O CAMALEÃO SIDERADO escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 39
Capítulo 39




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A praça estava lotada ao cair da tarde de domingo. Crianças andavam enganchadas aos seus pais super protetores, segurando balõezinhos coloridos cheios de gás hélio numa mão e, invariavelmente um pirulito ou um sorvete na outra. A alegria saltitava ali como bailarinas ensandecidas por rodopios infinitos. Em contraste, uma tristeza sem fim lhe fincava o peito e, vez ou outra dava um leve beliscão na perna do bebê para fazê-lo chorar. Babi nunca mais choraria ou emitiria qualquer outro som. Apertou-a com mais força contra si e achou o que tinha ido procurar. Um caixote de madeira apoiado num tripé e um manto negro a cobrir o homem que escondia-se a li atrás para registrar imagens. Seria a única lembrança que teria da sua filha. Não importava se viva ou morta, era uma necessidade que lhe invadia os poros.

 

Pagou ao fotógrafo, que não via nenhum traço de alegria vindo daquele rosto sem expressão, e sentou-se num banquinho conforme lhe fora ordenado. O homem dava instruções para que ela movimentasse o queixo mais para direita e levantasse um pouco mais a cabeça. Talvez levada pela vergonha, ela pediu que a foto fosse feita com ela olhando a criança. Segurava o corpo da sua filha com o braço esquerdo e, com a mão direita, fazia um carinho na pequena bochecha endurecida e já sem cor. O homem emitiu um sinal de aprovação e registrou o momento. Ela pagou e disse que iria dar uma volta enquanto ele revelasse a foto. Atravessou uma rua e caminhou até um beco que conhecia muito bem porque dava nos fundos do bar do anão, para quem tinha trabalhado. Abriu um latão de lixo já quase completo pelo dia movimentado, olhou o rostinho arroxeado mais uma vez e beijou-lhe. Enrolou o corpo na manta e deu um nó apertado para depois pousá-lo em cima de caixas de papelão vazias e, tornar a fechar o contêiner. Saiu dali sem olhar para trás nem uma vez sequer.

 

Entrou no bar do qual fora funcionária, sentou-se no balcão e pediu uma cerveja. O anão veio servi-la pessoalmente após reconhecê-la e, perguntou sem fazer questão de ser discreto, quando ela engravidaria outra vez. Ela lançou-lhe um olhar que não continha qualquer emoção.

— Nunca mais.

— Que pena. Você teria um salário mensal sem trabalhar entre os três e os oito meses de gestação. E no nono ganharia o dobro. É quando você ficaria no ponto pra mim.

 

Ignorando o comentário, percebeu que sentadas numa mesa próximo a calçada, duas mulheres com gravidezes adiantadas, riam alto e de vez em quando lançavam olhares devassos para o anão. Pareciam clientes contumazes do tarado.

— Pois é Florinda, isso pode se tornar a profissão do futuro. A de puta prenhe! – E saiu rindo pro caixa deixando a cerveja aberta, que ela logo sorveria para ir buscar a foto.

 

— Pronto moço, você já têm a minha fotografia? – Perguntou ansiosa.

— Pois é senhorita, acho que vamos ter que refazê-la. Nesse período de pôr do sol, as vezes um raio de luz no momento errado atrapalha e borra a imagem. Traga o bebê que eu tiro duas ao invés de uma. Cortesia da casa.

Sem dar tempo para explicar ao homem que isso seria quase impossível, ela correu o mais que pode de volta ao beco, justo no momento em que um enorme caminhão de lixo virava os contêineres na caçamba.

— Nããããão! – Gritava de joelhos com as mãos na cabeça, assistindo impotente o destino do cadáver de Babi. Teria que lutar para não esquecer as feições da sua filha enquanto vivesse. Não por vaidade. Era para pedir-lhe perdão pelo seu erro todas as vezes que colocasse sua cabeça num travesseiro.

 

O motorista do caminhão sem entender patavina, pensando tratar-se de alguma louca que gostava de remexer lixo, ligou a pá compressora que compactava o conteúdo no interior da caçamba, esmagando os resíduos, bem como todos os frágeis ossos do corpo de um bebê.

 

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Gemima possuía uma força fora do comum para uma mulher do seu tamanho. Conseguiu arrastar Franco bêbado pro banheiro e fazer-lhe um asseio. Colou-o debaixo do chuveiro e o lavou desde as orelhas até as unhas encravadas do pé que lhe torturavam dentro dos sapatos. Não esqueceu de limpar-lhe os bagos e a virilha. Abriu-lhe o rego da bunda e esfregou.

— Gemiminha, nessa toca aí não têm tatu! – Protestava o velho tentando manter o equilíbrio sobre os tijolos molhados que tapavam um buraco.

— Se não têm tatu aqui, ele deixou um rastro de merda. Fique quieto que eu não quero que você morra com uma infecção.

— Se eu fosse você ficaria com vergonha do que o médico escreveria no meu atestado de óbito..INFECÇÃO BOSTÉLICA NAS PREGAS.. Hehehe. Meu xaropinho de groselha, assim você....aaaai!

Gemima percebendo a situação precária resolveu enfiar-lhe logo o dedo e limpar aquela sujeirada toda de uma vez.

 

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Almeida girou a chave na porta e entrou esperando uma recepção calorosa, porém, apesar de ver luzes acesas no banheiro e na sala, não havia ninguém em casa. No banheiro, viu uma bacia caída no chão com uma toalhinha de bebê virada por cima do vaso sanitário e mais nada. No quarto, os travesseiros arrumados como um cercadinho. Claro que chegaram ali em segurança. Mas para onde poderiam ter saído uma hora daquelas, com o dia já escuro? Deu uma olhada no quintal, e viu uma cadeira embaixo da jaqueira com uma fruta enorme esbagaçada no chão. Logo imaginou coisas. Poderiam estar num hospital. Será que aquilo caíra na cabecinha de Babi meu Deus? Providenciaria cortar aquela árvore logo que chegasse do enterro de Clarice para que ela não ferisse mais ninguém. Inventaria outra pinga, ou venderia o bar, mas não queria ver uma jaca na sua frente nunca mais. Pensava que só podia ser praga da falecida. E fez o sinal da cruz logo em seguida.

 

Resolveu assuntar na vizinhança que gostava de cuidar da vida alheia e, através de uma vizinha, soube que Florinda saíra de casa esbaforida com o bebê no colo, e pegara o táxi do Tião, que fazia ponto quase na esquina da rua principal. Bendita era a profissão de fofoqueira. Correu e encontrou Tião chegando de uma corrida.

— Sr. Almeida, levei a moça pro Hospital Geral a pedido dela. Parecia bem agoniada e passou a viagem toda olhando pro neném como se ele não tivesse nada bem. Acho que num tava mermo porque o bichinho não chorou nem uma vez.

— Obrigado Tião. Você me levaria até lá?

— Agora mermo.

 

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Dava pra distinguir as vozes exaltadas e aumentando de volume. Algo estava se passando na entrada da chácara-abatedouro e tinha a ver com a chegada da cavalaria, assim esperava. Conseguiu ficar de pé e se desvencilhar das cordas que lhe apertavam os pulsos. Com as mãos livres se livrou por completo do que lhe prendia. A porta estava trancada e parecia ser reforçada. Não havia janela. Espere! Viu o canivete suíço da grandona, que lhe cortaria um bife da perna, caído no chão. Agora as aulas de malandragem que ele recebera dos arrombadores quando ainda dava plantão nas delegacias serviria para algo. Talvez pela falta de prática, demorou-se pouco mais de cinco minutos para ouvir o clique que o tiraria dali. Como não entrara vendado na casa, decorou a disposição dos ambientes. Depois de um longo corredor lateral que dava numa saleta, um outro daria na sala principal e depois para a entrada da propriedade. Mas não poderia sair por ali, a não ser que visse um policial primeiro.

 

Esticou o pescoço por uma enorme janela estilo colonial e, mesmo à noite, pode ver as luzes do giroflex. Não de um, mas três. Ao menos sabia que deveria contar com ao menos seis policiais. Junto a eles estava um grupo de pessoas que falavam ao mesmo tempo. Os canibais provavelmente tentando um suborno, ou então analisando a tez da pele dos homens da lei para certificar-se se não poderiam virar comida. Pegou na batata da perna por instinto e tentou os fundos. Na maioria das vezes os fundos era a melhor solução. Atravessou com cuidado uma zona aberta até um galpão de madeira com teto direito alto e com aberturas laterais. Olhou pelas frestas e não se parecia com um estábulo ou depósito. Era uma fábrica. Com a náusea que lhe consumia como um fogo invisível, quase vomitou, com o líquido lhe chegando na boca. Cerrou os dentes e evitou fazer qualquer barulho. Forçou-se a engolir o regurgito de volta pro estômago num esforço que o fez ficar com o rosto afogueado e com falta de ar. Ajoelhou-se e levantou a cabeça pra oxigenar, com a garganta lhe queimando.

 

Tornou a olhar pra dentro do galpão e viu dois funcionários recheando as tripas de porco com a carne que vinha do moedor. Até então não tinha visto nenhuma evidência de que aquilo era carne humana. Nada de carcaças, de cabeças em latas de lixo, nada. Ainda se esgueirando, alcançou a área de lazer que estava vazia, em virtude de todos estavam conferenciando com os policiais lá na porteira. Churrasqueira já com carvão em brasa, bebidas gelando num enorme freezer e carnes em cima do balcão prontas para serem assadas. Esperando cortes nada convencionais, confirmou sua expectativa quando viu que por fora de cada saco plástico contendo carnes marinando no tempero, estava escrito o nome da respectiva vítima. Diógenes, Alice, Valter, Rita, etc. Contou rapidamente restos mortais de ao menos sete pessoas. No pé do balcão havia uma caixa de papelão que lhe interessou imediatamente. Eram fogos de artifício.


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