços da tua Mãe, eu prometo sair daqui gritando e dizendo que tu abusou de mim. Não vai ser nada bom. Meu padrasto tá em cana por isso.

— Tudo bem, tenha calma. Façamos assim. Hoje á noite, ás oito, tá bom? Você pode sair de casa a essa hora?

 

A menina deu uma risada sarcástica que ficaria melhor em uma mulher de trinta anos e disse.

— A última vez que tive em casa foi antes de ontem. Têm tanta gente morando lá que não têm mais espaço pra mim. E chegando mais moço! Olhe só, se a minha Luli tiver aí tudo bem, vou ficar triste porque foi um acidente, vou acreditar em você. Mas se não tiver, se prepare. Tô aqui oito horas! – Esbravejou, e saiu num passo de quem está com a faca, o queijo e a vida dele na mão.

 

Ele passou as mãos pela cabeça, esfregou os olhos e olhou pra sepultura. Não acreditava, mas só poderia crer que sua Mãe continuava dona da sua vida e cada arroubo de saudade dela era uma visita que ele teria de fazê-la. Maldita hora que viera pra esse velório. Por falar nisso, o cortejo já havia saído da capela e agora vinha na sua direção. Ao olhar para o lado viu uma cova preparada ao lado da da sua Mãe. Era só o que faltava, a velha seria vizinha de cemitério da amiga. Com um gosto amargo na boca, ele saiu à francesa mais uma vez pra longe de Geruza, apesar de saber que mais tarde estaria ali com uma pá na mão.

 

Esquecera de passar no boteco e fora direto para casa. Tinha que pensar em um montão de coisas. A única coisa boa nisso tudo era Desirée. Quando chegou em casa, apesar de prometer não se espantar com mais nada vindo da sua mulher, encontrou-a na mesa, vestida com um conjuntinho azul que havia comprado, com a mesa posta e uma terrina de sopa ainda fumegando. Parece que ela já havia tomado a sua devido ao seu prato com resquícios da comida. Diolindo entrou em todos os cômodos da casa, verificou a fechadura da porta e não havia nenhum rastro de alguém que pudesse ter entrado ali. Olhou para a sua mulher e viu um muchocho, como se estivesse triste por sua desconfiança.

 

— Desculpe meu amor, foi só precaução. Você sabe o que estou passando. A minha cabeça não está nada boa. Ainda por cima vou ter que ir novamente ao cemitério. Me meti numa enrascada com uma garota de doze anos. Não foi nada, não precisa me olhar assim, confie em mim. Eu preciso de você mais do que nunca nesse momento.

 

Olhou para as feições da sua esposa e ela já tinha mudado para um semblante de complacência. Ao menos tinha alguém na vida que o compreendia. Pegou a concha e se serviu de um prato mesmo sem fome. Mas tinha que valorizar o esforço da pessoa que amava. Comeu em silêncio admirando a beleza platinada à sua frente. Aquela visão já o deixava mais tranquilo para o que estava por vir.

 

Com os restos de tijolos que jaziam no quintal há anos, sobras da construção do puxadinho que se tornou o seu quarto, ele preencheu o buraco do chão do banheiro e conseguiu nivelar o piso novamente e remendar o cano do ralo com restos de araldite. Mesmo improvisado, já dava pra tomar banho. Mas não dava pra entrar embaixo do chuveiro sem lembrar da ossada no quintal. Sempre tivera sangue frio, mas talvez por isso também não sabia qual era o seu ponto de ebulição.

 

Passou o resto da tarde pensando no que a sua vida se transformara desde a morte de Dona Dirce, e talvez devido ao seu otimismo ainda via o seu saldo positivo. Pensando nisso teria que tirar o saldo da sua conta, pois até o dinheiro do seguro ser depositado teria que se virar com pouco. Levou sua mulher pra cama e fizeram amor como se o mundo fosse acabar. Seu suor banhava os dois como uma torrente de paixão infinita, como se as portas do céu se abrisse e uma parelha de anjos na torcida apaludisse sua performance.

Exaustos permaneceram abraçados por toda a tarde, ela dormindo e ele perdido em pensamentos que ia desde ir num centro espírita tentar passar uma mensagem pra veia pedindo que ela o deixasse em paz, até ir preso por pedofilia com Franco apontando o dedo pra ele atrás das grades e gargalhando.

— Meu bom homem o que fizeste? Desculpe, pensei que era uma doença não transmissível, ahahahaha!

 

A vida dele não era má, lhe faltava apenas um pouco mais de movimento. E ele teve certeza que de tanto pedir pra Deus que lhe tirasse do marasmo, que ele mandou seu pedido em dobro. Agora às voltas com tantas coisas ao mesmo tempo teria que dar conta de uma por uma caso lhe restasse ainda a vontade de ser feliz.

 

Pegou a maldita pá, um maldito pano de prato e um maldito saco plástico pra servir de luva, deu um beijo demorado na sua mulher e foi enfrentar seu malvado destino outra vez.


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