O CAMALEÃO SIDERADO escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 20
Capítulo 20




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A carroça sacolejava na estrada sulcada e sem pavimento, enquanto Selma e Diolindo num rompante raro de despreocupação, cantavam, influenciados pelo gorgolejo dos passarinho.

 

Já choramos muito

Muitos se perderam no caminho

Mesmo assim não custa inventar

Uma nova canção

Que venha nos trazer

Sol de primavera

Abre as janelas do meu peito

A lição sabemos de cor

Só nos resta aprender

 

— Vocês estão tentando estourar os meus tímpanos! Parece uma dupla caipira, Solavanco e Sacolejo. Ainda bem que Desirée não fala! – Implorava o velho para que a cantilena desafinada parasse, enquanto seu corpanzil era jogado de um lado para o outro como uma marionete com labirintite.

— Na sua idade já era pra sua audição começar a falhar, não? – Ironizou a mulata piscando pra Gemima, que só ria do seu coroa com cara de zanga.

— Morena, meu apelido na faculdade de teologia era Dumbo. Parar de ouvir com esse equipamento paquidérmico aqui é o mesmo que broxar com o tamanho que têm o meu mondrongo. Pergunte a Gemima. – Devolveu a ironia, um tom acima.

— Melhor não – Disse a gordinha fazendo uma carinha de santa do pau oco.

— Então eu mostro! – Retrucou o velho querendo ficar de pé sem conseguir.

— Nããããããããooooo – Gritou Diolindo já sem paciência com as criancices do seu pai.

— Tudo bem suas taquaras rachadas, podem destruir a canção. Vou viver com a indiferença necessária para ignorá-los.

 

Pouco depois o velho se deu conta da revolução que acontecia no seu ventre. Começou com espasmos leves e foi ficando mais grave pelo balançar do veículo. Se tornou insuportável quando percebeu que se não arriasse os paramentos logo, cagaria nas ceroulas.

— Pare a carroça! – Gritou já de pé com a mão segurando as entranhas pelo lado de fora e com medo de dar vexame na frente de sua gorduchinha.

Selma entendendo o recado, puxou as rédeas e brecou os jumentos que precisavam descansar um pouco. O velho saltou do veículo como um menino e correu como um gambá mato a dentro.

 

— Minha Nossa Senhora Desatadora dos Nós! O Tatu de Nagasaki foi buscar a pedra nas profundezas das minhas entranhas! – Falou para si enquanto as fezes escorriam pro chão sentindo algo lhe arranhar o reto.

 

Catou um galho de árvore caído e fazendo uma ginástica risível, pôs-se a andar de cócoras lentamente para trás ainda poluindo a natureza com os seus bofes, enquanto espalhava o tatu digerido pra buscar o que procurava.

— É ela mesmo – Pensou alto, catando o objeto minúsculo com uma folha.

 

Quando se deu por satisfeito, limpou a bunda com a ceroula velha e revestiu seus paramentos. As mãos não tinha onde lavar, por isso esfregava-as no tronco das poucas árvores ao redor. Guardou a folha num dos bolsos e voltou assoviando pra carroça pensando no gesto de caridade que iria fazer. Entregar a pedra ao seu filho que tinha nobres intenções ao seu respeito. Tomara que Lindinho o perdoasse pelas duas coisas. Por ter descoberto e invadido o esconderijo da pedra e por tê-la surrupiado. Confiante, voltou para a família que lhe esperava de dedos no nariz, isso quando ainda guardava boa distância.

— Aqui você não entra fedido desse jeito! – Gritou Diolindo lançando-lhe um olhar de asco.

— Mas Lindinho, preciso lhe contar uma coisa importante. O Tatu de Nagasaki de Gemima me fez refletir.

— Tatu de Nagasaki? – Repetiu a gordinha imaginando que o seu coroa já tinha batizado o seu prato predileto.

— É, refletir. Filho, me permita chamar-lhe assim. Eu agi mal com você. Eu não poderia ter feito o que fiz, mas agora é tarde, eu fiz. – Disse, enfiando a mão no bolso e pedindo que Gemima lhe passasse uma das garrafas de cachaça comprada no boteco. Lavou as mãos e a folha com a bebida que talvez sentisse falta depois, mas teria que fazê-lo. Quando a folha se abriu, Diolindo entendera de imediato do que se tratava. Selma que mesmo não tendo visto o diamante se encantou e juntou as pontas. Gemima, que não sabia da história, achava que aquilo era uma pedra que o velho tinha expelido dos rins.

 

Com um gesto lento, Franco esticou a mão para que o seu filho pegasse o objeto que lhe causara tanta desgraça, e num ato de misericórdia se ajoelhou pedindo perdão.

 

— Me perdoe filho! Me faça andar no milho, em brasas incandescentes, mas não vá embora pra longe de mim. Não era só os intestinos do ex-padre que estava sem trabalhar há algum tempo. Quando começou a brotar as primeiras lágrimas, os olhos lhe ardiam como se elas estivessem empedradas, mas as que se seguiram travaram uma longa batalha para não lhe poupar um centímetro sequer do seu rosto inchado. Escorria uma pequena cascata pelo seu queixo. A cena comoveu a todos, especialmente Gemima que desceu da carroça para ampará-lo. Diolindo desceu em seguida sem saber muito como consolar o velho, e Selma preferiu ficar de longe assistindo a cena, que não era patética porque ali havia sentimento envolvido. Pena que o dela era ódio, diferentemente do daqueles dois.

 

Sem querer mais tocar no assunto e já de posse da pedra, Diolindo embarcou o velho novamente, mas não sem antes esvaziar um dos litros da bebida para que lavasse as mãos e o que mais estivesse impregnado de merda. Pediu a Selma que tocasse a parelha de jumentos para ver se chegavam no tal arraial antes de anoitecer.

 

— Mea culpa, mea maxima culpa! – O velho vinha repetindo como se delirasse, amparado pelas mãozinhas gordas que lhe acalentavam. – Pensou em começar a jejuar outra vez em nome das hemorróidas que proliferavam ao redor das suas pregas como erva daninha, especialmente evitando comer outra vez o Tatu de Nagasaki de Gemima.

 

###

 

— Ainda não consegui falar com nenhuma das minhas filhas Fredson – Informou o Sr. Almeida usando um tom grave pouco usual para quem o conhecia – O único meio de contato que tenho é um telefone público que fica perto da porteira do sítio, em frente a um bar. Eu ligo e peço pra alguém dar um recado ao Romeu, o capataz, e minutos depois eu retorno a ligação pra saber das coisas. Mas me dizem que não têm ninguém por lá. Devo levar em consideração que quase todos os que atendem aquele telefone são bêbados e crianças. Às vezes me custa um tempo até conseguir alguém que fale a mesma língua que eu.

— Então talvez eu tenha que ir até lá pra checar pessoalmente.

— Acho que eu também, nesse caso – Respondeu preocupado – Vou fechar o bar e iremos juntos.

— Excelente ideia. Podemos ir na viatura.

 

O detetive esperou o homem fechar as portas do estabelecimento e pensou que diabos estava acontecendo. Nem fazendo um esforço para a sua imaginação ganhar asas poderia descobrir sem investigar o que Diolindo, Franco e Selma faziam juntos. Se é que estavam juntos. Sequestro? Não. Sob que pretexto? Dinheiro? Não. A velha deixara o suficiente para ele viver e o Almeida não era rico. Mas sentia que algo tinha a ver com o ex-padre pedófilo. Aquilo se fosse uma flor, seria a flor-cadáver. Quanto mais se arreganhasse, mais fedia.

 

###

 

Sob olhares entorpecidos pelo álcool como testemunha, o MACK 1951 freou na frente do Cebola Podre. Dele desceram dois homens franzinos mas com cara de quem estavam muito putos com alguma coisa. Seus passos lentos e firmes eram como dois capangas do bando de Lampião entrando num salão do velho oeste em busca de um pouco de sangue para beberem e carne humana crua pra churrasco. Alguns homens ainda no segundo copo, viram que estavam armados pelo silhueta que se destacava por baixo de suas camisas de tecido barato. Alguns poucos pagaram sua conta sem ainda terem enxaguado direito os seus fígados, outros procuravam o muro atrás do boteco pra mijar mesmo sem vontade, mas a maioria permanecera imóvel tentando saber onde poderiam comprar o ingresso pra assistir o show que achavam que aconteceria ali logo, logo.

 

Para socializar, pediram uma garrafa de pinga e uma porção de calabresa no álcool. Pegaram os tacos de sinuca empenados pelo tempo e por mau uso de jogadores que surravam o pano verde quando não encaçapavam uma bola fácil, e compraram cinco fichas para jogarem enquanto estudavam as caras ao seu redor que talvez pudessem dar as informações preciosas que tanto precisavam.

 

O plano de Romeu era chegarem interrogando todo mundo, já que muita gente ali conhecia ele, mas Godô o convenceu, que baseado nos filmes que tinha assistido, teriam que chegar e se ambientar primeiro, como os profissionais faziam. Depois de puxar três ou quatro assuntos sem sentido com aqueles homens, aí sim era hora de sutilmente fazer perguntas.

Quando já estavam na metade da garrafa e quase esquecidos do que tinham vindo fazer, uma criança se aproxima.

 

— Sr. Romeu, um tal de Almeida ligou há pouco ali pro orelhão perguntando do senhor.

Romeu assustando-se ao ouvir o nome do pai da sua futura vítima, cegou a bola oito na caçapa do meio.

— E você disse o que moleque?

— Fui lá no sítio lhe chamar, mas não lhe encontrei. Depois ele ligou outra vez e eu disse que não tinha ninguém no sítio.

Sem saber se aquilo era bom ou ruim, Romeu pediu que o dono do bar desse um pacote de biscoito ao garoto.

— Já tão atrás – Disse Godô, antes de meter a bola doze no canto – Temos que agilizar então.

Como Romeu não gostava de perder, pediu ao menos que esperassem terminar aquela série melhor de cinco partidas.

 

Na terceira garrafa de pinga o bar estava vazio e à noite alta. Os dois saíram quando o bar fechou, abraçados como amigos de infância. Malmente conseguiram abrir a porta do caminhão e dormiram como duas cinderelas do pé inchado deitados um por cima do outro sobre o banco duro.


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